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Interpretação constitucional como instrumento para superação das decisões em

CAPÍTULO III – RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO INSTRUMENTO DE

3.3 Interpretação constitucional como instrumento para superação das decisões em

Há um brocardo em latim que diz: “scire leges non hoc est verba earum sed vim ac potestatem tenere”, que numa tradução livre significaria “saber as leis não é conhecer-lhes as

palavras, porém o seu sentido e sua força”. No caso das leis constitucionais, a atividade de descobrir seu sentido, com vistas à proteção dos valores da sociedade, é tarefa das mais complexas, dado seu alto potencial de influência no cotidiano das pessoas.

Bulos176entende que “interpretar a constituição é descobrir o significado, o conteúdo e

o alcance dos símbolos linguísticos escritos em seus artigos, parágrafos, incisos e alíneas”. Essa tarefa, dadas as características das normas constitucionais, como se verá, não é das mais simples.

Sobre a intepretação, explicita Konrad Hesse177:

Para o Direito Constitucional, interpretação tem importância decisiva porque, em vista da abertura e amplitude da Constituição, problemas de interpretação nascem mais frequentemente do que em âmbitos jurídicos, cujas normalizações entram mais no detalhe. Essa importância é aumentada em uma ordem constitucional com jurisdição constitucional extensamente ampliada como aquela da Lei Fundamental.

175 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 194. 176 Idem. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 446.

177 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução da 20ª edição alemã de Dr. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, p. 54.

As normas constitucionais são espécie de norma jurídica e possuem forte carga principiológica, o que exige se lhes dê interpretação diferenciada, marcadamente criadora. Esse maior grau de abstração das normas constitucionais frente às demais normas, exige uma interpretação que viabilize maior garantia em favor de seus preceitos, sempre buscando um juízo de ponderação que conjugue validade e importância da norma no caso analisado.

Segundo Lênio Luiz Streck, a Constituição é um espaço garantidor das relações democráticas entre o Estado e a Sociedade, o que significa constituir alguma coisa, fazer um pacto, um contrato. Por essa razão a Constituição “passa a ser, em toda sua substancialidade, o topos hermenêutico que conformará a interpretação jurídica do restante do sistema jurídico”178.

Ainda segundo Streck os princípios “governam a Constituição, o regime e a ordem jurídica”, devendo por essa razão, se medir normativamente, sobretudo em função da sua importância vital nas constituições contemporâneas, “onde aparecem como os pontos axiológicos de mais alto destaque e prestígio com que fundamentar na hermenêutica dos tribunais a legitimidade dos preceitos da ordem constitucional”179.

Além de uma grande quantidade de normas de caráter principiológico, as normas da constituição também são repletas de conceitos jurídicos indeterminados. Esse elevado grau de imprecisão acaba impondo uma dificuldade adicional à tarefa do intérprete, que para dar efetividade às normas, deverá buscar extrair a máxima eficácia possível do texto.

Como se pôde perceber de todo o exposto até aqui, diante do caráter dinâmico e prospectivo que deve ter a Constituição, não é possível compreender a lei sem também conhecer todos os valores e princípios que norteiam a sociedade. Portanto, não há instrumento capaz de propiciar o redimensionamento das normas para adequá-las aos novos tempos, que não tenha a interpretação constitucional como ponto de partida.

Assim, se não se tratar de mudanças formais, por emendas ou revisão, produto típico da atividade legislativa, a Constituição não terá como ser compreendida, ou ter sua compreensão submetida a um processo de ressignificação, senão através dos processos interpretativos.

Em que pese a vagueza e imprecisão dos critérios para se entender os diversos fenômenos justificantes da mutação constitucional, é possível afirmar que nenhum método

178 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 225.

passa indene à interpretação das normas constitucionais e seus diversos significados dentro do contexto geral da ordem jurídica.

