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CAPÍTULO II – ANTECEDENTES HISTÓRICOS, CONCEITO, FUNÇÕES E

2.2 Reclamação constitucional e jurisdição

As normas das constituições modernas são profundamente diferentes das normas infraconstitucionais. Seus preceitos estão carregados de conteúdo político, o que acaba por alterar significativamente as técnicas hermenêuticas e impõe um rigoroso controle de validade das leis e da atuação das normas constitucionais.

Mauro Cappelletti expõe que:

As Constituições modernas não se limitam, na verdade, a dizer estatisticamente o que é o direito, a “dar uma ordem” para uma situação social consolidada; mas, diversamente das leis usuais, estabelecem e impõem, sobretudo, diretrizes e programas dinâmicos de ação futura. Elas contêm a indicação daqueles que são os supremos valores, as rationes, os Gründe da atividade futura do Estado e da sociedade: consistem, em síntese, em muitos casos, como, incisivamente, costumava dizer Piero Calamandrei, sobretudo em uma polêmica contra o passado e em um programa de reformas em direção ao futuro.

A supremacia da Constituição e a jurisdição constitucional são dois respeitáveis mecanismos das constituições modernas. Através delas determinados princípios e direitos, considerados - pelo poder constituinte originário - extremamente importantes para a existência

69 MANGONE, Kátia Aparecida. Estudo sobre a Reclamação Constitucional. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 1. p. 545-561, jan./jun. 2013.

do Estado de Direito, são protegidos pelos instrumentos de controle de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público, ficando subtraídos da esfera decisória dos agentes políticos eleitos pelo povo70.

Segundo Gustavo Binenbojm71

A jurisdição constitucional é, portanto, uma instância de poder contramajoritário, no sentido de que sua função é mesmo a de anular atos votados e aprovados, majoritariamente, por representantes eleitos. Nada obstante, entende-se hodiernamente, que os princípios e direitos fundamentais, constitucionalmente assegurados, são, em verdade, condições estruturantes e essenciais ao bom funcionamento do próprio regime democrático; assim, quando a justiça constitucional anula leis ofensivas a tais princípios ou direitos, sua intervenção se dá a favor, e não contra a democracia. Esta a maior fonte de legitimidade da jurisdição constitucional.

Como já observado, a Reclamação Constitucional destina-se originalmente a preservar a competência do Supremo Tribunal Federal e a garantir a autoridade de suas decisões. Após a emenda constitucional nº 45/2004 passou a tutelar também o respeito às súmulas vinculantes. Dessa forma, é inegável que enquanto instrumento de proteção das competências e decisões da Corte, a reclamação destaca-se como um importante mecanismo da jurisdição constitucional.

Acerca das hipóteses de cabimento do instituto, alguns aspectos merecem ser destacados. Diz-se que a reclamação é uma demanda típica, portanto, cabível apenas nas hipóteses previamente estabelecidas pelo legislador72.

O procedimento da reclamação é simplificado e está previsto na Lei nº 8.038/90 e nos arts. 156 a 162 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. A inicial reclamatória exige apresentação de prova pré-constituída e é dirigida ao Presidente do STF. Se o Ministério Público não houver atuado como parte, deverá ter vista do processo após decorrido o prazo para as informações – a serem prestadas pela autoridade a quem for imputada a prática do ato impugnado.

Na reclamação a parte autora é chamada de reclamante e pode ser qualquer pessoa afetada por uma decisão judicial que descumpra os fundamentos autorizadores do seu ajuizamento, ou seja, “aqueles que estiverem relacionados com o descumprimento de uma

70 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional: Legitimidade democrática e instrumentos de realização. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p.38.

71 Ibidem, p.38.

dada decisão judicial, de súmula vinculante ou com a falta de incidência de uma certa norma de competência”73.

Se julgada procedente a reclamação o Tribunal irá cassar a decisão que tenha exorbitado do seu julgado ou determinará medidas adequadas à preservação de sua competência, conforme o caso. Do julgamento da reclamação caberá apenas embargos de declaração e agravo interno da decisão do relator.

A reclamação não pode ser utilizada como sucedâneo de ação rescisória. Da mesma forma o STF não admite sua utilização contra atos do próprio Tribunal. O Ministro Celso de Mello, inclusive, já manifestou esse entendimento no julgamento da Rcl. 2106/RS74:

O instrumento processual da reclamação - enquanto medida de direito constitucional vocacionada a preservar a integridade da competência do Supremo Tribunal Federal e a fazer prevalecer a autoridade de suas decisões (CF, art. 102, I, l)- não se revela admissível contra atos emanados dos Ministros ou das Turmas que integram esta Corte Suprema, pois os julgamentos, monocráticos ou colegiados, por eles proferidos, qualificam-se como decisões juridicamente imputáveis ao próprio Supremo Tribunal Federal.

Importa ressaltar que a reclamação não é instrumento para forçar o cumprimento de jurisprudência do Tribunal, ou seja, de súmulas sem efeito vinculante. O caráter vinculante das súmulas do STF é condição sine qua non para que se possa valer do instituto da reclamação. A Corte já se manifestou quanto a isso afirmando que “eventual descumprimento de súmula do Supremo Tribunal Federal, mas desprovida de efeito vinculante, não autoriza o manejo da reclamação”75.

