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3. SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E

3.2. A impunidade dos agentes militares brasileiros no case-law interamericano e a

3.2.1. Casos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos

A CIDH desenvolve o seu trabalho por meio de várias frentes. De um lado, elaboram- se estudos temáticos e por Estados (estes últimos baseados em visitações); por outro, produzem- se relatórios a partir de casos contenciosos oriundos de denúncias da sociedade civil. Os documentos examinados nesta subseção referem-se exclusivamente aos relatórios de mérito gerados a partir de queixas apresentadas contra o Brasil, excluindo-se os que se referem a demandas posteriormente enviadas à CorteIDH a fim de se evitar a repetição de argumentos.

Os casos até agora apresentados à Comissão envolvendo a justiça militar referem-se à impunidade274 por violações de direitos humanos praticadas por policiais militares. Interessa

aqui a análise apenas daqueles nos quais a CIDH avaliou o mecanismo de investigação e o foro competentes para a apreciação das ações penais. Em alguns relatórios pesquisados, sequer havia sido instaurado o procedimento jurisdicional para fins de apuração da responsabilização criminal, o que explica o não pronunciamento do órgão sobre o eventual cabimento do foro castrense. Ao todo, seis casos merecem consideração especial275.

As primeiras queixas enfrentadas pela CIDH envolvendo a justiça militar brasileira foram unificadas e resolvidas num só relatório de mérito referente ao caso Aluíso Cavalcanti e Outros v. Brasil (2001). Tal situação disse respeito à execução extrajudicial de cinco indivíduos

274 O fenômeno da impunidade fática (contraposta à anistia, que configura a impunidade jurídica) é um problema

social comum na América Latina contra o qual o sistema interamericano luta diariamente: “Impunity is a serious problem in the administration of justice in the hemisphere, particularly when human rights violations are committed by state agents. The Inter-American Court has defined impunity as the total lack of investigation, prosecution, capture, trial and conviction of those responsible for violations of the rights protected by the American Convention. A state has the obligation to fight it by all means at its disposal since impunity fosters the chronic repetition of human rights violations and renders the victims and their families defenceless. The failure of military courts to investigate military personnel for human rights violations has resulted in de facto impunity in many countries, in addition to the de jure impunity that has been conferred by amnesty laws. The Inter-American human rights system has declared amnesty laws to be in violation of a state’s obligation to investigate human rights abuses and the obligation to provide the victim with effective judicial recourse. International law requires that every violation of an international obligation, which results in harm, creates a duty to make adequate reparation and that the state has the obligation to investigate, prosecute and punish those responsible for the violation.” (CERNA, 2016, pp. 333)

275 O relatório do caso Carandiru v. Brasil (2000) foi propositalmente excluído da análise porque, apesar de

configurar um dos piores episódios de violações de direitos humanos protagonizado por policiais militares no Brasil, o julgamento de tais agentes já havia sido transferido da Justiça Militar para a jurisdição ordinária no momento do pronunciamento de mérito da CIDH.

e aos sérios ferimentos impostos a outros quatro276. Essas violações, praticadas no transcurso

entre a segunda e a primeira metades dos anos 1980 e 1990, foram realizadas por policiais militares do estado de São Paulo (que conta com um Tribunal de Justiça Militar estruturado), todos denunciados posteriormente perante o foro castrense.

Segundo apurado pela Comissão, o Estado não negou a ocorrência das violações de direitos humanos apontadas pelos reclamantes e disse que estava apurando as responsabilidades penais dos envolvidos no foro competente à época277. Estas alegações não convenceram o órgão

de que o Brasil estava cumprindo corretamente suas obrigações internacionais. A partir da constatação de que o foro castrense brasileiro sofre de problemas como excessivo atraso no julgamento das demandas, tendência de acobertamento dos ilícitos praticados pelos réus, intimidação das testemunhas e frequentes sentenças absolutórias baseadas em ausência de provas, a CIDH afirmou que crimes comuns – especialmente quando configuram violações de direitos humanos – não podem ser apreciados por jurisdições militares sem prejuízo do comprometimento do dever de garantir o julgamento por uma corte independente e imparcial (§§ 149-153). Concluiu-se que o Brasil violou os arts. 8º e 25 da ConvADH e recomendou-se a abolição da jurisdição especial para a análise de acusações de crimes cometidos por agentes policiais contra civis (§ 168).

No caso Diniz Bento da Silva v. Brasil (2002), a Comissão tomou conhecimento da execução extrajudicial de um integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em 08/03/1993, por membros da Polícia Militar do Paraná. Segundo os agentes, a vítima, conhecida como “Teixeirinha”, era suspeita de, poucos dias antes do seu óbito, ter assassinado um policial militar num confronto ocorrido entre a polícia e os membros da organização rural. Um inquérito policial militar foi aberto para investigar o caso em 12/03/1993 e finalizado em 05/04/1993 concluindo pela inexistência de evidências para a ocorrência de um crime militar. Posteriormente, um novo inquérito foi aberto, desta vez pela Polícia Civil, mas restava inconcluso até a elaboração do relatório de mérito pela CIDH.

