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2. GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA MILITAR NO

2.2. Estudos específicos desenvolvidos pelos mecanismos de proteção dos direitos humanos

2.2.2. Comissão de Direitos Humanos

Apesar de extinta146, a Comissão de Direitos Humanos possui um acervo de resoluções

que merece ser explorado por lidar com os assuntos ora abordados (direitos humanos à independência/imparcialidade jurisdicionais, impunidade, cortes militares etc.). Nos seus últimos anos, tal órgão solicitou de estudiosos do direito internacional peritagens relacionadas às limitações normativas quanto ao exercício das jurisdições militares para ilícitos que configuram violações de direitos humanos.

O primeiro documento que merece destaque é o Relatório para a Atualização do Conjunto de Princípios para o Combate à Impunidade (2005)147, elaborado por Diane

Orentlicher. Embora o seu foco principal não fosse o funcionamento das cortes militares, mas sim a categoria “impunidade” (bem como as suas causas e os seus meios de combate), parte dele explorou tal fenômeno à luz de sua relação com tais tipos de tribunais.

Na parte inicial, o estudo define impunidade como a impossibilidade, de jure ou de facto, de levar o autor de uma violação de direitos humanos à responsabilização de qualquer tipo (seja criminal, cível, administrativa ou disciplinar), uma vez que tais pessoas não se sujeitam a qualquer investigação que possa levar a uma acusação formal, uma detenção ou uma

146 A Assembleia Geral da ONU, em 15/03/2006, substituiu a Comissão de Direitos Humanos pelo atual Conselho

de Direitos Humanos. Pesava sobre o antigo órgão críticas sobre o preenchimento das suas vagas por Estados com histórico de violações de direitos humanos.

prisão, além da prolação de uma sentença que imponha as penalidades e as reparações cabíveis. A partir disso, o relatório salienta como dever estatal tomar medidas efetivas para combater a impunidade, haja vista serem suas obrigações (Princípio 01): i) investigar violações de direitos humanos; ii) tomar medidas apropriadas para que os agentes desses ilícitos tenham as suas condutas investigadas, julgadas e punidas; iii) municiar as vítimas com remédios jurídicos adequados para que sejam reparadas pelos males sofridos; iv) garantir o direito à verdade sobre a ocorrência das violações de direitos humanos; e v) tomar as providências necessárias para prevenir a repetição de tais atos.

Com relação aos deveres perante a administração da justiça, devem os Estados assegurarem-se de iniciar uma investigação séria, completa, independente e imparcial quando tiverem notícia de ato que viole os direitos humanos e/ou o direito humanitário internacionais e tomar as medidas apropriadas com relação aos seus autores, em especial no campo penal, para fins de investigação, julgamento e punição (Princípio 19). O mesmo princípio informa que, apesar de a decisão sobre o acionamento de tais providências ser primariamente do Estado, deve este garantir às vítimas e aos seus familiares/herdeiros a faculdade de conduzir acusações privadas, de acordo com o seu ordenamento jurídico.

No Princípio 29, a relatora restringiu a margem discricionária dos Estados quanto à atribuição das competências dos tribunais militares. Segundo o documento, a jurisdição desses órgãos deve ser restrita às ofensas militares específicas cometidas por seus agentes, com exclusão especial de violações de direitos humanos, que devem recair sob a competência dos órgãos jurisdicionais ordinários domésticos ou, quando apropriado, em casos de sérios crimes de direito internacional, numa corte criminal internacional ou internacionalizada148. Para a

expert, há uma associação entre a impunidade e o estabelecimento da competência das cortes militares para o julgamento de violações de direitos humanos. Para evitar isso, segundo ela, o mais adequado é restringir a possibilidade de atuação deste tipo de órgão.

