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3. SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E

3.3. A incompatibilidade da Justiça Militar para apuração de violações de direitos humanos

3.3.1. Casos do Peru

O Caso Durand e Ugarte v. Peru (2000) disse respeito ao uso da Justiça Militar para exclusão da responsabilidade de integrantes das Forças Armadas peruanas envolvidos no massacre promovido em instalações penais das quais resultaram 111 mortos e 34 feridos. Tal evento ocorreu em 19/06/1986 e a corte entendeu que a força empregada pelos agentes foi desproporcional à ameaça enfrentada. Estes últimos responderam perante a jurisdição castrense e foram absolvidos das execuções extrajudiciais e da falta de diligência para a identificação das vítimas. Os senhores Nolberto Durand Ugarte e Gabriel Pablo Ugarte Rivera, que estavam presos por força de recentes condenações também oriundas da Justiça Militar pautadas em supostas atividades terroristas, nunca foram encontrados nos escombros.

A CorteIDH considerou violados, pelo uso da jurisdição militar para o julgamento dos agentes responsáveis pela violenta atuação nos motins, os arts. 8º e 25 da ConvADH. Não poderia o foro castrense ser utilizado no caso porque (§§ 115-131): i) existe uma associação entre os julgadores e os investigados, haja vista fazerem parte da mesma instituição e constarem numa linha de comando; ii) não se coadunar com a competência funcional da Justiça Militar a apreciação de violações de direitos humanos contra civis; e iii) a impossibilidade de tal jurisdição oferecer as garantias imprescindíveis à satisfação dos direitos das vítimas e dos seus familiares, em especial a participação processual e a possibilidade de constranger as autoridades a envidar esforços no encontro ou na identificação dos desaparecidos.

A segunda situação destacada tem relação com a execução extrajudicial e o desaparecimento forçado ocorridos na Universidade Nacional de Educação Enrique Guzmán e Valle, conhecida como La Cantuta, local objeto de monitoramento contínuo das Forças

295 Destacam-se os seguintes julgados: Caso Palamara Iribarne v. Chile (2005), Caso Almonacid Arellano e Outros

v. Chile (2006), Caso Zambrano Vélez e Outros v. Equador (2007), Caso Tiu Tojín v. Guatemala (2008), Caso Nadege Dorzema e Outros v. República Dominicana (2012), Caso Usón Ramírez v. Venezuela (2009) e Caso Ortiz Hernández e Outros v. Venezuela (2017).

Armadas no início do governo de Alberto Fujimori. No Caso La Cantuta v. Peru (2006), a Corte apreciou a alegação de responsabilidade internacional do Estado pela atuação dos militares, em especial do chamado grupo Colina297, na invasão das residências de docentes e alunos da

instituição na madrugada de 18/07/1992. Esses eventos foram investigados simultaneamente pelas jurisdições comum e militar e posteriormente concentrados na última em razão de uma inovação legislativa. Embora tenham sido proferidas algumas condenações, uma lei de anistia posterior tornou-as sem efeito.

A CorteIDH declarou a exclusividade da apreciação dos fatos pela Justiça Militar como uma violação aos arts. 8º e 25 da ConvADH. O órgão considerou que a remessa dos procedimentos penais para o foro castrense, medida concatenada pela atuação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, representou uma manobra estatal para a garantia da impunidade dos acusados298. As razões para o não cabimento de tais julgamentos na jurisdição

militar são as mesmas relacionadas à ausência de autonomia do órgão. Apesar de o Estado ter, a partir dos anos 2000, iniciado uma política de aproximação para com o sistema interamericano e reaberto as investigações, dessa vez na Justiça Comum, sobre os fatos relacionados ao caso de La Cantuta, essa remessa dos processos penais para a jurisdição especial foi vista como uma violação aos citados artigos convencionais (§§ 133-145).