Embora o evento tenha sido investigado inicialmente no meio militar e posteriormente pela Polícia Civil, a Comissão não poupou críticas à falta de independência e imparcialidade da Justiça Militar brasileira278. Com base num parecer técnico solicitado pelo Ministério Público

276 Os executados extrajudicialmente foram Aluísio Cavalcanti, Clarival Xavier Coutrim, Delton Gomes da Mota,

Marcos de Assis Ruben e Wanderlei Galati; os seriamente feridos foram Cláudio Aparecido de Moraes, Celso Bonfim de Lima, Marcos Almeida Ferreira e Carlos Eduardo Gomes Ribeiro.

277 Como visto no primeiro capítulo, até 1996, a Justiça Militar era o foro competente para o julgamento de

execuções extrajudiciais promovidas por policiais militares contra civis.

278 Ҥ 39. The Commission finds that the military justice system in Brazil, by the nature and structure of its

do Paraná que destacou as diversas irregularidades do procedimento de investigação originalmente realizado, a CIDH apontou falhas no exame da cena do crime, na autópsia da vítima, na coleta de evidências criminais e no colhimento dos relatos testemunhais, aspectos que ensejam a declaração de negativa às vítimas dos seus direitos convencionais às garantias e à proteção judiciais (§§ 40-54). Nas recomendações, além da necessidade de o caso ser investigado pela jurisdição civil, determinou-se a apuração e punição dos responsáveis pelas irregularidades constatadas na investigação conduzida pela Polícia Militar (§ 61).

No dia 05/02/1989, com a finalidade de aplacar uma tentativa de revolta nas celas superlotadas279 do 42º Distrito Policial do Parque São Lucas, na Zona Leste de São Paulo,

aproximadamente 50 detidos foram enclausurados num espaço para confinamento solitário – que media um por três metros quadrados – dentro da qual policiais civis e militares jogaram gás lacrimogêneo. Esse fato resultou em 18 mortos por asfixia e 12 hospitalizados280. As

investigações para a apuração das responsabilidades penais foram bipartidas: enquanto os agentes civis responderam perante a Justiça Comum, os policiais militares foram processados no foro castrense. Esse foi o contexto fático do caso Parque São Lucas v. Brasil (2003).

A CIDH entendeu aplicável ao caso tanto a declaração quanto a convenção americanas em função de, apesar de o fato ter ocorrido três anos antes da adesão estatal ao tratado, a negativa de acesso à justiça às vítimas se renovar ao passo que as investigações e punições dos responsáveis pelas violações de direitos humanos não se realizam (§§ 58 e 59). O órgão reforçou o seu entendimento de que o sistema jurisdicional militar brasileiro não contempla as garantias da independência e imparcialidade, haja vista a sua situação de “parte e juiz” no julgamento de crimes comuns cometidos por militares contra civis. Em casos contra o Brasil, pela primeira vez a CIDH afirmou a limitação da competência da justiça castrense exclusivamente para a

Convention, to investigate and try crimes related to human rights violations. The inefficiency of military justice in determining the crimes committed by military police was already an issue for discussion in Brazil and resulted in the promulgation of Law 9.299 of August 7, 1996, which transfers to the jurisdiction of the ordinary courts intentional crimes against life committed by the military police against civilians. The fact that the first part of the investigations subject to this complaint were conducted within the military justice system and before the aforementioned law was passed denied Diniz Bento da Silva’s family a right guaranteed by Article 8 of the Convention, namely the right to an independent and impartial tribunal to determine the crime committed against the victim of a human rights violation.”

279 Segundo as informações da CIDH, as quatro celas do prédio tinham capacidade para 32 pessoas, mas na ocasião

abrigavam 63 indivíduos.

280 Os nomes das vítimas apresentados pelas organizações responsáveis pelo protocolo da queixa perante o sistema

são: Arnaldo Alves de Souza, Antonio Permonian Filho, Amaury Raymundo Bernardo, Tomaz Badovinac, Izac Dias da Silva, Francisco Roberto de Lima, Romualdo de Souza, Wagner Saraiva, Paulo Roberto Jesuíno, Jorge Domingues de Paula, Robervaldo Moreira dos Santos, Ednaldo José da Fonseca, Manoel Silvestre da Silva, Roberto Paes da Silva, Antonio Carlos de Souza, Francisco Marion da Silva Barbosa, Luiz de Matos e Reginaldo Avelino de Araújo.

manutenção da disciplina dos seus membros no exercício funcional281. Características como o

atraso no andamento das investigações e na apuração das responsabilidades pelos crimes denunciados, a falta de vontade em conduzir investigações imparciais e a aquiescência com a impunidade incitam a violência policial (§§ 63-66).

