• Nenhum resultado encontrado

1. A UTILIZAÇÃO DO APARATO MILITAR BRASILEIRO NA SEGURANÇA

1.4. A arquitetura jurídica que tenta garantir a impunidade

1.4.2. A competência processual penal para o julgamento de crimes praticados por

1.4.2.2. Os estados e os policiais militares

O sistema aplicável aos policiais militares é similar ao das Forças Armadas. Suas principais diferenças devem-se ao fato de os órgãos policiais integrarem os estados-membros, não a União. As legislações penais de natureza material (Código Penal Militar) e processual (Código de Processo Penal Militar) aplicáveis a ambas as categorias são as mesmas. Por força disso, também são considerados crimes militares os delitos cometidos contra civis quando tais agentes estiverem em atividade, com a ressalva delineada na subseção anterior em relação aos homicídios97, independentemente da sua gravidade (incluindo sérias/graves violações de

direitos humanos). A própria Polícia Militar é responsável pela instrução do inquérito policial congênere relativo a suspeitas do cometimento de tais ilícitos.

A diferença entre tais sistemas salienta-se na conformação da estrutura jurisdicional. No seu art. 125, a Constituição Federal de 1988 facultou aos estados a criação de um sistema de justiça militar próprio quando o seu efetivo for superior a vinte mil integrantes (§ 3º), determinou a competência destes entes para o processamento e o julgamento dos delitos militares definidos em lei e as infrações disciplinares, com a ressalva da competência do Tribunal do Júri para os crimes contra a vida (§ 4º), e determinou caber ao juiz de direito o poder-dever de julgar os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência daquele, processar e julgar as transgressões penais residuais (§ 5º). Percebe-se que a distribuição de competências na Justiça Militar dos estados, quando existente, privilegia a atuação dos juízes de direito (característica dissonante da Justiça Militar da União).

Atualmente, apenas Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul possuem Tribunais de Justiça Militar estaduais. Apesar dos questionamentos existentes quanto à sua viabilidade, estes tribunais resistem98. Todas as três cortes possuem formatação similar: i) no tocante a

Minas Gerais, a Constituição Estadual (1989) estabelece a composição do seu tribunal com juízes civis e oficiais da ativa (membros do mais alto posto da Polícia Militar ou do Corpo de Bombeiros Militar), em número ímpar, sendo o quantitativo destes últimos superior em uma unidade àqueles (art. 110); ii) em São Paulo, a Constituição Estadual (1989) determina que a sua corte militar também conta com sete juízes, sendo quatro Coronéis da ativa da Polícia Militar e três civis (art. 80); iii) no Rio Grande do Sul, a Constituição do Estado (1989), em seu

97 Na forma definida pelo art. 9º, § 1º, do Código Penal Militar, de acordo com a redação dada pela Lei n.

13.491/2017.

98 Um diagnóstico feito por um grupo de trabalho indicado pelo CNJ (2014) propôs alterações para o

art. 104, § 4º, atribui para a Lei de Organização Judiciária o estabelecimento de tal arranjo, e essa última repete o padrão paulista ao elencar que o tribunal militar contará com sete juízes, dos quais quatro são Coronéis da ativa e três são civis (art. 232, caput e § 1º). A competência desses órgãos, de modo geral e como não poderia deixar de ser, segue o parâmetro do Código Penal Militar e das especificações do art. 125, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal de 1988: devem conhecer das acusações de crimes cometidos pelos militares na ativa, ainda que tenham civis como vítimas (com exceção dos homicídios) e independentemente da sua gravidade99.

Nos estados em que não há Tribunal de Justiça Militar (a maior parte do país), o Tribunal de Justiça contempla a sua funcionalidade, mas, regra geral, cria-se um setor especializado na primeira instância para julgar tais causas. É a situação do Ceará, que, em seu Código de Divisão e Organização Judiciária, instituído pela Lei Estadual n. 12.342/1994, estabeleceu uma Auditoria Militar (com jurisdição para todo o estado) exercida, em primeiro grau, pelo Juiz Auditor e pelos Conselhos de Justiça Militar, e, em segundo grau, pelo Tribunal de Justiça (art. 93). O Juiz Auditor é um juiz de direito e a composição do Conselho de Justiça Militar obedece ao disposto na Lei n. 8.457/1992 (arts. 94 e 95). O rol de competências corresponde ao mesmo padrão do parágrafo anterior (art. 96), com a ressalva de que eventuais recursos serão conhecidos pelas Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça (art. 50, II, a).

Na primeira instância, privilegia-se na Justiça Militar dos estados a presença de juízes de direito para o conhecimento dos crimes cometidos pelos militares estaduais. A diferenciação é maior na segunda instância dos estados onde existem Tribunais de Justiça Militares. Mesmo com essa maior aproximação da Justiça Comum (quando se compara esse sistema ao da Justiça Militar da União), vê-se uma segregação relacionada ao julgamento dos delitos protagonizados por civis. Qual a razão de existir um corpo técnico diferenciado em alguns estados-membros (Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul) para julgar integrantes de uma carreira de Estado pelo mesmo ilícito cometido pelo restante da população, em especial quando o Código Penal Militar define como crimes militares quaisquer ilícitos definidos no Código Penal ou na legislação especial, inclusive cometidos contra civis, desde que esteja o agente em serviço? Qual o maior reforço jurídico garantido por tal segregação? Essa política, que não encontra respaldo técnico claro, é responsável por colocar em patamares diferenciados indivíduos que deveriam receber do Estado-jurisdição o mesmo tratamento.