O relatório também expressa o dever dos Estados de garantir que as vítimas das violações não passem por repetições de experiências traumáticas. Para isso, elenca a necessidade de reformas dos ordenamentos no sentido de (Princípios 35 e 36): i) estabelecer o controle civil sobre as forças militares, de segurança e de inteligência, bem como desfazer (se existentes) as forças armadas paraestatais; ii) excluir dos quadros do Estado os funcionários responsáveis por graves violações de direitos humanos, em particular os que trabalham nos

148 Esse último tipo de jurisdição só terá lugar se o Estado onde ocorreu o crime não tiver condição (ou interesse)

setores militares, policiais, de inteligência e jurisdicionais; iii) tomar medidas para a garantia de um judiciário independente, imparcial e operacionalmente efetivo, de acordo com os padrões internacionais do devido processo legal; e iv) dar um treinamento compreensivo e contínuo em matéria de implementação de direitos humanos e, quando aplicável, direito humanitário aos seus servidores, especialmente os que trabalham nos setores mencionados no item “ii”.

Pouco antes do estudo acima comentado, a Comissão de Direitos Humanos aprovou o específico Relatório sobre a Administração da Justiça Através dos Tribunais Militares (2002), submetido pelo perito Louis Joinet149. Destaca-se este documento por configurar uma das

primeiras manifestações do órgão exclusivamente sobre os limites quanto à utilização de cortes militares para o julgamento de pessoas sob a égide das legislações castrenses, algo que veio ainda a ser repetido antes da extinção da comissão.

O estudo inicia enfatizando que o estabelecimento de uma legislação e jurisdições especiais para os agentes militares remonta a um período em que não havia distinção entre os atos de comandar e julgar, algo que somente seria dissociado a partir do século III da era cristã. Para o relator, tais jurisdições originalmente abrangiam apenas os membros dos exércitos. Foi com as guerras de descolonização/independência da África e da Ásia, bem como da proliferação das ditaduras latino-americanas, que se criou uma tendência pela ampliação da competência de tais entes para o julgamento também de civis (§ 3º). O fenômeno do crescimento da jurisdição militar ao redor do mundo gerou duas principais linhas de críticas (§ 4º): i) uma orientada para a garantia da impunidade do seu pessoal, em particular os oficiais de alto escalão, muitos deles responsáveis por graves violações de direitos humanos capazes de caracterizar crimes de direito internacional; e ii) uma inclinação para o alargamento de sua jurisdição para abranger integrantes da sociedade civil.

O relatório expõe que o estabelecimento da competência das cortes militares para o julgamento do seu próprio pessoal acusado de ter cometido graves violações de direitos humanos, prática comum nos Estados, além de ser uma das principais causas de impunidade, viola os seguintes direitos constantes no PIDCP (§ 17): i) ao efetivo remédio jurídico- processual; ii) a um julgamento justo perante um tribunal independente e imparcial; e iii) à proteção do ordenamento jurídico. O estudo menciona as decisões tomadas pelos órgãos de monitoramento convencionais e extraconvencionais da ONU que consideraram incompatíveis com o direito internacional dos direitos humanos as leis domésticas responsáveis por atribuir a

149 Aprovado na 54ª sessão da Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos, em 09 de julho

competência para a o julgamento de graves violações de direitos humanos por parte das cortes militares (§§ 21 e 22). Há também menções sobre as recentes constituições/leis responsáveis por abolir tal cenário (§ 23).

Nas suas conclusões, o perito observou uma crescente desmilitarização dos sistemas jurisdicionais ao redor do mundo. Para ele, tal fenômeno se corporifica nas crescentes restrições colocadas sobre a competência destes tribunais ou pelas mudanças em suas composições. As mais frequentes formas de sua manifestação são as seguintes (§ 28): i) a inclusão de juízes civis na composição das cortes castrenses; ii) o crescente uso (em alguns casos exclusivo) de advogados/promotores civis; iii) a transferência da competência para o julgamento dos recursos para as cortes civis ordinárias; iv) abolição destes tribunais em tempos de paz; v) fortalecimento da garantia do direito a um julgamento justo por cortes militares em tempo de guerra; e vi) acréscimo da limitação de julgamentos, por tribunais castrenses, de membros das Forças Armadas acusados de sérias violações de direitos humanos, particularmente quando constituam elas um crime perante o direito internacional.

