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2. GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA MILITAR NO

2.3. As recomendações direcionadas aos Estados pelos órgãos da ONU

2.3.1. Mecanismos extraconvencionais

2.3.1.2. Visitações a outros Estados

2.3.1.2.2. Colômbia

A partir da segunda metade do século XX, a Colômbia passou a conviver com grupos guerrilheiros paramilitares e com a ascensão do tráfico de drogas. Isso fez com que o Estado, com o objetivo de neutralizar tais ameaças à instabilidade da segurança do país, fizesse uso dos métodos similares aos demais utilizados na América Latina: militarização da segurança pública e estabelecimento da competência da Justiça Militar para o julgamento de violações de direitos humanos envolvendo civis. Este cenário atraiu a atenção dos órgãos da ONU.

No fim de 1988, o Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários visitou o país e expôs em seu relatório193 a violência lá enfrentada (§§ 06-21),

com ênfase nas denúncias recebidas acerca do desaparecimento forçado de pessoas ditos praticados tanto pelos criminosos quanto por autoridades estatais. O estudo menciona que a constituição colombiana determina a competência das cortes especializadas apenas para casos envolvendo agentes militares e que digam respeito aos seus delitos de natureza tipicamente militar. A Corte Constitucional da Colômbia, em decisão da época, chegou a estabelecer que os tribunais militares não têm competência para o julgamento de acusações contra civis, entendimento censurado pelo então Ministro da Defesa, General Rafael Samudio Molina (§ 42). O grupo de trabalho verificou que, em regra, os militares são julgados perante cortes especializadas apenas em casos que envolvam infrações aos seus deveres funcionais. Caso haja algum conflito de competências, cabe à Corte Constitucional da Colômbia resolvê-lo (§ 43). O relatório não estuda casos individuais de desaparecimento forçado, mas menciona a recepção de denúncias oriundas da população no sentido de que comumente os crimes julgados pelos

192 Aprovado na 55ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 11 de janeiro de 1999. 193 Aprovado na 45ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 06 de fevereiro de 1989.

tribunais especializados tendo como réus os militares permanecem impunes (§ 44). Além disso, ressalta-se uma característica negativa da legislação colombiana: as vítimas e os seus parentes não podem interferir nos julgamentos dos supostos autores dos ilícitos (§ 45). Fica clara pelas recomendações a preocupação dos peritos quanto à incapacidade de os sistemas legislativo e jurisdicional colombiano garantirem a punição dos autores dos desaparecimentos forçados.

Com o crescente número de denúncias de homicídios, torturas e desaparecimentos forçados impunes chegando à ONU, os Relatores Especiais da Tortura e das Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias solicitaram uma visita à Colômbia, o que se deu em 1994. O relatório conjunto194 aduziu que o comportamento dos tribunais militares em matéria

de condenações varia consideravelmente a depender do tipo de crime investigado: quando são delitos associados à quebra do decoro militar, a imposição de penalidades é comum; já nos casos em que são apreciadas violações de direitos humanos em desfavor de civis, são altas as taxas de improcedência por razões materiais ou processuais (§§ 87 e 88). Soma-se a isso a modificação legislativa que retirou da Corte Constitucional da Colômbia o poder de dirimir conflitos de competência entre tribunais civis e militares. Esta tarefa passou a ser desempenhada por uma câmara do Conselho Superior de Justiça, que rotineiramente decide em favor dos órgãos especializados (§ 90). Além de se reforçar a incompatibilidade de tal postura com o direito internacional, recomendou-se a transferência de todos os casos envolvendo violações de direitos humanos para a jurisdição civil e o fortalecimento desta instância (§§ 116 e 117).

A Relatoria Especial sobre a Independência dos Juízes e Advogados visitou a Colômbia em 1996 em meio a uma crise quanto à administração da justiça no tocante à impunidade (tanto nos tribunais militares quanto civis). Seu relatório195 apontou, com base em

informações da Procuradoria-Geral do país, uma taxa de impunidade da ordem de 97% (§ 27). Ao analisar mais detalhadamente as causas de tal fenômeno, o relator indicou que a inalterada competência jurisdicional militar para a apreciação de denúncias de violações de direitos humanos contra civis é um ponto chave. O estudo menciona a interpretação extensiva da categoria “delitos conexos à quebra dos deveres militares” e a falta de vontade das autoridades governamentais em modificar tal cenário como contribuições para a desestabilização do Estado de Direito colombiano, uma vez que, a despeito das recomendações já apresentadas pelos mecanismos da ONU e as orientações definidas na jurisprudência do sistema regional interamericano de direitos humanos, pouco mudou na Colômbia quanto ao assunto.

