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2. GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA MILITAR NO

2.2. Estudos específicos desenvolvidos pelos mecanismos de proteção dos direitos humanos

2.2.3. Relatoria Especial para a Independência dos Juízes e Advogados

A Comissão de Direitos Humanos criou, em 1994, a Relatoria Especial Sobre a Independência dos Juízes e Advogados com o objetivo de estimular investigações relacionadas aos fatores que conduzem à fragilidade da independência jurisdicional e a consequente violação de direitos humanos dela decorrente. Originalmente projetada para existir por 03 anos, a relatoria foi acolhida pelo Conselho de Direitos Humanos e o seu mandato vem sendo sistematicamente renovado a fim de produzir materiais capazes de subsidiar um debate na ONU acerca das melhores práticas para a garantia da independência e da imparcialidade dos operadores jurídicos domésticos.

Dentre os trabalhos desenvolvidos pela Relatoria que abrangem a competência da justiça militar sem ter como foco um Estado específico, destacam-se o relatório periódico submetido ao Conselho de Direitos Humanos em 2012 e o estudo apresentado perante a Assembleia Geral da ONU em 2013. Enquanto o primeiro tangenciou a questão do papel dos agentes públicos responsáveis pela condução das ações penais dentro das ordens jurídicas

internas154, o segundo perfez um amplo estudo sobre as atuais limitações impostas pelo direito

internacional à citada justiça especializada.

No primeiro desses documentos, o Relatório Anual da Relatora Especial sobre a Independência dos Juízes e Advogados (2012)155, Gabriela Knaul156, foi ressaltado que os

agentes públicos responsáveis por conduzir investigações e ações penais no sistema jurisdicional militar não estão isentos de cumprir com os rigores exigidos pelo direito internacional, em especial os concernentes à independência, imparcialidade e ao respeito ao Estado de Direito (§ 55). A perita reforçou o caráter excepcional da jurisdição militar, a qual só deve ser utilizada para aferir o cometimento de crimes praticados por agentes militares que guardem direta conexão com o seu contexto funcional, excluindo-se os atos que envolvam violações de direitos humanos. Numa manifestação que pode ser caracterizada como um avanço, o relatório determina a impossibilidade de tal justiça especializada julgar casos que envolvam os interesses de civis (§ 56)157.

O estudo também demonstra a preocupação da relatoria com a independência dos juízes militares em razão de, em muitos Estados, suas estruturas burocráticas serem subordinadas ao Ministério da Defesa, o que pode gerar dúvidas sobre a sua capacidade de agir com objetividade e imparcialidade. Medidas devem ser tomadas para que tais funcionários trabalhem sem receios de intimidação, assédio, interferência indevida ou exposição injustificada a responsabilizações civis, penais ou de qualquer outra natureza (§ 57). As recomendações do parecer exortam os governos a cumprirem as suas diretrizes (§§ 106 e 107). A partir da solicitação feita pelo Conselho de Direitos Humanos em resolução158 que

versou sobre a integridade do sistema judicial dos Estados, foi produzido pela relatoria especial e apresentado para a Assembleia Geral da ONU o Relatório sobre a Independência dos Juízes e Advogados com Relação à Administração da Justiça Através de Tribunais Militares (2013)159.

Em face do receio de ocorrerem possíveis violações de direitos humanos pelo uso destas cortes, o estudo abrangeu: i) a independência e a imparcialidade dos seus juízes; ii) a sua jurisdição

154 No relatório, elaborado na língua inglesa, tais funcionários são chamados de prosecutors. Na tradição jurídica

brasileira, tal função remete às atribuições dos membros dos diversos ramos do ministério público (estadual, federal, militar etc.).

155 Aprovado na 20ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em 07 de junho de 2012.

156 A relatora especial, que ficou no cargo de 01/08/2009 a 31/07/2015, é brasileira. Sua experiência profissional

como Juíza de Direito no Tribunal de Justiça do Mato Grosso certamente contribuiu para o desenvolvimento das peritagens.

157 Os relatórios produzidos na década anterior pela Comissão de Direitos Humanos já excluíam a possibilidade

de a justiça militar julgar casos que compreendessem violações de direitos humanos ou que tivessem civis como réus, mas não proibiam irrestritamente tal competência pela tão só presença de “interesses de civis” nas demandas.

158 Adotada na 19ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em 18 de abril de 2012. 159 Aprovado na 68ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em 07 de agosto de 2013.

pessoal, incluindo a questão da investigação e do julgamento de civis; iii) a jurisdição material dos tribunais militares, em especial com relação à investigação e ao julgamento das denúncias de sérias violações de direitos humanos cometidas pelo pessoal militar; e iv) as garantias do devido processo legal junto a tais cortes.

O relatório reconhece que, em alguns Estados, o objetivo fundamental com a existência dos tribunais militares é lidar com os assuntos afetos à disciplina160, à eficiência e à moral

militares. Nestes casos, a razão de ser de tais cortes consiste na capacidade de assegurar efetiva e eficientemente a obediência para o seu pessoal de modo a mantê-lo sempre em estado de prontidão (§ 23). No entanto, muitos governos desvirtuam este propósito e estruturam os seus órgãos especializados de jurisdição como uma ferramenta que serve aos interesses exclusivos da classe em detrimento da população civil, como nos registros históricos de regimes militares que usaram estes tribunais para atingir os grupos sociais eleitos como “inimigos internos” e anistiar os seus próprios ilícitos (§ 24). A despeito de qualquer particularidade nacional, o estudo indica o caminho ideal da uniformização das cortes militares: investigar e julgar atos de natureza puramente militar praticados pelos seus agentes (§ 34).