O Caso de Osorio Rivera e Membros de sua Família v. Peru (2013) correspondeu à queixa formulada perante a CorteIDH a respeito do desaparecimento forçado de Jeremias Osorio Rivera, em 28/04/1991. Agentes militares liderados pelo Tenente do Exército Juan Carlos César Tello Delgado prenderam a vítima junto com o seu primo, Gudmer Tulio Zárate Osorio, quando estavam eles numa festividade após um evento esportivo. A acusação que pesava sobre ambos era de serem membros de organizações terroristas. Enquanto Zárate Osorio foi liberado em poucos dias, os familiares de Osorio Rivera foram informados de sua soltura pela apresentação de um documento, mas nunca tomaram conhecimento do seu paradeiro.

297 Segundo apurado pela CorteIDH a partir do relato testemunhal do General reformado Rodolfo Robles Espinoza

(§ 60(j)), tratou-se de um destacamento organizado em cadeia de comando, composto por aproximadamente 50 pessoas, estruturado orçamentariamente dentro do Exército e encarregado da realização de missões especiais de inteligência/operações secretas.

298 “§ 143. A Câmara Penal da Corte Suprema peruana resolveu o conflito de competência a favor do foro militar,

que não atendia aos padrões de competência, independência e imparcialidade expostos, e que condenou alguns militares pelos fatos do caso, dispôs a extinção a favor de outros e aplicou as leis de anistia (par. 80.55 supra e pars. 188 e 189 infra). No contexto de impunidade citado (pars. 81, 92, 93, 110 e 136 supra), somado à incompetência para investigar esse tipo de crime nessa jurisdição, fica claro para este Tribunal que a manipulação de mecanismos legais e constitucionais articulada nos três poderes do Estado resultou no encaminhamento irregular das investigações ao foro militar, que obstruiu durante vários anos as investigações na justiça ordinária, que era o foro competente para realizar as investigações, e pretendeu manter a impunidade dos responsáveis.”

A Corte aproveitou o caso para reforçar o caráter hediondo do desaparecimento forçado e o dever das autoridades estatais de conduzir – de ofício – todos os esforços administrativos e judiciais necessários ao encontro da vítima (§§ 178 e 179). Para retufar o argumento do Estado de que a jurisdição militar era apropriada à época dos fatos para julgar a acusação contra o responsável pelo ilícito, o órgão resgatou o entendimento já estabelecido no Caso Durand e Ugarte v. Peru (2000) no sentido de que tal foro desde sempre foi considerado pela ConvADH como incompatível com a apreciação de graves violações de direitos humanos cometidas por militares contra civis (§ 189), especialmente em face da gravidade que constitui o desaparecimento forçado299.

Uma situação que tencionou o entendimento da CorteIDH foi apreciada no Caso Cruz Sánches e Outros v. Peru (2015). Após a deflagração de um estado de emergência, realizou-se uma operação militar em 22/04/1997 com o objetivo de resgatar aproximadamente 600 reféns feitos pelo Movimento Revolucionário Túpac Amaru a partir da invasão da residência do Embaixador do Japão no Peru (senhor Morihisa Aoki). Segundo as informações oficiais liberadas pelo governo, todos os integrantes do movimento paramilitar foram mortos. Contudo, declarações posteriores emitidas no ano 2000 pela imprensa a partir de relatos dos reféns sustentaram que 03 guerrilheiros haviam sido capturados com vida, o que levantou suspeitas de terem sido vítimas posteriores de execuções extrajudiciais.

Iniciaram-se processos penais tanto nas jurisdições comum e militar acerca desses fatos. Foram averiguadas na jurisdição castrense as acusações relacionadas às execuções de Herma Luz Meléndez Cueva e Víctor Salomón Peceros Pedraza. Segundo o Estado, não houve violação aos arts. 8º e 25 da ConvADH porque tais indivíduos não eram civis e sim membros de grupos paramilitares. Esse entendimento não foi compartilhado pela CorteIDH, que considerou a possibilidade de comprovação judicial da neutralização e posterior execução destas pessoas circunstância capaz de retirar caráter militar do caso e qualificá-lo como uma