Portanto, se é verdade que a evolução da jurisprudência, tomada a partir da superação de uma decisão em ação de controle abstrato de constitucionalidade, pode se dar através do instrumento da reclamação constitucional, tendo como justificativa a verificação do fenômeno da mutação, imperioso é o estudo acerca da interpretação como mecanismo de concretização do direito constitucional.

De saída se afirma, a partir do que já pesquisado, que todos os mecanismos interpretativos, em maior ou menor extensão, podem provocar mutação constitucional, alterando os sentidos da Constituição para permitir sua permanência e estabilidade. As variações de sentido subjacentes à elaboração do texto permitirão o aprimoramento da convivência entre a norma e os cidadãos, permitindo que a realidade social cambiante possa ser adequada aos dispositivos normativos perenes.

Para que essa interpretação possa ocorrer é necessária a observância de um conjunto de regras teóricas desenvolvidas ao longo de séculos. Barroso afirma que o estabelecimento dessas regras hermenêuticas deve ser papel da doutrina, embora no Brasil, assim como em outros países, não é incomum se constatar a positivação de normas a respeito do tema180.

Nesse particular a doutrina de J.J. Gomes Canotilho181 é rica e considera algumas

ideias simples como essenciais ao tema da interpretação da Constituição. Segundo o professor são cinco os fundamentos de uma interpretação adequada:

Primeiro deve ser rejeitado qualquer interpretativismo extremo, como o literalismo, o textualismo ou o originalismo, vinculado a premissas teóricas insustentáveis.

Também deve ser rejeitado o pós-estruturalismo interpretativo, que em geral conduz a uma jurisprudência política, justificada a partir da defesa da mediação e integração dos valores presentes na ordem constitucional.

Deve haver uma articulação da concepção substantiva de constituição com o princípio democrático, de maneira que o desejo de constituição seja concretizado de forma política, jurídica e valorativa pelo legislador ao mesmo tempo em que são controlados juridicamente e valorativamente pelos tribunais.

A interpretação da constituição deve fundar-se numa teoria constitucionalmente adequada que congregue simultaneamente os valores de liberdade, igualdade, justiça,

180 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.144.

181 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1073.

processo democrático, eleições, forma de lei, respeito aos contratos, concebendo a constituição como um sistema normativo aberto de regras e princípios.

E por fim, a interpretação da constituição deve ser vista como concretização ou hard

law e não como soft law, ou seja, as regras e princípios previstos na Constituição devem

impor um padrão de conduta que vincule a todos e não servir como mera sugestão de comportamento.

Paulo Bonavides entende que a interpretação busca estabelecer o sentido objetivamente válido de uma norma jurídica contida em leis, regulamentos ou costumes, podendo ser definida como uma “operação lógica, de caráter técnico mediante a qual se investiga o significado exato de uma norma jurídica, nem sempre clara ou precisa”182.

Portanto, ao se interpretar um preceito, busca-se extrair dele uma norma de conduta que seja válida e que permita a solução de demandas concretas postas ao juízo intérprete. Por essa razão é que essa norma extraída do preceito é produto de atividade intelectiva que considera os elementos do texto em comunhão com os dados da realidade fática.

Gonet Branco183 afirma que a norma “não se confunde com o texto, isto é, com seu

enunciado, com o conjunto de símbolos linguísticos que forma o preceito”. Daí porque para encontrar a norma que o direito impõe, proíbe ou permite, é necessário decifrar os significados dos termos que compõe o texto do preceito.

Não basta a análise sintática do texto, desligadas da realidade social, para se concluir pela extensão e intensidade da norma diante do caso concreto. É como se verdadeiramente houvesse uma comunicação da norma com o caso concreto, dos fatos reais cotidianos, que inclusive, são modificáveis ao longo do tempo.

A norma constitucional, desse modo, para que possa atuar na solução de problemas concretos, para que possa ser aplicada, deve ter seu conteúdo semântico averiguado, em coordenação com o exame das singularidades da situação real que a norma pretende reger184.

