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Breve histórico da reclamação: da jurisprudência à constitucionalização

CAPÍTULO II – ANTECEDENTES HISTÓRICOS, CONCEITO, FUNÇÕES E

2.1 Breve histórico da reclamação: da jurisprudência à constitucionalização

A reclamação não é uma criação do legislador. Segundo Pontes de Miranda58 “a

reclamação foi criação espúria da Justiça do Distrito Federal, recebida depois, pelo Supremo Tribunal Federal, para quando houvesse subversão patente da hierarquia judicial, portanto em casos especialíssimos de desrespeito a julgado seu...”.

O surgimento da Reclamação coincide então com o momento em que se desenvolvem mecanismos para evitar que os órgãos jurisdicionais inferiores descumpram decisões ou ordens dos Tribunais Superiores. Por essa razão há um verdadeiro paralelismo entre a reclamação e a correição parcial, sendo este último a autêntica raiz de sua concepção. Nesse sentido Pontes de Miranda afirma:

Em leis de organização judiciária ou em regimentos internos, aludiu-se, de certo tempo pra cá, à reclamação contra atos dos juízes, em caso de erro judiciário, se não cabe recurso. Não faltou reação, na doutrina e na jurisprudência; mas o ambiente ditatorial e, ainda depois da ditadura, a mentalidade de juízes formados durante a ditadura foram propícios à medida correcional.

No Direito Romano esse mecanismo ficou conhecido como suplicatio, e servia à parte que, inconformada com algum possível erro na tramitação do processo, poderia levar o caso ao conhecimento do Imperador para que fosse avaliada a ocorrência de vícios no procedimento adotado pelos juízes59.

A primeira reclamação julgada no STF data de 195260. Nesse julgado a máxima

instância do judiciário nacional se inspira no famoso caso McCulloch versus Maryland,

58 MIRANDA. Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Forense, 1974. p. 387. 59 PINHEIRO. Wesson Alves. Reclamação ou Correição Parcial. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 21, ano

6, p. 126, jan./mar. 1981.

60 Rcl 141/SP. Ministro Relator Rocha Lagoa. DJ 24-07-1952 PP-07702 EMENT VOL-00092-01 PP-00001. Sua ementa é clara em estabelecer que a procedência da reclamação esta diretamente relacionada à necessidade do Tribunal fazer cumprir suas decisões: “A competência não expressa dos tribunais federais pode ser ampliada por construção constitucional. - Vão seria o poder, outorgado ao Supremo Tribunal Federal de julgar em recurso extraordinário as causas decididas por outros tribunais, se lhe não fôra possivel fazer prevalecer os seus próprios pronunciamentos, acaso desatendidos pelas justiças locais. - A criação dum remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel das suas sentenças, está na vocação do Supremo Tribunal Federal e na amplitude constitucional e natural de seus poderes. - Necessária e legitima é assim a admissão do processo de Reclamação, como o Supremo Tribunal tem feito. - É de ser julgada procedente a Reclamação quando a justiça local deixa de atender à decisão do Supremo Tribunal Federal”.

julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no qual figuravam como partes de um lado um banco, representado pelo seu Diretor McCulloch e o do outro lado o Estado de Maryland, para assim decidir pelo seu cabimento.

É certo que não havia nenhuma previsão normativa para o cabimento do presente instrumento, porém já se desenvolvia no universo jurídico a Teoria dos Poderes Implícitos (theoryimpliedandinherenpowers), originária exatamente do Direito Norte Americano e fruto do citado caso McCulloch versus Maryland.

Para explicar o que seria a Teoria dos poderes implícitos José da Silva Pacheco61 cita

Joseph Story:

Segundo Madison, no Federalista, nº XLIV, “desde que um fim é reconhecido necessário, os meios são permitidos, todas as vezes que é atribuída uma competência geral para fazer alguma coisa, nela estão compreendidos todos os particulares poderes necessários para realizá-la” – princípio, este, que, se apresentando mais claramente estabelecido pelo Direito e pela razão, encontrou a mais franca e irrestrita aceitação.

Para Thomas Cooley62 a teoria dos poderes implícitos decorreria da impossibilidade

fática de se dispor taxativamente de todos os meios de exercício dos poderes, razão pela qual “a concessão do principal deve incluir os incidentes necessários e próprios sem os quais tal concessão seria ineficaz”.

No paradigma adotado a Corte Americana afirma que em decorrência de a Constituição atribuir uma competência expressa a determinado órgão, estaria também atribuindo, na forma de poderes implícitos, a esse mesmo órgão, os meios necessários à consecução dos fins que lhe foram outorgados, ficando apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da própria Constituição Federal.

Daí o porquê de dizer-se que a reclamação é criação pretoriana do direito nacional. Foi a partir do voto do Ministro Rocha Lagoa na Rcl nº 141, defendendo a possibilidade de que a competência não expressa dos tribunais federais poderia ser ampliada por construção constitucional63, que se admitiu o cabimento da reclamação com essa função.

Maximiliano compartilha do mesmo entendimento no momento em que afirma64:

61 PACHECO, José da Silva. A reclamação no STJ e no STF de acordo com a nova Constituição. São Paulo:

Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 78, n. 646, p. 19-20, ago. 1989.

62 COOLEY, Thomas Mcintyre. Princípios gerais do direito constitucional dos Estados Unidos da América

do Norte. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. p. 109.

63 Ibidem, p. 109.

64 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 10. ed. Rio de Jeneiro: Forense, 1988. p. 312.

