• Nenhum resultado encontrado

Reclamação Constitucional como instrumento para a revisão da decisão em Controle

CAPÍTULO I – RECLAMAÇÃO 4374-STF: ANÁLISE DO JULGADO

1.4 Linhas argumentativas para análise da questão constitucional

1.4.1 Reclamação Constitucional como instrumento para a revisão da decisão em Controle

Antes de decidir de forma definitiva acerca da cassação ou não da decisão reclamada, fez-se necessário discutir acerca da possibilidade de o STF rever seu entendimento, no julgamento da própria reclamação constitucional.

Segundo o Ministro Gilmar Mendes, todas as vezes que uma reclamação constitucional tiver como causa de pedir a violação de uma decisão ou de súmula vinculante

do STF, essa reclamação irá se transformar em uma típica ação constitucional, tendo por fim a proteção de toda a ordem jurídica constitucional.

Isso ocorreria em função de duas ideias básicas. Primeiro, é de se observar que no exercício do controle difuso de constitucionalidade, o STF pode declarar a inconstitucionalidade de quaisquer normas que eventualmente tenham sido utilizadas como fundamento da decisão reclamada. Para tanto, basta que seja verificada a incompatibilidade formal ou material do ato normativo com a constituição.

Saliente-se que a verificação acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ou outro ato normativo não é uma faculdade, mas sim uma imposição à Suprema Corte. É que sempre que o julgamento da causa depender da análise da compatibilidade da norma com o texto constitucional, o magistrado não poderá deixar de se pronunciar acerca da questão.

Assim restou consignado, por exemplo, no MS nº 20.505/DF de relatoria do Ministro Néri da Silveira. Nesse julgado, ao discorrer sobre a questão de ordem suscitada, o Ministro Djaci Falcão afirmou26:

Se o Relator considerá-la constitucional, poderá prosseguir e ficar no fundamento da legalidade do ato impugnado. Mas, desde que foi arguida, tanto pelo impetrante da segurança, como pelo Eminente Procurador-Geral da República, em seu Parecer, a ilegitimidade da lei por inteiro, o Tribunal não poderá fugir a essa apreciação. O juiz singular não poderia fugir, quanto mais o Supremo Tribunal Federal, que tem a missão maior, de dizer da legitimidade dos atos e das leis, em face da constituição.

Desta feita, não resta dúvidas de que uma vez arguida a inconstitucionalidade de norma imprescindível ao julgamento do caso analisado, torna-se imperioso que o Tribunal se manifeste sobre a questão, ainda que incidenter tantum.

De outro lado, a análise do ato impugnado em face da decisão ou súmula tida por violada já conduz, por si só, a uma natural ponderação acerca da necessidade de se reavaliar a própria decisão ou súmula. Trata-se de situação em que novos argumentos são lançados ao crivo do julgador e este não está impassível de rever seus entendimentos.

O Ministro Gilmar Mendes afirma que no Supremo Tribunal Federal existem vários casos em que houve redefinição dos lindes de suas próprias decisões apontadas como parâmetro da reclamação. Cita inúmeros casos em que essa revisão se operou, dentre os quais se destaca o caso da ADI 3460, de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto.

Proposta pela Associação Nacional do Ministério Público – CONAMP, a ADI 3460 questiona a constitucionalidade do art. 7º, caput e parágrafo único da Resolução nº 35/2002, com redação dada pelo art. 1º da Resolução nº 55/2004 do Conselho Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios que estabelecia critérios para ingresso na carreira do Ministério Público, bem como o conceito de atividade jurídica para fins de ingresso na carreira.

Embora a ADI tenha estabelecido o conceito e fixado os requisitos para ingresso na carreira, o efetivo alcance desse conceito e dos requisitos para sua comprovação foram sendo delineados ao longo do julgamento de algumas reclamações constitucionais, especialmente as de número 4906 e 4939, ambas de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa.

Como se vê, a reinterpretação dos dispositivos questionados em ações abstratas de controle de constitucionalidade é algo absolutamente natural quando se trata da análise de reclamação constitucional. Através dessas ações poderá haver redefinição do conteúdo e do alcance de uma decisão que tenha sido considerada como violada pelo interessado.

Por essa razão o Ministro Gilmar Mendes afirma que:

Assim como no processo hermenêutico o juízo de comparação e subsunção entre norma e fato leva, invariavelmente, à constante reinterpretação da norma, na reclamação o juízo de confronto e de adequação entre objeto (ato impugnado) e parâmetro (decisão do STF tida por violada) implica a redefinição do conteúdo e do alcance do parâmetro27.