99 Cf. arts. 111 da Constituição do Estado de Minas Gerais (1989), art. 79-B da Constituição do Estado de São

A configuração da justiça militar estadual, assim como a da União, gera preocupações de impunidade. Quando o fato investigado configura grave violação aos direitos humanos (os chamados “crimes de direitos humanos”), essa preocupação é aumentada em razão dos compromissos internacionais do Estado. Essa foi uma das razões pelas quais o constituinte reformador, no seio da Emenda Constitucional n. 45/2004, criou o incidente de deslocamento de competência – para a Justiça Federal – de causas em andamento nos judiciários estaduais que porventura corram o risco de não serem solucionadas100. Tal ferramenta processual deverá

ser acionada pelo Procurador-Geral da República e analisada pelo STJ.

Em 08/08/2018, o STJ decidiu o IDC 14/DF. Esse caso chama a atenção porque foi motivado pela possível condenação do Brasil em instâncias internacionais em decorrência do cenário de conflito social ocorrido no Espírito Santo quando da realização do movimento paredista por parte dos militares estaduais no ano de 2017101. Segundo a autoridade ministerial,

que inicialmente solicitou o deslocamento para a Justiça Militar da União e depois voltou atrás em favor da Justiça Federal do Espírito Santo ou do Distrito Federal, a ampla adesão de militares de todas as patentes (inclusive altos oficiais) na greve (constitucionalmente proibida) tornou impossível a apuração das responsabilidades na Justiça Militar local, argumento corroborado pelo Governador do Estado do Espírito Santo.

A relatora, Min.ª Maria Thereza de Assis Moura, sustentou em seu voto-condutor (vencedor por maioria) uma série de elementos empíricos inviabilizadores do deslocamento solicitado. Para além dessas questões fáticas, chama a atenção o seu entendimento de que a configuração da Justiça Militar dos estados garante a independência e a imparcialidade necessárias à realização de julgamentos pautados no devido processo legal e no acesso à justiça102. Segundo a ministra, o fato de o julgamento de eventuais crimes cometidos por tais

100 Nota-se que o Congresso Nacional, ao assim agir, partiu da premissa de que a Justiça Federal funciona de forma

mais organizada, operacional e com maior probabilidade de êxito – seja condenatório ou absolutório – que os juízos estaduais. Essa noção da realidade não parece calcada em evidências sólidas e tangencia o senso comum.

101 Os incidentes anteriores julgados pelo STJ tiveram como objeto casos de homicídios praticados por particulares

e/ou grupos de extermínio, algumas vezes com participação de policiais militares. Como se tratam desse tipo de crime (homicídio), eram situações de competência da Justiça Comum. O caso destacado é, até agora, o único em que se discutiu a inoperância do judiciário militar estadual para o deslinde criminal.

102 “Alega o Procurador-Geral da República que há risco de parcialidade na condução dos casos pela Justiça Militar

Estadual. Em resumo, diz, ‘[s]ão colegas investigando e julgando colegas, no contexto de um movimento de greve que foi apoiado pela esmagadora maioria da corporação estadual.’ Menciona o ‘poder de influência dos detentores de patentes mais altas dentro da corporação’ e a dificuldade na formação de Conselhos de julgamento isentos. A alegação (abstrata, sem amparo nas investigações) demonstra apenas um inconformismo com o modelo de deliberação da Justiça Militar Estadual. Além disso, denota, respeitosamente, certa imprecisão sobre o funcionamento da Justiça Militar Estadual. [...] Nos termos do regramento constitucional, compete ao Conselho de Justiça Militar, no primeiro grau de jurisdição, julgar os militares pelos crimes militares definidos em Lei. Esse Conselho é sempre presidido por um Juiz Togado (Juiz Auditor), vinculado ao Tribunal de Justiça. Há dois Conselhos: o permanente, responsável pelo julgamento de praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) e o Especial, responsável pelo julgamento de oficiais (tenentes, capitães, majores, tenentes-coronéis, coronéis). Os

agentes ser responsabilidade de juízes de direito (embora destacados do contexto macro do judiciário penal aplicável ao restante da população) e os Conselhos de Justiça serem colegiados com presença de juízes togados (ainda que em número menor que o de oficiais) é razão suficiente para não se crer no suposto “espírito de camaradagem” existente entre os colegas de profissão. Pelos discursos vistos nas seções anteriores, essa visão não parece imune a críticas.

Embora a discussão travada nesse incidente não tenha por objeto a apuração de um crime cometido por agente militar contra civil (não obstante as repercussões dos fatos possam gerar uma crise em matéria de direitos humanos), extrai-se de sua análise o quão sedimentada está na jurisprudência brasileira a relevância e a conformidade constitucional do sistema de justiça militar (tanto da União quanto dos estados-membros). Pelos julgamentos, leis e projetos de lei até então observados, é evidente que a pauta político-jurídica brasileira está longe de ver como necessárias discussões sobre a pertinência da existência desse ramo judiciário especializado ou de excluir-se de sua competência a investigação e o julgamento de crimes cometidos por militares contra civis, com amplo potencial de configurarem graves violações aos direitos humanos.