Finalizando, o relator elaborou algumas recomendações gerais aos Estados que visam adaptar os seus tribunais militares (se existentes) ao direito internacional dos direitos humanos. Destacam-se as que determinam: i) a abolição da competência de tais órgãos para o julgamento de graves violações de direitos humanos independentemente de quem seja o acusado, tais como execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, torturas etc. (Recomendação 01); ii) a obrigatoriedade de abolição dos impeditivos legais da participação das vítimas de violações de direitos humanos nos procedimentos responsabilizatórios, algo comum em muitos países (Recomendação 04); e iii) em todos os casos, a competência de tais entes deve ser limitada ao primeiro grau de jurisdição, significando que eventuais recursos interpostos contra suas decisões hão de ser apreciados por cortes civis ordinárias (Recomendação 06).

Apreciado o relatório acima, a Comissão resolveu aprofundar mais o estudo sobre a administração da justiça por meio de tribunais militares. Solicitou-se do Relator Especial da Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos, Emmanuel Decaux, investigações sobre a matéria, o que foi feito em duas oportunidades. Primeiro foi apresentado o Relatório Parcial sobre a Administração da Justiça Através dos Tribunais Militares (2003)150

e, três anos depois, o mais completo Relatório sobre Direitos Civis e Políticos, incluindo as Questões sobre a Independência do Judiciário, a Administração da Justiça e a Impunidade

150 Aprovado na 55ª sessão da Subcomissão para a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos, em 27 de junho

(2006)151. Como o segundo documento consiste num aprimoramento do primeiro, os seguintes

comentários serão a ele limitados.

Esse último relatório, que desde o início diz não ter por objetivo “demonizar” ou “santificar” a existência dos tribunais militares, mas sim produzir uma análise detalhada da sua compatibilidade para com o direito internacional (§ 11), foi produzido sob a forma de princípios recomendatórios. Dentre os vários apresentados, 09 deles reforçam os documentos já discutidos e trazem maiores detalhes sobre as justificativas relacionadas a cada item sugerido. São eles: i) a necessidade de que a Justiça Militar faça parte da estrutura jurisdicional geral do Estado (Princípio 01); ii) a proibição da atribuição de competência para julgar civis (Princípio 05); iii) a limitação da sua competência exclusivamente para o julgamento de assuntos estritamente militares (Princípio 08); iv) a supressão da possibilidade de julgar pessoas acusadas do cometimento de graves violações de direitos humanos (Princípio 09); v) o reforço à independência judicial (Princípio 13); vi) a garantia de mecanismos de participação das vítimas nas responsabilizações dos seus algozes (Princípio 16); vii) o direito a propor um recurso contra uma decisão condenatória perante uma corte civil (Princípio 17); viii) a exclusão dos argumentos de defesa baseados na “obediência devida” e na “responsabilidade perante o superior” (Princípio 18); e ix) a necessidade de se revisar periodicamente as legislações domésticas de natureza militar (Princípio 20). Os comentários a seguir não seguirão a ordem de apresentação das recomendações, mas sim a sua pertinência temática para o objeto do trabalho. A determinação para que os tribunais militares façam parte da estrutura do Poder Judiciário interno justifica-se pela necessidade de evitar ingerências do Poder Executivo nas decisões tomadas por tais cortes (§ 13). Caso não houvesse tal distinção, as sentenças prolatadas poderiam ser revisadas pelas autoridades administrativas, algo vedado pelas normas vistas na subseção anterior. Some-se a isto a determinação de que tais cortes devem ser competentes, independentes e imparciais. Os seus juízes não podem manifestar grau de dependência para com as pessoas cujos ilícitos estão sendo apreciados, em especial em termos de hierarquia. Para tanto, de especial importância são: i) o treinamento em matéria jurídica de todos os seus componentes; e ii) a presença, em maior número possível, de juízes civis (§§ 45-47)152. Estes

tribunais não podem ser encarados como estruturas que servem para “julgar em causa própria”.

151 Aprovado na 62ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 13 de janeiro de 2006.

152 O relatório propõe uma maior participação de juízes civis nas cortes militares, mas não a supressão dos juízes

militares (o que certamente seria visto como uma afronta por inúmeros Estados). Para Rowe (2006), a razão para isso é dupla: i) se as cortes foram criadas para garantir a disciplina militar, os oficiais dos próprios quadros são os mais qualificados para tomar decisões acerca do assunto; e ii) alguns ilícitos e medidas punitivas presentes na legislação militar não possuem equivalentes na lei penal comum, o que requer a presença de corpo técnico especializado na elaboração dos julgamentos.