O Estado, na tentativa de cumprir a recomendação de transferência para a jurisdição ordinária dos crimes cometidos por policiais militares contra civis (§ 72(2)), informou à CIDH que a promulgação da Lei n. 9.299/1996 satisfez tal obrigação convencional e ensejou a transferência da ação penal relativa ao caso do Parque São Lucas para a Justiça Comum. O órgão, embora tenha elogiado a postura doméstica de tentar adaptar a sua legislação ao direito internacional, considerou insuficiente tal modificação por duas razões (§§ 75-78): i) apenas os homicídios dolosos cometidos por policiais militares contra civis foram transferidos para a jurisdição civil, permanencendo inalterada a competência sobre todos os outros crimes que configuram violações de direitos humanos (homicídios culposos, tortura, maus tratos etc.); e ii) apesar da modificação do órgão julgador, a Polícia Militar continua responsável pelas investigações de tais execuções extrajudiciais via inquéritos penais militares, o que contraria o parâmetro regional de administração da justiça. Mais uma vez, recomendou-se a transferência das competências investigativas e jurisdicionais por crimes de direitos humanos para as instâncias civis.

Outra situação envolvendo violações de direitos humanos dos trabalhores rurais integrantes do MST foi apreciada no relatório do caso Corumbiara v. Brasil (2004). Após integrantes deste grupo terem invadido uma fazenda no Município de Corumbiara/RO em 15/07/1995, sucessivas ordens judiciais de reintegração possessória foram deferidas pelo Poder Judiciário local a serem cumpridas pela Polícia Militar. Nesse intermédio, tentou-se infrutiferamente encontrar uma solução amistosa para o impasse. Na madrugada do dia 09/08/1995, os agentes, assistidos por empregados armados de proprietários rurais da região, realizaram a operação de desocupação que culminou na execução extrajudicial, tortura e maus tratos de dezenas de pessoas, dentre elas crianças, além da morte de dois policiais.

Enquanto os trabalhadores rurais responsáveis pela morte dos agentes públicos foram condenados criminalmente, nenhum policial militar, proprietário rural ou empregado armado foi responsabilizado por seus atos (§§ 161 e 162). A Comissão aproveitou a oportunidade para,

281 Ҥ 64. The natural purpose of the special military jurisdiction is to maintain discipline among the members of

the Armed Forces in the exercise of their military functions. Therefore, this jurisdiction should not extend, under any circumstance, to judging the common crimes committed against the civilian population by the military police officers in the performance of their police functions.”

além de criticar o sistema jurisdicional militar brasileiro, exemplificar vários crimes configuradores de violações de direitos humanos que permanecem sob a competência da Justiça Militar, apesar da aprovação da Lei n. 9.299/1996 (§ 273): homicídios culposos, lesão corporal, tortura, sequestro, prisão ilegal e extorsão. Reforçou-se também a ideia de que as investigações sobre tais fatos não podem ser feitas pela Polícia Militar sem que se descumpram as exigências de independência e autonomia da administração da justiça282.

Mesmo constatadas várias violações de direitos humano nesse contexto, em especial as garantias relacionadas à administração da justiça da ConvADH (arts. 8º e 25), o Estado não apresentou à CIDH qualquer notícia sobre o cumprimento das recomendações originais (§ 303). Restou ao órgão, na impossibilidade – pelo critério temporal – de submeter o caso à CorteIDH, solicitar ao Brasil que tomasse as medidas necessárias para a realização de uma investigação completa, imparcial e efetiva sobre tais eventos por parte de órgãos não militares, assim como que punisse os seus autores materiais e intelectuais, sejam civis ou militares (§ 307(1)). No campo legislativo, determinou-se ao Estado a modificação da sua legislação para o fim de substituir a atribuição da polícia militar para a investigação de violações de direitos humanos em favor dos órgãos civis (§ 307(4)).

