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As mudanças fáticas e jurídicas que conduziram à Inconstitucionalização do §3º do art.

CAPÍTULO I – RECLAMAÇÃO 4374-STF: ANÁLISE DO JULGADO

1.4 Linhas argumentativas para análise da questão constitucional

1.4.3 As mudanças fáticas e jurídicas que conduziram à Inconstitucionalização do §3º do art.

Como já visto, a decisão da Suprema Corte que concluiu pela constitucionalidade do dispositivo constante do § 3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 se deu em contexto jurídico e fático muito específico, em 1998, poucos anos após a edição da norma impugnada.

Destaca-se nesse sentido, a enorme diferença que existiu entre as políticas econômicas e sociais do Estado adotadas nos últimos anos. É que, no contexto da Lei nº 8.742/93, o critério do legislador tinha como referencial a economia então vigente e por isso sua abrangência era reduzida.

O controle da inflação e o controle dos gastos públicos por meio da Lei de Responsabilidade Fiscal trouxeram dinamismo e avanços para a economia brasileira, viabilizando a instrumentalização de inúmeros benefícios sociais, e permitindo o aumento do valor per capita considerado “digno” para a sobrevivência do indivíduo.

Dentre esses programas sociais, como já citado, destacaram-se o Programa Nacional de Acesso à Alimentação, criado pela Medida Provisória nº 108 de 2003, convertida na Lei nº 10.689 de 13 de junho de 2003 e o Programa Bolsa Família, criado pela Medida Provisória nº 132 de 2003, convertida na Lei nº 10.836 de 09 de janeiro de 2004.

Ambos preveem o valor de ½ do salário mínimo como referencial para concessão dos respectivos benefícios, revelando a necessidade de se observar que o valor de ¼ previsto pela Lei 8.742/93 não permite a análise adequada da situação de miserabilidade de um indivíduo, razão pela qual o benefício assistencial careceria de um critério mais consentâneo com a realidade econômica e social em vigor.

Mais importante ainda é a percepção de que o legislador, ao alterar os critérios econômicos para a concessão dos citados benefícios, indicou que o valor tido como referência para concessão do benefício de prestação continuada previsto no §3º do art. 20 da LOAS já não mais atende ao preceito constitucional, tornando-se imperativo reconhecer que o citado dispositivo legal passou por um processo de inconstitucionalização.

Essa inconstitucionalidade superveniente seria fruto das alterações fáticas e jurídicas que ocorreram ao longo dos últimos anos. Todo o contexto de mudanças na economia, na política e na sociedade, bem como essa disposição do legislador em adequar os patamares econômicos atuais aos critérios para concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado, indica que o comando inserto no §3º do art. 20 da LOAS não está de acordo com o preceito constitucional.

Segundo Barroso “reconhece-se nos dias atuais, sem maior controvérsia, que tanto a visão do intérprete como a realidade subjacente são decisivas no processo interpretativo”53.

Desse modo, seria inafastável ao entendimento jurisprudencial a consideração acerca de todas essas novas concepções do Direito, bem como as alterações que diversos conceitos podem ter sofrido ao longo do tempo.

O Ministro Gilmar Mendes ainda salienta54:

Nesses casos, o Tribunal não poderá fingir que sempre pensara dessa forma. Daí a necessidade de, em tais casos, fazer-se o ajuste do resultado, adotando- se técnica de decisão que, tanto quanto possível, traduza a mudança de valoração. No plano constitucional, esses casos de mudança na concepção jurídica podem produzir uma mutação normativa ou a evolução na interpretação, permitindo que venha a ser reconhecida a inconstitucionalidade de situações anteriormente consideradas legítimas. A orientação doutrinária tradicional, marcada por uma alternativa rigorosa entre atos legítimos ou ilegítimos (entweder als rechtmässig oder als

rechtswidrig), encontra dificuldade para identificar a consolidação de um

processo de inconstitucionalização (Prozess des verfassungswidrigwerdens). Prefere-se admitir que, embora não tivesse sido identificada, a ilegitimidade sempre existira.

Além dessa constatação, é de se notar ainda que o ideal para todo o ordenamento jurídico é que se preconize uma maior segurança jurídica ao dispor sobre a seguridade social. Para tanto, o legislador brasileiro deve dispor dessa matéria de forma sistemática, de modo a assegurar que os benefícios da seguridade social componham um sistema coerente com o que esperam os segurados e os necessitados.

Corrobora essa visão sistêmica do Direito o entendimento de Hans Kelsen55,

considerado precursor do positivismo jurídico, para quem o Direito é um sistema de normas jurídicas, postas pelo Estado, num escalonamento de autoridade legal hierárquica, em que a Constituição de um Estado se encontra na camada jurídico-positiva mais alta.

Bonavides56 também enxerga a sistematização do Direito como um reforço ao sentido

da própria Constituição, sendo que suas fronteiras “podem delimitar-se com mais facilidade, compondo a moldura de um sistema aberto à ambiência social, com estruturas funcionais explicáveis mediante processos de interação, informação e comunicação”.

53 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e

a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 159.

54 MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O Pensamento de Peter Häberle na Jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 2, 2008/2009.

ISSN 1982-4564.

55 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 103.

Apenas a partir dessa sistematização será possível “evitar incongruências na concessão de benefícios, cuja consequência mais óbvia é o tratamento anti-isonômico entre os diversos beneficiários das políticas governamentais de assistência social”57.

Ante todos os inconvenientes decorrentes da inconstitucionalidade reconhecida e ainda, da falta de sistematização da legislação em vigor, entendeu o Ministro Relator por conceder aos Poderes Legislativo e Executivo prazo de dois exercícios financeiros para que atuassem na criação de novos critérios econômicos e sociais para a implementação do benefício assistencial previsto no art. 203,V da CF. Com isso o Ministro conclui pela declaração de inconstitucionalidade superveniente do § 3º do art. 20 da LOAS, sem pronúncia de nulidade e mantendo a vigência do dispositivo até 31 de dezembro de 2014.

Analisado o caso concreto que inspirou a presente pesquisa, é de grande relevo examinar o instituto da reclamação constitucional a fim de reconhecer, a partir de suas principais características, sua aptidão para modificar entendimento já consolidado em jurisprudência firmada pela Suprema Corte.

CAPÍTULO II – ANTECEDENTES HISTÓRICOS, CONCEITO, FUNÇÕES E