Para Zavascki, há certa dificuldade em se estabelecer o que é efeito vinculante e qual a sua diferença para o efeito erga omnes. Na Europa esse efeito seria uma qualidade da sentença que vai além das suas eficácias comuns, como o efeito erga omnes, coisa julgada e efeito preclusivo.

No Brasil, diz Zavascki, “o efeito vinculante confere ao julgado uma força obrigatória qualificada, com a consequência processual de assegurar, em caso de recalcitrância dos

73 MORATO, Leonardo Lins. Reclamação e sua aplicação para o respeito da súmula vinculante. São Paulo: RT, 2007, p. 129.

74 Rcl nº 2106/RS, Relator Ministro Celso de Mello. DJ 08.08.2002. 75 Rcl nº 5.063/PR-AgR, Relator Ministro Ayres Britto. DJe de 25.09.2009.

destinatários, a utilização de um mecanismo executivo – a reclamação – para impor seu cumprimento”76.

Douglas Zaidan sustenta que de acordo com o raciocínio Kelseniano não faria sentido conferir ao Estado a função jurisdicional como expressão da supralegalidade da Constituição, das liberdades políticas e dos direitos fundamentais, sem atribuir à essa capacidade o poder de tornar obrigatórios comportamentos decorrentes do produto da interpretação do sentido das normas constitucionais.

O efeito vinculante das decisões na jurisdição constitucional seria então a aptidão de abranger uma dada relação jurídica entre determinados sujeitos, ou entre estes e o Estado, sob a eficácia da compreensão delineada pelo órgão responsável pela interpretação da Constituição77.

Nesse ponto, também é relevante o contorno que se confere à Reclamação para o caso de adoção dos efeitos transcendentes da decisão do STF no controle de constitucionalidade, ou seja, se são ou não vinculantes as razões de decidir. É que a depender do tratamento dado ao caso, a reclamação deixaria de ser um mero instrumento de proteção das decisões da Corte para ser também um importante mecanismo de controle de constitucionalidade das leis.

Assim, o questionamento diz respeito à possibilidade de se analisar a constitucionalidade de lei de teor idêntico ou semelhante à uma outra lei que já tenha sido objeto de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante a Corte Suprema.

Nesse caso o Tribunal deverá decidir sobre se é possível aplicar a Teoria dos Motivos Determinantes para acolher pedido de reclamação que pretenda ver os efeitos de uma ação direta de inconstitucionalidade estendidos a outra lei semelhante. O tema é polêmico e a Suprema Corte possui decisões divergentes.

A importância dessa questão para o direito pátrio pode ser notada a partir da análise da seguinte manifestação do Ministro Gilmar Mendes, em voto proferido nos autos da Rcl nº 3.014/SP78:

A reclamação constitucional – sua própria evolução demonstra – não mais se destina apenas a assegurar a competência e a autoridade de decisões específicas e bem delimitadas do Supremo Tribunal Federal, mas também constitui-se como ação voltada à proteção da ordem constitucional como um

76ZAVASCKI, Teori Albino. A eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 52.

77CARVALHO, Alexandre Douglas Zaidan de. Efeito Vinculante e Concentração da Jurisdição

Constitucional no Brasil. Brasília: Editora Consulex, 2012. p. 162.

todo. A tese da eficácia vinculante dos motivos determinantes da decisão no controle abstrato de constitucionalidade, já adotada pelo Tribunal, confirma esse papel renovado da reclamação como ação destinada a resguardar não apenas a autoridade de uma dada decisão, como seus contornos específicos (objeto e parâmetro de controle), mas a própria interpretação da Constituição levada a efeito pela Corte.

No sentido de admitir o cabimento da reclamação como mecanismo de adoção da Teoria, também vale analisar que no julgamento da Rcl 1987-DF o Ministro Maurício Correia proferiu a seguinte decisão79:

Ausente a existência de preterição, que autorize o seqüestro, revela-se evidente a violação ao conteúdo essencial do acórdão proferido na mencionada ação direta, que possui eficácia erga omnes e efeito vinculante. A decisão do Tribunal, em substância, teve sua autoridade desrespeitada de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação. Hipótese a justificar a transcendência sobre a parte dispositiva dos motivos que embasaram a decisão e dos princípios por ela consagrados, uma vez que os fundamentos resultantes da interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional. (grifo nosso).

Sob a perspectiva de uma teoria dos precedentes seria efetivamente conferir efeitos vinculantes à exegese constitucional fixada pela Corte. Esta medida garantiria, de forma mais adequada, a força normativa da Constituição, cuja intepretação do seu conteúdo não pode variar de acordo com o Estado em questão e ainda permitiria tratamento isonômico a todos os cidadãos, evitando repetição de demandas com teor idêntico e privilegiando o princípio da eficiência80.