Sob esse ponto de vista é possível notar que a Reclamação Constitucional é um verdadeiro instrumento de abertura do processo hermenêutico pelo qual as decisões da própria Suprema Corte permanecem sujeitas à reinterpretação. Através dos processos de mutação constitucional e inconstitucionalização de normas, os julgadores podem concluir pela necessidade de uma redefinição do conteúdo, do alcance e até da superação, total ou parcial, de decisões judiciais pretéritas.

Não se contesta que as constituições tenham “vocação de permanência”, conforme destacou Machado Horta28, não obstante, seus significados estão sujeitos à atualização

permanente, já que o impacto da passagem do tempo e das transformações históricas sempre haverão de produzir necessidades urgentes.

27 RE 4.374/PE. Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes, DJe-173 de 03-09-2013.

28 HORTA, Raul Machado. Permanência e mudança na Constituição. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 97.

Assim, os fenômenos da mutação e da inconstitucionalização ocorrem, fundamentalmente, não só em razão da possibilidade de que tenha havido uma mudança no texto da constituição ou da norma objeto do controle, mas também de uma mudança substancial nas relações fáticas ou na concepção jurídica geral.

Cumpre assinalar, tão somente, a inegável importância assumida pela interpretação no controle de constitucionalidade, afigurando-se possível a caracterização da inconstitucionalidade superveniente como decorrência da mudança de significado do parâmetro normativo constitucional, ou do próprio ato legislativo submetido à censura judicial29.

Em seu Curso de Direito Constitucional Gilmar Mendes afirma que esse processo de inconstitucionalização das normas representa um grande desafio para a teoria do direito.

Talvez um dos temas mais ricos da teoria do direito e da moderna teoria constitucional seja aquele relativo à evolução da jurisprudência e, especialmente, a possível mutação constitucional, decorrente de uma nova interpretação da Constituição. Se a sua repercussão no plano material é inegável, são inúmeros os desafios no plano do processo em geral e, sobretudo, do processo constitucional30.

Como se nota, ante os inevitáveis desdobramentos, é de grande relevância para a teoria do direito o estudo da evolução interpretativa no âmbito do controle de constitucionalidade. Uma mudança no significado do parâmetro normativo certamente acarretará a censurabilidade de preceitos até então considerados compatíveis com a ordem jurídica constitucional.

Ainda para corroborar a tese de que é possível apurar essa evolução interpretativa no bojo de uma reclamação constitucional, o Ministro Gilmar Mendes afirma31:

O “balançar de olhos” (expressão cunhada por Karl Engisch) entre a norma e o fato, que permeia o processo hermenêutico em torno do direito, fornece uma boa metáfora para a compreensão do raciocínio desenvolvido no julgamento de uma reclamação. Assim como no processo hermenêutico o juízo de comparação e subsunção entre norma e fato leva, invariavelmente, à constante reinterpretação da norma, na reclamação o juízo de confronto e de adequação entre objeto (ato impugnado) e parâmetro (decisão do STF tida por violada) implica a redefinição do conteúdo e do alcance do parâmetro. É por meio da reclamação, portanto, que as decisões do Supremo Tribunal Federal permanecem abertas a esse constante processo hermenêutico de reinterpretação levado a cabo pelo próprio Tribunal. A reclamação, dessa forma, constitui o locus de apreciação, pela Corte Suprema, dos processos de

29 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 1051.

30 Ibidem, p. 1050.

mutação constitucional e de inconstitucionalização de normas (des Prozess des Verfassungswidrigwerdens), que muitas vezes podem levar à redefinição do conteúdo e do alcance, e até mesmo à superação, total ou parcial, de uma antiga decisão.

Assim, apenas diante da substancial mudança nas circunstâncias fáticas ou de relevante alteração nas concepções jurídicas dominantes seria possível a reinterpretação da decisão tomada em sede de controle concentrado de constitucionalidade, com a consequente superação da própria decisão.

