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2. GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA MILITAR NO

2.3. As recomendações direcionadas aos Estados pelos órgãos da ONU

2.3.1. Mecanismos extraconvencionais

2.3.1.2. Visitações a outros Estados

2.3.1.2.1. Peru

Nos anos de 1985 e 1986, o Peru foi visitado pelo Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários a fim de investigar as acusações relacionadas aos crimes ditos praticados por autoridades estatais. Em ambas as análises, os relatórios não chegaram a indicar a necessidade de reforma da ordem legal interna no tocante à competência da Justiça Militar, mas reconheceram que tal instância especializada vinha sendo utilizada para

não permitir que as demandas responsabilizatórias contra os responsáveis por tais crimes tivessem efetividade. No primeiro relatório186, constam informações de que o entendimento

jurisprudencial expansivo para definir a competência de tais cortes acerca da locução “crimes cometidos no dever do ofício” tornava inócua qualquer tentativa de encontro dos desaparecidos via habeas corpus e de responsabilizar algum policial ou integrante das Forças Armadas por tal fato (§§ 53-61). Na segunda visita187, os membros do grupo de trabalho aferiram que

competência dos tribunais militares no país era tamanha que abrangia até mesmo crimes não definidos no Código Penal Militar, como o homicídio qualificado (§ 18).

Poucos anos depois, a situação peruana não havia se modificado. O Relator Especial Sobre a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes expôs num relatório de 1989188 que vários dos crimes de direitos humanos praticados pelas

autoridades militares continuavam sendo remetidos à jurisdição militar. Além disso, a despeito do grande número de denúncias apresentadas por crimes cometidos por funcionários públicos desta natureza, não se tinha à época o registro de qualquer punição aplicada pelo judiciário, o que só aumentava o descrédito da instituição perante a população (§§ 176 e 177). O relator recomendou ao Estado que aprovasse o projeto de lei em curso no Congresso Nacional segundo o qual restaria abolida a competência da Justiça Militar para a apreciação de crimes de direitos humanos, tais como a tortura, as execuções extrajudiciais, o desaparecimento forçado e afins (§ 187(b)).

Depois de enviar várias denúncias de execuções extrajudiciais ao Peru e acusar o Estado na Assembleia Geral da ONU de assiduamente violar os direitos humanos da sua população, o Relator Especial Sobre as Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias visitou o país no ano de 1993. Segundo os dados colhidos e expostos no relatório189, a situação

se agravou após o ex-Presidente Alberto Fujimori assumir a função de Chefe de Estado, pois cresceram as acusações da prática de execuções extrajudiciais, a Constituição de 1979 foi suspensa, o Congresso Nacional foi dissolvido, instalou-se um governo de emergência, o país passou a ser regido via decretos-lei, as cortes ordinárias civis tiveram seu funcionamento interrompido, dentre outras medidas (§§ 21-25).

Além de denunciar as mesmas práticas já apontadas nos relatórios anteriores, a Relatoria Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias expôs duas formas

186 Aprovado na 42ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 08 de janeiro de 1986.

187 Relatório aprovado na 43ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 22 de dezembro de 1986 188 Aprovado na 41ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 23 de janeiro de 1989.

comumente utilizadas no Peru para se excluir a jurisdição das cortes civis sobre os crimes cometidos por militares: i) quando se tinha notícia da existência de uma ação penal em curso na jurisdição ordinária, as autoridades ajuizavam uma demanda semelhante na Justiça Militar a fim de provocar um conflito positivo de competência, o qual, regra geral, era resolvido em favor do ramo jurisdicional especializado; e ii) caso esse conflito não fosse solucionado da forma esperada, os juízes militares expediam uma sentença o mais rápido possível, o que obstruía o prosseguimento do feito na corte civil em razão da coisa julgada (§§ 48-53). Chamou também a atenção do relator a modicidade das penas impostas em desfavor dos militares quando foram encontradas (algumas poucas) condenações: 06 anos de prisão por abuso de autoridade e falso testemunho quanto ao assassinato de 69 pessoas e 10 anos de prisão por abuso de autoridade quanto à execução de outros 15 indivíduos. As recomendações apresentadas caminharam no sentido de exclusão da competência da jurisdição especializada para o julgamento das violações de direitos humanos e do fortalecimento da estrutura jurisdicional civil (§ 99).

A Relatoria Especial Sobre a Independência dos Juízes e Advogados visitou o Peru em 1996 e publicou seu relatório em 1998190. O estudo discorreu sobre três elementos ora

pertinentes (§§ 69-81): i) o uso de juízes “sem rosto”191 pelas cortes militares; ii) o julgamento

de civis nestes tribunais por acusações de traição ou terrorismo; e iii) a permanência da competência da Justiça Militar para casos de sérias violações de direitos humanos cometidas por militares em desfavor de civis.

O relatório considerou a utilização dos juízes “sem rosto” e a impossibilidade de os réus civis e advogados sequer tomarem conhecimento da identidade das testemunhas dos seus processos situações contrárias às obrigações decorrentes dos tratados ratificados pelo Peru, pois violam tanto o acesso à justiça quanto o devido processo legal. Dessa forma, p. ex., não poderiam os defensores averiguar se haveria algum impedimento para que determinado juiz proferisse decisão no caso concreto. O relator especial também expôs a incompatibilidade perante o direito internacional da utilização de tribunais militares para o julgamento de civis acusados dos crimes de terrorismo ou traição. Como estas cortes funcionam majoritariamente com profissionais sem qualificação jurídica e que podem ser até mesmo subordinados às autoridades responsáveis pelas acusações, fica comprometida a sua imparcialidade. Foi

190 Aprovado na 54ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 19 de fevereiro de 1998.

191 A técnica dos juízes “sem rosto”, ou faceless judges, consiste na condução do processo judicial sem que o réu

ou o seu defensor possa identificar quem é a autoridade responsável (ou quem são as autoridades responsáveis) pela prolação da sentença. Trata-se de expediente que desafia vários direitos estabelecidos em tratados. Para uma análise desse fenômeno à luz do direito constitucional colombiano dentro do cenário da “guerra às drogas”, cf. NAGLE, 2000.

igualmente reforçada a necessidade de exclusão da jurisdição especial para o julgamento de militares acusados de cometerem sérias violações de direitos humanos contra civis.

Boa parte das recomendações feitas pela relatoria sobre a independência dos juízes e advogados foram renovadas pelo Grupo de Trabalho Sobre Detenção Arbitrária em visita ocorrida entre 26 de janeiro e 06 de fevereiro de 1998, cujo relatório foi publicado em 1999192.

Passados poucos anos, o Estado continuava permitindo que civis respondessem por acusações de terrorismo na Justiça Militar, embora já não mais fizesse uso dos juízes “sem rosto”, e militares acusados de violações de direitos humanos em desfavor de civis permaneciam sendo julgados em tribunais castrenses.