Uma boa ilustração dessa permanente interação entre a norma e o intérprete é trazida por Luís Roberto Barroso em seu Curso de Direito Constitucional. Para introduzir o tema da interpretação constitucional, Barroso compara a interpretação do texto da constituição à

182 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 437.

183 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 83.

interpretação de uma música famosa, mais especificamente, da música Garota de Ipanema, composta por Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes.

Segundo o autor, “Garota de Ipanema na voz ou nos instrumentos de seus múltiplos intérpretes, conserva sua essência, seus elementos de identidade, mas nunca é a mesma”185. A

razão disso é a interação daquela letra e melodia com o intérprete, que possui sua própria percepção e sensibilidade.

É claro que há ressalvas, ou seja, que há limites a essa interação, já que a interpretação não pode romper os vínculos com o que se está interpretando. O objeto interpretado não pode acabar desfigurado, perdendo sua própria identidade, sob pena de se criar outra figura, absolutamente distinta da interpretada.

Essa possibilidade de se concluir por algo absolutamente distinto do que se pretendia no momento da edição da norma é a maior inquietação no campo da interpretação constitucional.

Como proposta para resolução de parte desses problemas se entende como possível lançar mão do uso da intepretação sistemática, que busca a significação da norma dentro do contexto amplo da constituição; da interpretação teleológica, que preconiza os fins no intuito de se compreender os conceitos; da interpretação histórica, que prima pela análise dos antecedentes históricos que ensejaram a edição da norma e da intepretação gramatical, presa ao sentido das palavras186.

Ocorre que não é possível hierarquizar os métodos e nem há dentre os existentes, um que seja suficiente à solução do problema de forma exclusiva, isolada. É por essa razão, que diante dos problemas remanescentes envolvendo a interpretação, Gonet Branco propõe conhecer cada um dos cinco métodos postos a disposição do intérprete como mecanismo de solução dos casos concretos187. Antes, porém, é de se destacar que todos eles não analisam as

normas de forma isoladas, mas veem a Constituição como um conjunto de normas jurídicas. O primeiro método é o clássico e sua proposição é de que a Constituição deve ser interpretada da mesma maneira que as outras leis, com os mesmos recursos da interpretação lógica, sistemática, teleológica e gramatical. A crítica a esta técnica consiste exatamente no fato de se proceder a uma equiparação das normas da constituição às outras normas, sem a mesma densidade principiológica e com finalidades distintas.

185 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 291.

186 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 84.

O segundo método é o da tópica, que valoriza o caso concreto como ponto de partida para que o intérprete escolha, dentre todas as regras e princípios que forma o conjunto da Constituição, aquele que melhor promove uma solução pacífica, justa. A crítica reside no fato de o método exigir um consenso sobre o conteúdo da Constituição, algo impensável diante da multiplicidade de valores políticos e morais existentes numa sociedade plural.

O terceiro método é o científico-espiritual. Por ele a interpretação da constituição se dá a partir da aproximação entre a interpretação e os valores culturais de um determinado povo. Na medida em que esses valores se modificam a constituição também se modifica, estando sua força sujeita às vicissitudes da realidade cambiante de um determinado povo. Essa flutuação no sentido da constituição é a maior crítica que o método sofre.

O quarto método é o hermenêutico-concretizador. Aqui, diferentemente do método da tópica, há uma valorização do texto constitucional e não do caso concreto. Portanto, para resolver uma determinada situação concreta o intérprete busca compreender o significado de um determinado enunciado normativo, considerando as circunstâncias históricas concretas e se valendo dos princípios da interpretação constitucional, sem se distanciar do problema prático que demandou a atividade interpretativa.

Por fim, o quinto método é conhecido como jurídico-estruturante. Preconiza que a norma não se confunde com seu texto uma vez que tem sua estrutura composta pelo trecho da realidade social que ensejou sua idealização. O significado da norma não pode ser extraído sem sua contextualização com a realidade social.