Por fim, citando Liebman, Gilmar Mendes segue sua fundamentação afirmando que as sentenças possuem como característica a possibilidade de alteração, ou seja, contêm a cláusula rebus sic stantibus “de modo que as alterações posteriores que alterem a realidade normativa, bem como eventual modificação da orientação jurídica sobre a matéria, podem tornar inconstitucional norma anteriormente considerada legítima”. 32

Isso justificaria o pedido para que uma norma já declarada constitucional em controle concentrado fosse arguida por inconstitucional. No julgamento do RE nº 105.012, de relatoria do Ministro Néri da Silveira essa possibilidade foi discutida, chegando-se a conclusão de que é possível que em caso de evolução hermenêutica, se “modifique jurisprudência consolidada, podendo censurar preceitos normativos antes considerados hígidos em face da Constituição"33.

Ao tratar desse tema, Zavascki afirma que assim como toda sentença com capacidade de irradiar efeitos no tempo futuro, aquela proferida em ação de controle abstrato de constitucionalidade também está submetida à cláusula rebus sic stantibus, ou seja, a força de lei que dela decorre se justifica e se mantém enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos de fato e de direito que ensejaram sua prolação. Segundo o autor “a constitucionalidade de uma norma, reconhecida à luz de certa realidade social, poderá deixar de existir no momento em que se modificar o parâmetro fático adotado para a aferição”34.

Ocorre que Zavascki limita o que sejam essas circunstâncias de direito e da realidade social. Para o autor ocorre mudança no estado de direito a ensejar a aplicação da cláusula

rebus sic stantibus quando sobrevém reforma da Constituição vigente à época da sentença.

Assim caberia nova ação porque o parâmetro de validade passaria a ser o da nova ordem

32 RE 4.374/PE. Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes, DJe-173 de 03-09-2013. 33 Ibidem.

34 ZAVASCKI, Teori Albino. A eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 107.

constitucional35. Não é esse o caso da Rcl. 4374/PE, pois não houve mudança no texto da

constituição, mas sim processo de inconstitucionalização decorrente de mutação constitucional.

Sobre as circunstâncias fáticas, diz Zavascki que “em controle abstrato o juízo de compatibilidade entre as normas leva em conta, se for o caso, os pressupostos da realidade social, apresentada no momento da sentença, cuja força vinculativa se manterá rebus sic

stantibus”36.

Não há, portanto, análise de quando as circunstâncias fáticas, uma vez alteradas ensejam uma mudança na interpretação que se faz do dispositivo constitucional anteriormente declarado constitucional.

Assim, uma questão relevante que poderia ser levantada é a possibilidade da propositura de nova ação de controle de constitucionalidade para fins de reapreciação ou superação da jurisprudência consolidada.

Nesse particular o Ministro Gilmar Mendes pondera que a hipótese de nova ação é de difícil concretização ante o delimitado rol de legitimados e a improvável rediscussão da questão em searas externas aos processos subjetivos.

Além disso, destaca que a “oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações”.37

Nessas situações o Tribunal poderá rever o alcance de sua própria decisão, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação constitucional. Para o Ministro Gilmar Mendes38:

No juízo hermenêutico próprio da reclamação, a possibilidade constante de reinterpretação da Constituição não fica restrita às hipóteses em que uma nova interpretação leve apenas delimitação do alcance de uma decisão prévia da própria Corte. A jurisdição constitucional exercida no âmbito da reclamação não é distinta; como qualquer jurisdição de perfil constitucional, ela visa proteger a ordem jurídica como um todo, de modo que a eventual superação total, pelo STF, de uma decisão sua, especifica, será apenas o resultado pleno do exercício de sua incumbência de guardião da Constituição.

35 ZAVASCKI, Teori Albino. A eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 108.

36 Ibidem, p. 114.

37 RE 4.374/PE. Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes, DJe-173 de 03-09-2013. 38 Ibidem.

Diante de todos esses argumentos nota-se a grande relevância que a reclamação constitucional tem adquirido no sistema jurídico, sobretudo no que se refere à proteção da ordem constitucional como um todo.

Reafirme-se ainda como plenamente justificável sua utilização como instrumento para a revisão do julgamento proferido na ADI 1.232, já que a partir desse julgado outras decisões criarão uma jurisprudência mais consentânea com o sentido da Constituição no momento atual.

Aliás, esse é o papel da jurisprudência no positivismo jurídico segundo Bobbio. Para o autor39, “o positivismo jurídico concebe a atividade da jurisprudência como sendo voltada não

para produzir, mas para reproduzir o direito, isto é, para explicitar com meios puramente lógico-racionais o conteúdo de normas jurídicas já dadas”.

1.4.2 A Existência de uma Possível Omissão Inconstitucional Parcial em relação Ao Dever