No dia 22/12/1992, a Polícia Militar do Rio de Janeiro foi responsável pela detenção arbitrária (sem ordem judicial), supostamente motivada na necessidade de se coletar informações sobre o tráfico de drogas em área de favela, e posterior execução extrajudicial de um jovem negro de 14 anos. Esse fato deu ensejo ao caso Jailton Néri da Fonseca v. Brasil (2004), em que restou evidenciada a falta de vontade dos órgãos militares em elucidar o contexto e a responsabilidade por tal homicídio doloso nos seguintes termos (§§ 40-51): i) o correspondente inquérito policial militar foi aberto 08 meses após os fatos e somente a pedido do órgão ministerial, quando tal providência deveria ter sido adotada de ofício; ii) dado esse atraso, várias evidências probatórias foram perdidas; iii) após o arquivamento da investigação original por ser “inconclusiva”, sua reabertura só foi feita – a mando do órgão ministerial – em razão do depoimento prestado pela mãe do jovem no sentido de atribuir a responsabilidade da

282 Ҥ 276. This conclusion is not altered by the fact that the military police is in charge only of the initial

investigation, and that the authority to try cases has been assigned to courts in the regular criminal justice system. This is true because investigation of a case by the Brazilian military police precludes the possibility of an objective and independent investigation by judicial authorities not linked to the hierarchical command of the forces of law and order. The fact that investigation of a case has been initiated by the Brazilian military police may make it impossible to obtain a conviction, even if the case is subsequently transferred to the regular courts. This is due to the lack of independence and impartiality of the Brazilian military police in investigating their own agents, and to the fact that it is likely that the initial investigation and gathering of evidence are carried out for the purpose of hindering prosecution, in an effort to guarantee impunity for the persons responsible for the human rights violations.”

execução aos policiais militares; e iv) mesmo com o resultado do exame pericial atestando que as balas usadas no homicídio conferiam com o modelo do revólver de um agente policial em específico, o órgão acusador e a Justiça Militar concordaram com a absolvição dos réus pela falta de comprovação da autoria e materialidade delitivas.

A mesma leva de considerações sobre a falta de independência e imparcialidade do sistema jurisdicional militar brasileiro foi renovada (§§ 100-102). Segundo a Comissão, não é apenas o resultado absolvição que compromete a atribuição da administração da justiça ao militarismo, mas também a ausência de uma investigação comprometida em encontrar a verdade sobre os fatos, independente de quem seja o seu autor (§ 104). Circunstâncias como a demora na abertura do inquérito penal militar e a perda de evidências que poderiam contribuir para a responsabilização dos culpados demonstraram a falta de expertise e a negligência dos responsáveis por tal apuração (§§ 122 e 123), o que repercute na responsabilidade internacional do Estado por não garantir o acesso à justiça. O Brasil não tomou nenhuma medida após a recepção do relatório primário da CIDH, o que resultou na recomendação pública para a realização de uma nova investigação (completa, imparcial e efetiva) a ser conduzida por órgãos não militares (§ 155(2)).

Por último, o caso Wallace de Almeida v. Brasil (2009) analisou a execução extrajudicial de um jovem de 18 anos, negro, morador de favela (Morro da Babilônia) e pertencente aos quadros das Forças Armadas283. Ao subir o morro junto com um primo no dia

13/09/1998, a vítima foi abordada por policiais militares que estavam patrulhando a comunidade, os quais ordenaram àqueles que fossem para as suas residências. Quando já estava na porta da sua casa, o adolescente foi alvo de tiros dos agentes policiais, que, ao tomarem conhecimento da sua condição de integrante do Exército, levaram 20 minutos para decidirem transportarem-no ao hospital. Wallace de Almeida faleceu na madrugada seguinte vítima de uma hemorragia decorrente dos tiros sofridos (§§ 85-92).

Esse último relatório pontua uma característica agravadora da impunidade brasileira em relação aos anteriores: apesar de a investigação policial ter sido iniciada no dia seguinte (14/09/1998) e vários anos terem transcorrido desde a execução extrajudicial, o órgão ministerial não conseguiu acusar formalmente nenhum dos responsáveis por tal ato em razão da não finalização do inquérito (§§ 127-129)284. Como tal procedimento administrativo sequer

283 O relatório não deixa claro se o seu enquadramento no Exército ocorria a título profissional ou se ele cumpria

o serviço militar obrigatório constitucionalmente exigido no Brasil (CF/1988, art. 143).

284 A CIDH inclusive confronta esse atraso com as normas procedimentais brasileiras em matéria de investigação

policial: Ҥ 130. Let us emphasize once again that since the police investigation was initiated on September 14, 1998, no progress has been made in the process, which was virtually stalled, as the State has admitted. Nearly eight

havia sido concluído, restou à CIDH apenas conjecturar que a correspondente ação penal não pode ser remetida à Justiça Militar, haja vista o fato configurar uma grave violação de direitos humanos (§§ 133-134 e 168(1)).

O Estado, posteriormente, informou que o caso foi levado ao Tribunal do Júri contra três suspeitos (policiais militares), mas tanto o juiz de primeiro grau quanto o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (após a interposição de recurso pelo órgão ministerial) recusaram a denúncia por suposta falta de evidências para a identificação dos autores do crime (§ 182). Passados vários anos, esse episódio de execução extrajudicial permanece impune.