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2. GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA MILITAR NO

2.2. Estudos específicos desenvolvidos pelos mecanismos de proteção dos direitos humanos

2.2.4. Outros mecanismos

Demais relatorias e grupos de trabalho extraconvencionais produziram estudos que discutem a competência da justiça militar como foro adequado para acusações de violações de direitos humanos. Esta subseção se baseará nos documentos produzidos pelas relatorias especializadas para os defensores dos direitos humanos (i), para as execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias (ii) e pelo grupo de trabalho sobre desaparecimentos forçados ou involuntários (iii).

O Relator Especial para a Situação dos Defensores dos Direitos Humanos é um mecanismo criado em 2000 pela Comissão de Direitos Humanos com o objetivo de apoiar a implementação da Declaração sobre os Direitos e Responsabilidades dos Indivíduos, Grupos e Órgãos da Sociedade para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (1998). Seu mandato foi acolhido pelo Conselho de Direitos Humanos e tal órgão continua em funcionamento.

No seu primeiro estudo dirigido à Assembleia Geral da ONU, baseado no primeiro ciclo de visitas aos Estados feito pelo mecanismo, o Relatório Anual da Relatora Especial para os Defensores dos Direitos Humanos (2001)165, Hina Jilani166, deu atenção à proximidade entre

os fenômenos da militarização da segurança e a impunidade. Segundo tal documento, quanto mais cresce o militarismo dentro de uma sociedade, em igual proporção aumentam as violações de direitos humanos (§ 41). Em áreas de conflito com alta tensão política, leis emergenciais/especiais que suspendem liberdades fundamentais e restringem o recurso às cortes civis legitimam a negação de direitos como à movimentação, à associação, à reunião, à expressão e à opinião, ao mesmo tempo em que membros de grupos militares e paramilitares ficam impunes por suas violações de direitos humanos (§ 42).

165 Aprovado na 56ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em 10 de setembro de 2001.

166 A primeira relatora especial exerceu o seu mandato entre os anos 2000 e 2008. Quando estava à frente do órgão,

produziu 36 relatórios, sendo 21 para a Comissão de Direitos Humanos, 07 para a Assembleia Geral e 08 para o Conselho de Direitos Humanos. Ao todo, ela visitou 12 países, dentre eles o Brasil.

De acordo com o relatório, a população civil residente das áreas de conflito vive em constante medo de ser acusada de colaborar com os grupos opositores e sofrer, como retaliação, ataques à sua vida e privação de liberdade, o que comumente força membros da comunidade a abandonar as suas residências para preservar as suas vidas (§ 44)167. E quando tal incriminação

é “institucionalizada” não significa necessariamente um tratamento mais condizente com o devido processo legal: como vários ordenamentos domésticos permitem que civis respondam por acusações perante tribunais militares, tais órgãos comumente agem sem transparência e independência, em desrespeito aos direitos humanos dos acusados e apenas como uma forma de legitimar punições lastreadas em razões políticas (§ 46).

A relatora enfatiza o cenário de desestímulo aos defensores de direitos humanos (ativistas, jornalistas, advogados, juízes etc.) a respeito da apresentação de denúncias formais sobre as violações cometidas, uma vez que as autoridades responsáveis por julgar os denunciados (tribunais militares) configuram pilares para a impunidade. Um padrão sistemático de absolvições ou imposições de sentenças brandas em face de graves violações de direitos humanos põem em xeque a independência/imparcialidade de tais órgãos, o que fortalece a percepção de que servem eles apenas para proteger os membros das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, é alto o número de vítimas de execuções extrajudiciais e torturas em campos militares, além da ocorrência de abduções e desaparecimentos forçados (§ 47).

Restou também identificado que, mesmo quando ocorre o estabelecimento (ou restabelecimento) da autoridade civil, a presença militar ainda domina as estruturas estatais e dificulta a promoção da cultura democrática168. Isso se dá porque, em alguns países, as

instituições nacionais não possuem os poderes necessários para investigar denúncias de excessos cometido por membros das Forças Armadas. Há também relatórios que denunciam a recusa dos militares em cumprir com ordens oriundas de cortes civis quanto às ações arbitrárias que violam os direitos humanos. Ou seja, em vários locais, mesmo com a saída dos militares da posição de liderança do Estado, não há uma evolução paritária no tocante à garantia da erradicação da impunidade dos seus agentes (§ 48). Por fim, foram reconhecidas as medidas tomadas pelos Estados em prol da proteção dos defensores de direitos humanos em áreas de conflito ou tensão, assim como recomendou-se a criação de mecanismos capazes de resolver o problema da impunidade (§ 49).