Quando a Constituição confere poder geral ou prescreve dever franqueia também, implicitamente, todos os poderes particulares, necessários para o exercício de um, ou cumprimento do outro. É força não seja a lei fundamental casuística, não desça a minúcias catalogando poderes especiais, esmerilhando providências. Seja entendida inteligentemente: se teve em mira os fins, forneceu meios para os atingir. Variam estes com o tempo e as circunstancias: descobri-los e aplica-los é a tarefa complexa dos que a administram.

Com isso o entendimento é o de que se a Constituição conferiu determinada competência, há que se depreender que implicitamente conferiu poderes para fazer valer suas próprias determinações constitucionais.

Em que pese a aceitação do cabimento da reclamação no caso citado, apenas em 1957 esse mecanismo se incorporou ao Regimento Interno do STF, sendo regulamentado expressamente no Título II, Capítulo V-A do dispositivo.

A alteração foi justificada pelos Ministros Lafayette de Andrade e Ribeiro da Costa, que ressaltaram65:

A medida processual, de caráter acentuadamente disciplinar e correcional, denominada reclamação, embora não prevista, de modo expresso, no art. 101, I a IV, da CF/46, tem sido admitida pelo Supremo Tribunal Federal, em várias oportunidades, exercendo-se, nesses casos, sua função corregedora, a fim de salvaguardar a extensão e os efeitos de seus julgados, em cumprimento dos quais se avocou legítima e oportuna intervenção. A medida da reclamação compreende a faculdade cometida aos órgãos do Poder Judiciário para, em processo especial, corrigir excessos, abusos e irregularidades derivados de atos de autoridades judiciárias, ou de serventuários que lhes sejam subordinados. Visa manter em sua inteireza a plenitude o prestígio da autoridade, a supremacia da lei, a ordem processual e a força da coisa julgada. É sem dúvida meio idôneo para obviar os efeitos de atos de autoridades, administrativas ou judiciárias, que, pelas circunstâncias excepcionais, de que se revestem, exigem a pronta aplicação de corretivo, energético, imediato e eficaz que impeça a prossecução de violência ou atentado à ordem jurídica. Assim, a proposição em apreço entende com a atribuição concedida a este Tribunal pelo art. 97, II, da Carta Magna, e vem suprir omissão contida no seu Regimento Interno.

Com esse passo dado rumo à normatização o cenário jurídico começou a mudar e a previsão de um rito para a reclamação tornou-se questão de tempo. A Constituição de 1967 logo autorizou o STF a estabelecer disciplina processual específica para os feitos de sua

65 Ministro Ribeiro da Costa apud PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e Outras Ações

competência e com isso concedeu força de lei federal às suas disposições regimentais. A partir de então a reclamação passou a fundar-se em dispositivo constitucional66.

Em 1969 foi introduzida a reclamação no âmbito da Justiça Militar através do Decreto-Lei nº 1002, em seus artigos 584 a 586.

Mas foi com o advento da Constituição Federal de 1988 que houve a mudança substancial no que concerne a existência e relevância da reclamação constitucional no direito brasileiro. Nesse momento o instituto adquiriu status de competência constitucional e passou a figurar na jurisdição constitucional como um importante instrumento de garantia fundamental da segurança jurídica.

Apenas para destacar, dada a importância do autor para o estudo da reclamação constitucional no direito pátrio, vale mencionar a sistematização feita por José da Silva Pacheco acerca do tema da reclamação no STF, que por sua vez resume bem o histórico apresentado até aqui.

Em seus estudos, Pacheco reconhece que a reclamação tem seu histórico fundado em quatro fases distintas67. A primeira vai desde a criação do STF até 1957. A segunda vai de

1957 até 1967 com a inserção do tema no Regimento do Tribunal. A terceira fase parte do disposto na Constituição de 1967. E por fim, a quarta fase que se inicia com a previsão constitucional de 05/10/1988 que prevê expressamente a reclamação como sendo da competência originária do STF/STJ.

No direito estrangeiro a reclamação constitucional não encontra paralelo com suas finalidades aqui no Brasil. Destaquem-se, por exemplo, o caso português e italiano. No direito português a reclamação pode ser tida como um reexame ou uma reponderação. Se se tratar de um procedimento que visa apenas o controle da decisão proferida, a reclamação pertence ao tipo de reponderação. Se se busca assegurar às partes e ao tribunal as condições de justiça do caso concreto, permitindo que o reclamante apresente elementos novos para obter a reformulação da decisão impugnada, o modelo é de reexame68. Não se cuida, portanto, de

instrumento para assegurar a competência do Tribunal ou o cumprimento às suas decisões.

66 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1328.

67 PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações típicas. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 601-635.

68 MANGONE, Kátia Aparecida. Estudo sobre a Reclamação Constitucional. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 1. p. 545-561, jan./jun. 2013.

No direito italiano, há o instituto do “reclamo” que prevê o controle pelo colegiado sobre as ordens do juiz, declarando a extinção do processo. Apesar de sua nomenclatura, não há semelhanças com a finalidade da reclamação do direito brasileiro69.

Atualmente a Reclamação sofreu grande alargamento pelo Novo Código de Processo Civil, que de forma expressa, acresceu as hipóteses de cabimento da reclamação constitucional ao prever que ela poderá ser ajuizada para garantir a observância de súmula vinculante e de acórdão ou precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência (art. 1000, IV).

Assim, se a tese jurídica está firmada em sede de recurso repetitivo (recurso especial ou extraordinário), pode o jurisdicionado ou o próprio Ministério Público propor a reclamação a fim de “chamar à atenção” da instância inferior para a necessidade de se respeitar a decisão já consolidada.

Com essa previsão do novo código há um aumento substancial do âmbito de cabimento e atuação da reclamação no direito nacional.