Com base na tradição constitucional da separação dos poderes, o estudo salienta que, para o cumprimento dos requisitos da independência jurisdicional, os tribunais militares devem ser separados dos Poderes Executivo e Legislativo, bem como evitar qualquer interferência externa – inclusive das Forças Armadas – na administração da justiça (§ 38). O relatório salienta que a independência de um órgão judicial depende da forma como os seus juízes são recrutados e da duração dos seus mandatos, assim como da existência de garantias contra eventuais pressões exteriores sobre eles exercidas (§ 41). Some-se a isso a questão concernente à própria composição de tais órgãos jurisdicionais, tacitamente comentada nesta parte do documento161.

160 Adota-se por parâmetro de “disciplina militar” a conceituação de Lederer (2017, pp. 515): “There is near

unanimous agreement that the fundamental purpose of a military legal system is discipline. Although there are any number of definitions, we might initially define ‘discipline’ as compliance with military orders. If troops do not do what they’re told when and in the manner instructed, the mission likely fails. If they exceed instructions or violate given constraints, the mission may fail. Even if successful, departing from orders may create unacceptable negative consequences, as in killing non-combatants and vastly complicating the applicable political situation. Such a definition then includes compliance with positive instructions, e.g., ‘take that hill’, and negative ones, such as ‘Don't rape, plunder, pillage, or mutiny’. Under the traditional view of discipline, to be safe a soldier should do no more and no less than instructed. Anything else puts the soldier at risk.”

161 A relatora menciona o caso Martin v. Reino Unido (2007), julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos,

no qual considerou-se que a mera presença de um número pequeno de civis em cortes-marciais não garante os requisitos de independência/imparcialidade exigidos pelo art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950). Na situação analisada, o julgamento realizado pelo tribunal militar doméstico contra o autor envolveu 06 juízes, 02 deles civis e 04 militares. Quanto menor o número de civis em cortes deste tipo, mais importante se torna aferir o papel por eles desempenhado em cada deliberação.

O estudo admite que uma das maiores controvérsias quanto ao objeto investigado reside na (im)possibilidade de os tribunais militares julgarem casos que envolvam agentes militares acusados de terem cometido sérias violações de direitos humanos. Por um lado, os especialistas em direito internacional dos direitos humanos manifestam-se por meio de declarações e mecanismos convencionais/extraconvencionais sobre a impossibilidade de cortes especializadas lidarem com matéria tão delicada, haja vista a possibilidade de servirem elas de “escudo” ao seu pessoal, e que tais atos fogem ao escopo das atribuições das Forças Armadas (§§ 63-69). De maneira oposta, os militares argumentam que, assim como as violações de direitos humanos mais graves, o cometimento de crimes ordinários como homicídios, estupros, fraudes ou furtos/roubos não se alinham ao seu dever funcional, mas configuram violação aos deveres de conduta que deve ser reprimida pelos membros da própria classe para fins de manutenção do seu padrão de disciplina (§ 70). Para este segundo raciocínio, não há diferenciação qualitativa quanto ao tipo de ilícito perpetrado que justifique a exclusão das graves violações de direitos humanos da alçada da justiça militar.

Sem posicionar-se sobre qual dos argumentos vistos no parágrafo anterior é o mais adequado à conjuntura do direito internacional, a relatora acentua que os abusos cometidos por vários governos militares latino-americanos levaram diversos Estados da região a excluir a competência da justiça especializada quando um agente militar é acusado de uma violação de direitos humanos (§ 71)162. A aparente dubiedade do relatório se esvai nas suas recomendações,

quando se determina que: i) a competência dos tribunais militares em razão da matéria deve ser restrita aos crimes de natureza estritamente militar que interessem à proteção da instituição em si, como a deserção, a insubordinação ou o abandono de posto ou comando (§ 98)163; ii) os

Estados não podem recorrer a uma interpretação elástica do conceito de “serviços relacionados” para deslocar casos que se desenvolvem na jurisdição civil para a especializada e crimes comuns cometidos pelo pessoal militar devem ser julgados em cortes ordinárias, a não ser que, dadas as circunstâncias peculiares do seu cometimento, não possam estas exercer a sua jurisdição sobre o fato (§ 99)164; e iii) em qualquer caso, incluindo quando o suposto autor pertencer ao pessoal

162 Citam-se expressamente as experiências da Colômbia e do México, que adotaram tal postura, respectivamente,

por meio de uma emenda constitucional e de um julgamento da Suprema Corte de Justiça da Nação. A constituição colombiana, contudo, teve o seu art. 221 novamente modificado em 2015 para fins de atribuir novamente à justiça militar a competência sobre ilícitos cometidos pelas Forças Armadas em serviço ativo, independentemente de o caso envolver violações de direitos humanos.

163 Dentre os relatórios gerais estudados, este é o único a exemplificar quais seriam, em espécie, esses crimes de

natureza estritamente militar.

164 Este é o caso, p. ex., quando o crime é cometido em território exterior ao Estado e não é possível estabelecer

militar, as cortes civis são o foro adequado para a investigação e o julgamento de sérias violações de direitos humanos (§ 106).

Fica evidente que as recomendações da Relatoria Especial para a Independência dos Juízes e Advogados resgatam e atualizam os trabalhos desenvolvidos na década anterior pelos peritos da Comissão de Direitos Humanos. Para finalizar o tópico, passe-se à análise de algumas resoluções emitidas por mecanismos cujos focos de trabalho são mais diversificados.