167 É impossível não estabelecer um paralelo entre tal situação e a vivenciada pelos moradores das favelas

brasileiras, constantes alvos da atuação das forças estatais militarizadas em operações de “pacificação”.

A Relatoria Especial para as Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, criada em 1982 pelo Conselho Econômico e Social e cujo mandato foi continuamente renovado pela Comissão de Direitos Humanos e pelo Conselho de Direitos Humanos, apresentou à Assembleia Geral da ONU o Relatório Anual do Relator Especial Sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias (2008)169, Philip Alston170, que versou sobre o papel da

proteção às testemunhas no encerramento do ciclo de impunidade para as execuções extrajudiciais (i) e as medidas necessárias para tornar os sistemas jurisdicionais militares compatíveis com os direitos humanos (ii). O estudo visa disseminar as boas práticas tomadas nos Estados visitados em relação a ambos os temas. Interessa aqui os apontamentos feitos quanto ao segundo tópico.

O estudo reforça a ideia de que, em muitos países, os tribunais militares são utilizados para garantir a impunidade dos agentes militares acusados de cometerem execuções extrajudiciais. Comandantes rotineiramente têm se utilizado do seu poder de influência em tais órgãos para absolver os seus subordinados das violações de direitos humanos cometidas contra civis. Este judiciário especializado é visto como uma “justiça inferior” ou um “pretexto para a impunidade” (§ 48). Por outro lado, o relator admite que alguns Estados vêm estabelecendo reformas legislativas para tentar garantir que investigações sobre violações de direitos humanos praticadas por militares respeitem os padrões do direito internacional. A estratégia para tanto consiste na expansão da relevância do sistema jurisdicional civil (§ 49).

A seguir, a investigação detalhou os desenvolvimentos normativos ocorridos no Reino Unido, na Colômbia e na Holanda, considerados avanços em matéria de combate à impunidade dos agentes militares. Quanto ao Reino Unido (§§ 54-58), destacou-se que a sua condenação pela Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Findlay v. Reino Unido (1997) desencadeou uma série de modificações em sua jurisdição militar doméstica, tais como: i) a retirada da ampla discricionariedade dos comandantes acerca da condução de investigações em desfavor dos seus subordinados; ii) a colocação das investigações e acusações sobre crimes que configurem violações de direitos humanos sob a competência de autoridades profissionais civis; iii) a fixação de mais juízes civis nas cortes marciais; iv) a possibilidade de opor-se recurso judicial contra sentenças condenatórias; e v) a necessidade de se revisar, a cada cinco anos, a legislação especial destinada aos militares. No que diz respeito à Colômbia (§§ 59-63), a interação dos seus tribunais internos com decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos impulsionou

169 Aprovado na 63ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em 20 de agosto de 2008.

a formação do entendimento jurisprudencial de que atos configuradores de sérias violações de direitos humanos não podem ser julgados por órgãos militares, o que se refletiu em reformas legislativas infraconstitucionais posteriores. Por último, a Holanda (§§ 64 e 65) aboliu, em 1991, as cortes militares. Casos que envolvam agentes dessa categoria em conflitos armados são julgados em órgãos civis, que possuem câmaras específicas para isso compostas por dois juízes civis e um militar.

Verifica-se características distintas nos três Estados. O Reino Unido tentou, por uma série de reformas legislativas, quebrar a possível influência exercida pelos seus comandantes militares sobre os resultados dos julgamentos realizados no âmbito das cortes militares. Para isso, equilibrou a competência para a investigação e o acionamento da instância jurisdicional entre militares e civis, além de forçar a revisão periódica da legislação especial aplicável a tal categoria de funcionários estatais171. A Colômbia, por outro lado, como fez suas alterações por