Seja qual for o método adotado - e nesse particular é de se repisar que nenhum deles, isoladamente, parece apresentar todas as condições de bem resolver os problemas típicos da intepretação constitucional - é inegável sua incapacidade em tranquilizar o jurista quanto à segurança de se tratar do mecanismo correto de interpretação.

Isso ocorre basicamente porque as normas constitucionais apresentam características muito próprias, que impõem dificuldades adicionais à tarefa interpretativa de seus preceitos normativos.

Canotilho, após pautar as bases teóricas dos interpretativistas e dos não interpretativistas, ressalta uma diferença básica quanto à compreensão da constituição e da interpretação das normas constitucionais.

Esta diferença radica, por sua vez, em pré-compreensões substancialmente diversas de democracia, direito, maiorias/minorias, teorias morais. Uma interpretação objectiva, previsível, democrática, vinculada às regras precisas da constituição é o tema do interpretativismo; uma interpretação – dizem os

não interpretativistas – de uma constituição concebida como projecto de ordenação inteligível e susceptível de consenso, dirigida ao futuro, formada por regras concretas e princípios abertos e valorativos, dotada de lacunas e incompletudes, é necessariamente um processo de argumentação principal e objectivante, juridicamente concretizador, a cargo de uma instância jurisdicional188.

A nosso ver, o que se está a sustentar é que a interpretação constitucional guarda essencial diferença relativamente às demais normas em função dessa sua natureza política; da sua operacionalidade; supremacia; pluralidade de valores. E são exatamente essas características que tornam a tarefa do intérprete mais complexa. Por isso se dizer que apenas a instrumentalização de um método interpretativo não é suficiente para estancar as inquietudes provocadas pela interpretação constitucional.

Se a Constituição deve ser concebida como um projeto legislativo em permanente processo de desenvolvimento, com consequente incorporação das experiências e conquistas provenientes da interação do texto com a realidade, então, nada mais propositivo do que admitir que a interpretação constitucional se dê com a participação da sociedade, fim último das leis.

Fala-se, nesse particular, de abertura da Constituição, ou das normas constitucionais. Essa abertura deve ser entendida, primeiramente, como uma indicação de que ao estabelecer o Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição o constituinte originário não dizer que seria sua exclusividade defendê-la. Pelo contrário, essa interpretação é equivocada porque todos os agentes e órgãos públicos devem aplicar a Constituição diariamente, e isso exige uma interpretação do seu texto.

Na realidade, o constituinte originário conferiu ao Supremo a atribuição de, diante de um litígio em torno de algum dispositivo constitucional, resolvê-lo com caráter de definitividade. Esse traço marcante da jurisdição constitucional não exclui o caráter plural dos diversos intérpretes da Constituição. Bulos afirma, nesse sentido, que “ninguém detém o monopólio da interpretação constitucional, nem mesmo o Poder Judiciário, aplicador do Direito por excelência”189.

Peter Häberle, pensando nisso, propôs que a constituição não deve ser interpretada segundo a lógica de um ou outro (Entweder-oder), mas sim considerando as múltiplas alternativas, em um pensamento permanentemente aberto. Nesse ponto, o autor defende que o

188 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1071.

direito constitucional hodierno deve ser interpretado sob a lógica do “pensamento jurídico do possível”, valorizando uma interpretação aberta às diversas possibilidades existentes190.

Nesse sentido, anota Häberle:

O pensamento do possível é o pensamento em alternativas. Deve estar aberto para terceiras ou quartas possibilidades, assim como para compromissos. Pensamento do possível é pensamento indagativo (fragendes Denken). Na

res publica existe um ethos jurídico específico do pensamento em

alternativa, que contempla a realidade e a necessidade, sem se deixar dominar por elas. O pensamento do possível ou o pensamento pluralista de alternativas abre suas perspectivas para “novas” realidades, para o fato de que a realidade de hoje pode corrigir a de ontem, especialmente a adaptação às necessidades do tempo de uma visão normativa, sem que se considere o novo como o melhor191.