299 “§ 190. Las alegaciones de desaparición son actos que guardan relación con hechos y tipos penales que en

ningún caso tienen conexión con la disciplina o la misión castrense. Por el contrario, los actos alegados cometidos por personal militar contra Jeremías Osorio Rivera afectaron bienes jurídicos tutelados por el derecho penal interno y la Convención Americana, como la dignidad, libertad e integridad personal de la víctima. Por lo tanto, la Corte reitera que los criterios para investigar y juzgar violaciones de derechos humanos ante la jurisdicción ordinaria residen no en la gravedad de las violaciones sino en su naturaleza misma y en la del bien jurídico protegido. Es claro que tal conducta es abiertamente contraria a los deberes de respeto y protección de los derechos humanos y, por lo tanto, está excluida de la competencia de la jurisdicción militar. Por consiguiente, la intervención del fuero militar para la investigación por la desaparición forzada del señor Jeremías Osorio Rivera entre el 22 de julio de 1992 y el mes de octubre de 1996 contrarió los parámetros de excepcionalidad y restricción que lo caracterizan e implicó la aplicación de un fuero personal que operó sin tomar en cuenta la naturaleza de los actos involucrados.”

grave violação de direitos humanos300, o que atrai a competência da Justiça Comum (§§ 396-

404).

Outra dinâmica de desaparecimento forçado foi escrutinada no Caso Comunidade Campesina de Santa Bárbara v. Peru (2015). Membros do exército peruano, em 04/07/1991, foram responsáveis pelo sequestro de 14 pessoas, dentre elas crianças e idosos, os quais sofreram agressões físicas e foram posteriormente levados para uma mina abandonada. Após isso, não se teve mais notícia do paradeiro de tais indivíduos. O caso foi parcialmente julgado na jurisdição militar do Peru, que, segundo a CorteIDH, tratou de ocultar a idade real de parte das vítimas (crianças/adolescentes) a fim de forjar uma situação de enfrentamento armado. As considerações já sedimentadas sobre a incompetência da Justiça Militar para a análise de conjunturas desta natureza foram reforçadas (§§ 243-246).

A Corte também foi instada a se manifestar sobre a alegada existência de um padrão de abuso, maus tratos e torturas existente no treinamento das Forças Armadas peruanas já nos anos 2000. No Caso Quispialaya Vilcapoma v. Peru (2015), tratou-se da situação do senhor Valdemir Quispialaya Vilcapoma, que ingressou voluntariamente no serviço militar em 14/11/2000 e, a partir de então, passou a sofrer agressões físicas e psicológicas. Em 05/12/2000, sofreu ele um acidente com o manuseio de um fuzil responsável por atingir o seu olho direito e causar-lhe pequena perda de acuidade visual. Pouco depois, em 26/01/2001, quando estava realizando uma prática de tiro e tendo dificuldades em sua performance, ele foi penalizado pelo suboficial Juan Hilaquita Quispe com insultos e pauladas por todo o seu corpo, inclusive no olho já machucado. O resultado disso foi a debilidade de sua saúde física e psíquica consistente na perda total da sua visão com o olho direito e a instalação de um estado de depressão crônica. Tais fatos, tornados conhecidos pelas autoridades em razão da notificação feita pela médica que atendeu a vítima após o incidente de 26/01/2001, foram objeto de apuração simultânea nas jurisdições comum e militar. O conflito de competência foi resolvido pela corte

300 Ҥ 400. La Corte tiene presente que, a diferencia de los casos previos de los que ha tenido oportunidad de

conocer en los que se debatía sobre la competencia de la jurisdicción militar para la investigación, juzgamiento y sanción de violaciones de derechos humanos cometidas por militares, en el presente caso las presuntas víctimas no son civiles, sino integrantes de un grupo armado, quienes participaron en las hostilidades en el marco de una operación de rescate de rehenes. La Corte no considera, sin embargo, que este elemento sea determinante para apartarse de su jurisprudencia ya que lo relevante es que las alegaciones se presentan respecto de personas presuntamente hors de combat que serían acreedoras de las garantías estipuladas en el artículo 3 común a los cuatro Convenios de Ginebra. En efecto, los hechos relativos a las presuntas ejecuciones extrajudiciales que fueron denunciadas a fines del año 2000 y principio del año 2001 se habrían producido tal como se alega tras que los miembros del MRTA, presuntas víctimas de este caso, hubieran sido capturados o puestos hors de combat, lo que hubiera convertido a estas alegadas ejecuciones, de haberse comprobado, en serias violaciones de derechos humanos de cuya investigación, juzgamiento y sanción debiera haber conocido en exclusiva la jurisdicción ordinaria.”