meio da jurisprudência e da reforma da legislação infraconstitucional, sujeitou-se a retrocessos em face da modificação do cenário político nacional. E foi justamente o que ocorreu em 2015, quando a sua constituição foi emendada para permitir (novamente) que crimes cometidos por militares em serviço ativo sejam julgados por cortes especializadas. Cabe à jurisprudência analisar casuisticamente o impacto de tal determinação. O Estado holandês foi o que mais avançou no sentido da eliminação de distinções baseadas no caráter militar ou civil do autor de eventuais ilícitos. Com a extinção do seu sistema jurisdicional militar, a Holanda submeteu todos os seus cidadãos ao mesmo tipo de órgão julgador em caso de apuração de ilícitos, o que fortalece a ideia de igualdade perante a lei. A excepcionalidade do julgamento colegiado com a presença de um militar para os casos de crimes supostamente cometidos em conflitos armados não inflige tal regra, pois ainda assim o caso será apreciado na instância ordinária e com preponderância de juízes civis172.

171 As reformas mencionadas vêm sendo implementadas por meio das revisões quinquenais da legislação das

Forças Armadas, os chamados Armed Forces Acts de 1996, 2001, 2006 e 2016. Além do julgamento do caso Findlay, outras decisões (condenatórias e absolutórias) da Corte Europeia de Direitos Humanos foram importantes para o desenvolvimento do sistema do Reino Unido de cortes marciais, tais como os casos Coyne v. Reino Unido (1997), Hood v. Reino Unido (2000), Morris v. Reino Unido (2002), Cooper v. Reino Unido (2004) e Grieves v. Reino Unido (2004). Para uma análise desta evolução com comentários sobre o impacto de cada uma das sentenças na ordem jurídica doméstica, cf. LYON; FARMILOE, 2018.

172 Aponta Van Hoek (2018) que a incorporação de elementos civis ao sistema jurisdicional militar da Holanda é

objeto de debate desde o fim do século XIX e foi catalisada após a Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, contribuíram bastante para a reforma de 1991 as modificações no perfil das Forças Armadas ocorridas com o fim da Guerra Fria, tais como: i) a sensível diminuição do seu efetivo; ii) a eliminação do sistema compulsório de alistamento militar; e iii) a mudança no foco de suas atribuições, que deixou de priorizar a defesa territorial própria e dos aliados da OTAN em prol da atuação em ajudas humanitárias. Sua pesquisa também expõe que algumas autoridades militares levam ao parlamento suas insatisfações com a alegada “falta de expertise” dos agentes públicos (civis) responsáveis pelas investigações e propositura de denúncias sobre eventuais ilícitos praticados por membros das Forças Armadas holandesas em intervenções ocorridas no exterior, o que ocorreu, p. ex., em 2004,

Após contar com a ajuda do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (em 2005 e 2009) para se inteirar sobre as práticas legislativas adotadas pelos Estados em matéria de criminalização do desaparecimento forçado, o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários apresentou ao Conselho de Direitos Humanos o Relatório Sobre as Melhores Práticas Acerca do Desaparecimento Forçado nas Legislações Domésticas (2010)173. O estudo cobriu seis áreas de interesse: i) a codificação do fenômeno; ii)

a definição dos seus elementos constitutivos; iii) a sua natureza continuada e as suas consequências; iv) os modos de participação criminosa; v) as sanções aplicáveis; e vi) as garantias contra a impunidade dos autores.

Dentro deste último âmbito, reconheceu-se um ciclo vicioso entre a prática do desaparecimento forçado e a impunidade. Dentre as principais razões observadas para isso174,

destaca-se a atribuição da competência das jurisdições militares para apreciarem as respectivas denúncias (§§ 57 e 58). O grupo de trabalho reconhece como boas práticas legais determinações proibitivas para que tribunais militares possam apreciar crimes desta natureza (i) ou afirmativas de que tais ações só podem ser julgadas por meio de cortes civis ordinárias (ii).

Dessume-se que os órgãos de monitoramento dos direitos humanos da ONU consideram incompatível com o estado atual de desenvolvimento do direito internacional previsões domésticas que estabeleçam a competência de cortes militares para o julgamento de casos envolvendo sérias violações de direitos humanos, em especial execuções extrajudiciais, torturas, desaparecimentos forçados, sem prejuízo de outros crimes que, dado o seu contexto de execução, possam receber tal qualificativo. Ao mesmo tempo, tais mecanismos censuram as legislações que possibilitam o julgamento de civis perante cortes militares. O critério geral quanto à competência destes tribunais especializados é claro: apenas podem julgar o pessoal militar acusado do cometimento de infrações estritamente militares.