Portanto, como se vê, o pensamento do possível admite interpretar a realidade sob a perspectiva do que ainda não é real, buscando alternativas com pensamento voltado para o futuro. Essa lógica interpretativa se encaixa perfeitamente na decisão tomada pelos Ministros da Corte no julgamento da Rcl 4374/PE, uma vez que o entendimento considerou necessária a adaptação de um julgado anterior à nova realidade, pautando esse julgamento pela interpretação de todo o contexto legislativo, modificado ao longo dos últimos anos.

Está inserida nesse contexto, por exemplo, a já abordada Teoria dos Poderes Implícitos. É que como se reconhece a Constituição como um texto aberto, caberá ao intérprete considerar que ao atribuir um poder ou competência ao órgão do Estado, o constituinte, de modo genérico, outorgou-lhe também todos os poderes e competências necessários à sua realização.

Essa percepção da interpretação como um mecanismo aberto à sociedade contribui para fundamentar o fenômeno da mutação, já que modifica a relação complexa e plural que existe entre o tempo e a Constituição, incentivando a adaptação do texto normativo estático à evolução social constante.

A partir desse raciocínio Häberle defende que toda lei, exatamente por estar sujeita à interpretação, e essa ser cambiante no tempo, é lei com duração temporal limitada, de maneira

190 MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O Pensamento de Peter Häberle na Jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 2, 2008/2009.

ISSN 1982-4564.

191 HÄBERLE, Peter. Apud. MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O Pensamento de Peter

Häberle na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Observatório da Jurisdição Constitucional.

que uma vez confrontada com a realidade a norma transforma-se necessariamente em outra norma192.

Eis que esse é exatamente o caso do §3º do art. 20 da CF/88. O confronto dessa norma com a realidade existente no momento do julgamento da ADI 1232 já não subsistia mais quando do julgamento da Rcl nº 4374/PE. Como não se pode negar os fatos da realidade, a melhor saída foi revisar jurisprudência da Corte, admitindo o fenômeno da mutação constitucional sofrida pelo dispositivo, com vistas a atender as demandas desenvolvidas pela sociedade nos tempos atuais.

Em que pese toda a argumentação apresentada até aqui tenha adotado a tese da existência de uma “intepretação constitucional”, há quem defenda que esta inexiste.

Uadi Lammêgo Bulos sustenta que “o exercício mental para se interpretar a constituição não difere daquele que fazemos para extrair o sentido e o alcance das leis comuns”.193 O autor defende que o que há, na verdade, é uma interpretação jurídica da

constituição.

Sua justificativa consiste basicamente no argumento de que todas as normas seguem os mesmos cânones hermenêuticos apontados pela Ciência Jurídica. Além disso, Bulos explicita que a norma constitucional não é a única a possuir um caráter político, sendo possível encontrar esse traço em outras normas, como o Código do Consumidor, o Código Tributário ou o Código Civil194.

Com a devida vênia, não é esse o entendimento que deve prevalecer. Como já visto ao longo do presente trabalho, a intepretação constitucional possui traços peculiares que a distingue dos métodos convencionais de exegese. Ficou claro que influenciam na interpretação a inicialidade da constituição; sua rigidez; supremacia; seu caráter eminentemente político; a amplitude do seu conteúdo; a predominância da linguagem principiológica; a eficácia diferenciada dos seus preceitos, dentre outros.

Segundo Barroso195:

Intuitivamente, tais especificidades quanto à posição hierárquica, à linguagem, às matérias tratadas e ao alcance político fazem com que a interpretação constitucional extrapole os limites da interpretação puramente

192 MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O Pensamento de Peter Häberle na Jurisprudência

do Supremo Tribunal Federal. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 2, 2008/2009.

ISSN 1982-4564.

193 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 449. 194 Ibidem, p. 449-450

195 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e