194 Aprovado na 51ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 16 de janeiro de 1995. 195 Aprovado na 54ª sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 30 de março de 1998.

Uma exceção a esse quadro foi a decisão da Corte Constitucional da Colômbia, tomada em 1997 (C-358/97), que definiu três regras para a interpretação do que pode ser considerado um delito de “natureza militar” (§§ 147 e 148): i) o ilícito deve conter um elo claro com as atividades relacionadas ao serviço funcional ativo; ii) um crime contra a humanidade não poderá ser enquadrado nesta categoria; e iii) a relação entre o ilícito especial e a atividade militar deve ser adequadamente provada perante o judiciário. Apesar de tal decisão vincular todo o sistema de justiça, sua repercussão foi pequena e o governo não tomou nenhuma medida para ao menos tentar revisar os casos em curso que pudessem contrariar a manifestação do tribunal constitucional (§ 149)196.

Como ponto positivo, foi destacada a criação de instrumentos legais para a compensação das vítimas de violações de direitos humanos, embora isso, por si só, não equilibre a balança da impunidade (§§ 152 e 153).

Em meados de 2009, o Relator Especial Sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias foi à Colômbia avaliar o cenário de assassinatos cometidos por forças estatais e paraestatais, além da efetividade dos sistemas jurisdicionais civis e militares em matéria de responsabilização criminal. Seu relatório197 expõe que, a despeito da legislação e das repetidas

decisões da Corte Constitucional da Colômbia acerca da necessidade de as sérias violações de direitos humanos praticadas por militares serem julgadas por tribunais civis, um dos maiores obstáculos para que isso ocorra é a recusa da Justiça Militar em abrir mão dos casos que estão sob a sua jurisdição (§§ 37 e 38). Apesar das diretivas acordadas entre o Ministério da Defesa e a Procuradoria-Geral para a fixação da competência civil, restam centenas de processos de conflito jurisdicional não resolvidos que causam atrasos nos julgamentos e prolongamento da impunidade (§ 39).

O relator ressaltou que, em algumas situações, parece haver uma tentativa deliberada dos juízes militares de frustrar os esforços do sistema jurisdicional civil em garantir a realização dos julgamentos dos militares. Atrasos injustificados nas investigações e no processamento das acusações de execuções extrajudiciais são exemplos dessa prática (§ 40). A falta de recursos humanos e financeiros também é um elemento dificultador do combate à impunidade quanto às execuções extrajudiciais (§ 41).

196 Entre os dias 23 e 31 de outubro de 2001, o Relator Especial Sobre os Defensores dos Direitos Humanos visitou

a Colômbia e constatou em seu relatório (aprovado na 58º sessão da Comissão de Direitos Humanos, em 24 de abril de 2002) que tais critérios definidos pela Corte Constitucional ainda não estavam sendo respeitados pelas instâncias inferiores e pelo governo, apesar das recentes alterações promovidas no Código Penal Militar no sentido de excluir sérias violações de direitos humanos do raio de competências destes tribunais (§§ 183-185).

Fugindo ao padrão das recomendações já analisadas, a relatoria determinou ao Presidente do sistema jurisdicional militar colombiano que, após dois meses da publicação do estudo, uma auditoria fosse realizada para identificar todos os casos de execuções extrajudiciais ainda em trâmite na Justiça Militar a fim de que fossem imediatamente remetidos à jurisdição ordinária, além da imposição de medidas disciplinares contra os juízes que se recusassem a acatar tais ordens (§ 89). No mais, foi solicitado que o Conselho Superior de Justiça analisasse mais rapidamente os casos envolvendo conflitos de jurisdição entre tribunais militares e civis (§ 90).

Na mesma época, a Relatoria Especial Sobre a Independência dos Juízes e Advogados fez uma segunda visita à Colômbia. Seu relatório198 constatou os mesmos problemas de conflito

jurisdicional, julgamento de violações de direitos humanos por cortes militares e demora na definição da competência adequada (civil ou militar) para cada caso. As recomendações caminharam em igual sentido das acima comentadas.