superior peruana em favor do foro castrense com base no entendimento de que os atos apurados ocorreram no contexto e nas instalações referentes ao serviço militar (§§ 141-143). Percebe-se que o elemento definidor da competência castrense no caso, de acordo com a jurisdição doméstica, é o fato de o autor e a vítima do crime pertencerem aos quadros militares do Peru.

Esse ambiente permitiu à Corte avançar em sua jurisprudência e ostentar o entendimento de que graves violações de direitos humanos, por não perfazerem o âmbito de atuação dos órgãos militares, devem ser julgadas pela Justiça Comum mesmo quando os envolvidos forem integrantes das Forças Armadas301. Como a integridade física da vítima não

é um bem jurídico próprio da ordem militar, carece de competência a jurisdição especial para a investigação e o julgamento dos fatos, argumento este que se alinha ao entendimento dos mecanismos de monitoramento da ONU (§§ 144-152). Isso fez com que a permissão estatal para a apuração dos fatos pela Justiça Militar, ainda que parcial, configurasse uma violação à ConvADH.

A última situação destacada não caracterizou maiores avanços na jurisdição da CorteIDH. No Caso Tenorio Roca e Outros v. Peru (2016), o Estado foi responsabilizado pelo desaparecimento forçado de Rigoberto Tenorio Roca, que, em 07/07/1984, foi detido por membros da Marinha de Guerra quando se deslocava com sua esposa num ônibus a caminho de uma base do Exército para se informar sobre quando começaria a execer a sua função pública decorrente de aprovação em concurso. O paradeiro da vítima nunca mais foi conhecido. Pelo fato de terem sido abertos simultaneamente procedimentos nas Justiças Comum e Militar para a apuração de tal crime, o órgão regional reiterou o seu entendimento pela exclusividade do foro ordinário para o conhecimento de graves violações de direitos humanos e considerou incompatível com a ConvADH a postura estatal de permitir à jurisdição castrense o conhecimento e a apreciação da responsabilização penal por esse fato (§§ 194-204).

301 “§ 147. La jurisdicción militar se establece para mantener el orden en las fuerzas armadas. Por ello, su aplicación

se reserva a los militares que hayan incurrido en un delito o falta en ejercicio de sus funciones y bajo ciertas circunstancias. En consecuencia, tomando en cuenta la jurisprudencia constante de este Tribunal, debe concluirse que si los actos delictivos cometidos por una persona que ostente la calidad de militar activo no afectan los bienes jurídicos de la esfera castrense, dicha persona debe ser siempre juzgada por tribunales ordinarios. Lo anterior se aplica aún en el caso de delitos en que el imputado sea miembro de las fuerzas armadas y no sea un civil el sujeto pasivo del delito o titular del bien jurídico protegido, porque, conforme su jurisprudencia constante, la jurisdicción penal militar debe estar encaminada a la protección de intereses jurídicos especiales, vinculados a las funciones propias de las fuerzas armadas y todas las vulneraciones de derechos humanos deben ser conocidas en la jurisdicción ordinaria, lo cual incluye las cometidas por militares contra militares. § 148. El proceso desarrollado en el fuero castrense tramitó bajo la calificación de abuso de autoridad siendo su objeto determinar si el Suboficial Hilaquita Quispe se excedió en el empleo de la disciplina militar. Sin embargo, el bien jurídico afectado era primero y principalmente la integridad física de Valdemir Quispialaya. Por este motivo la investigación debió haberse llevado a cabo en el fuero ordinario.”