Como uma forma de tentar evitar a ocorrência desse tipo de vício, o relatório orienta os Estados a fornecer mecanismos às vítimas de ilícitos cuja competência repousa sobre a Justiça Militar para fins de: i) reportar a ocorrência dos crimes contra si cometidos para que a apuração judicial seja iniciada; ii) exercer o direito à intervenção processual, seja como parte, amicus curiae ou demandando uma reparação financeira; iii) recorrer de eventuais decisões que afrontem os seus direitos/interesses; e iv) ser protegida contra qualquer agressão ou ameaça motivada pela sua participação processual. Para o relator, a ausência das vítimas nas investigações realizadas perante cortes militares torna fácil o arquivamento dos casos sem a tomada dos devidos cuidados aos seus interesses, o que deve ser evitado (§ 54).

Facilita no cumprimento desta última diretriz a garantia de que eventuais recursos interpostos nas demandas travadas nos tribunais militares sejam apreciados em órgãos civis. Embora a manutenção dessas cortes justifique-se em primeira instância dado o seu caráter funcional, a manutenção de toda uma rede de superposição hierárquica jurisdicional especializada configura a existência de um paralelismo dentro do Poder Judiciário que afronta obliquamente a exigência de unidade dentro desta função estatal (§§ 56 e 57), o que torna apenas nominal a garantia da separação dos poderes.

Com base em decisões dos sistemas universal e regionais (europeu, americano e africano) de direitos humanos, o estudo recomenda a eliminação da competência das cortes militares para o julgamento de civis. Estes tribunais devem apreciar apenas causas envolvendo o pessoal militar acusado do cometimento de ilícitos de “estrita natureza militar” (§ 21). De forma alguma essa competência pode servir de subterfúgio para uma derrogação do direito ordinário, para o estabelecimento de um privilégio jurisdicional ou como uma forma de “justiça pelos próprios pares”. A natureza diferenciada da atuação destes tribunais especializados reside na disciplina intrínseca à cadeia de comando e na dificuldade das cortes ordinárias em julgar demandas relativas a fatos ocorridos em operações desenvolvidas no exterior, a exemplo da falta de competência em razão do lugar e/ou da pessoa (§ 29).

A competência quando presente grave violações de direitos humanos mereceu uma explicação à parte no relatório. Também com base em decisões dos órgãos internacionais de monitoramento, recomendou-se a restrição da competência da justiça militar para o julgamento de acusações de crimes violadores dos direitos humanos, tais como – mas não exclusivamente – as execuções extrajudiciais, o desaparecimento forçado e a tortura. A justificativa dessa supressão é dupla (§ 32): i) esses atos, pela sua própria natureza, não performam o escopo de atribuições/deveres imputados aos agentes militares; e ii) evita-se que as autoridades arquivem

os casos por discordar da necessidade da investigação em detrimento dos interesses das vítimas. Sem prejuízo da análise do caso concreto, argumentos de defesa afetos ao “obedecimento às ordens superiores” não podem ser aceitos como escusas para o cometimento de violações de direitos humanos (§§ 58 e 59)153. Segundo o relatório, a atuação do judiciário civil nestes casos

é um passo decisivo no combate à impunidade.

Como a existência de tribunais militares justifica-se por eventualidades práticas, recomenda-se que as legislações domésticas sejam periodicamente revisadas por peritos independentes. Devem eles apresentar proposições capazes de suprimir os ranços autoritários presentes em tais normas e transferir, no máximo possível, as suas competências para as cortes civis. A discussão sobre a necessidade de manutenção de uma legislação e um aparato decisório especiais para a instituição militar contribui para a sua maior democratização perante a sociedade civil (§§ 64-66).

Percebe-se que os estudos realizados pela Comissão de Direitos Humanos nos últimos anos de sua existência foram relevantes para a conformação dos tribunais militares dentro da ordem jurídica internacional. A despeito da não subsistência do órgão na estrutura da ONU, tais documentos continuam a ser utilizados em pareceres/decisões elaborados pelos atuais mecanismos convencionais/extraconvencionais de proteção dos direitos humanos.