Não foi este, entretanto, o entendimento que prevaleceu. Ao julgar a validade de outras leis com conteúdo semelhante ao de lei já declarada inconstitucional em controle abstrato, o Tribunal proferiu decisões diferentes, chegando a afirmar expressamente a rejeição à aplicação da teoria sob a alegação de que a reclamação “pressupõe a usurpação da competência do Supremo ou o desrespeito a decisão proferida. Descabe emprestar-lhe contornos próprios ao incidente de uniformização, o que ocorreria caso admitida a teoria da transcendência dos motivos determinantes”81.

79 Rcl n 1987/DF, Relato Ministro Maurício Correia. DJ 21.05.2004.

80 MELLO, Patrícia Perrone Campos. Operando com súmulas e precedentes vinculantes. In: BARROSO, Luís Roberto. (Org.). Reconstrução Democrática do Direito Público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 669.

No mesmo sentido é a seguinte ementa82:

Embora haja similitude quanto à temática de fundo, o uso da reclamação, no caso dos autos, não se amolda ao mecanismo da transcendência dos motivos determinantes, de modo que não se promove a cassação de decisões eventualmente confrontantes com o entendimento do STF por esta via processual. (Rcl nº 3294/RN)

Decorrente da doutrina alemã, a Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes empresta força vinculante não apenas ao dispositivo das decisões tomadas no controle de constitucionalidade das normas, mas também aos seus fundamentos, às razões de decidir.

Após sua adoção pela Suprema Corte o que se percebe é a sua perda de prestígio, como se pode observar da análise de julgados mais recentes. Nesse sentido o aplicador do Direito deve, daqui para a frente, observar com bastante cautela os desdobramentos dessa evolução jurisprudencial.

Convém não esquecer, entretanto, que esta teoria não é incompatível com a função da reclamação constitucional. Basta observar que seu papel de garantir a autoridade das decisões não exclui nenhuma de suas partes integrantes, ou seja, se uma decisão é composta por fundamentos e dispositivo, tanto o dispositivo quanto a ratio decidendi poderiam vincular, proporcionando segurança jurídica e estabilidade à jurisdição contenciosa.

Ora, se o legislador utilizou a expressão “autoridade das decisões”, não excluindo nenhuma de suas partes, cabível se torna a reclamação como importante instrumento de adoção da teoria dos motivos determinantes. A não aceitação dessa ideia resulta na impossibilidade prática de utilizar a reclamação como mecanismo legítimo para contestar decisões contrárias aos precedentes do próprio STF em processo distinto.

Não se nega plausível que o STF tenha preterido a Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes por conta da possibilidade de dar efeito vinculante às suas decisões através das súmulas vinculantes. É de se ressalvar apenas que uma súmula não tem propriedade para reproduzir a complexidade de uma decisão tomada pela Corte, podendo tornar uma decisão complexa num verbete genérico, que desconsidera importantes fundamentos que embasaram o precedente, algo que igualmente não é desejado por não proporcionar nem segurança jurídica e nem estabilidade da jurisdição.

Alguns Ministros também chamaram atenção às consequências prováveis da adoção da transcendência dos motivos determinantes. A ministra Ellen Gracie, por exemplo, no

julgamento da Rcl nº 3014/SP destacou que haveria um aumento preocupante no número de reclamações a partir desse entendimento.

Se é verdade que aumentariam as reclamações, também é verdade por outro lado, que outras ações de controle de constitucionalidade diminuiriam. Como disse na ocasião o Ministro Cezar Peluso83 “é uma questão de escolha de remédio. O número deles pode ser

igual ou maior na alternativa. Se o problema é o mesmo, alguém vai ter que recorrer a algum remédio jurídico. Ou será a reclamação, ou será outra opção”.

Uma preocupação coerente nessa questão seria a compatibilidade do procedimento da reclamação com a complexidade das discussões envolvendo a constitucionalidade de uma lei ou ato normativo. É que como já demonstrado, a reclamação constitucional possui rito relativamente simples, o que poderia levantar suspeitas quanto à sua viabilidade de produzir decisões coerentes com o sistema e que proporcione um debate constitucional adequado.

Merece aplauso a manifestação do Ministro Gilmar Mendes sobre a necessidade de um julgamento célere nesses casos que tratam da constitucionalidade ou não de leis. Entretanto, é inegável que deverá haver uma compatibilização do rito da reclamação com os propósitos das ações típicas de controle de constitucionalidade. Se por um lado deseja-se rapidez na jurisdição constitucional brasileira, por outro não se pode perder de vista a justiça e eficiência dessas decisões.

O Ministro Gilmar, ainda durante o julgamento da Rcl nº 3014/SP ainda tentou outro argumento para abrir a possibilidade de a reclamação ser utilizada para questionar a constitucionalidade de ato cujo conteúdo seja idêntico ao de outros declarados inconstitucionais pelo Tribunal, sem a necessidade de se socorrer da teoria da transcendência dos motivos determinantes.

Sobre esse seu posicionamento o Ministro Gilmar Mendes afirmou84:

Em voto-vista, considerei que não se está a falar, na hipótese, de aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes da decisão tomada no controle abstrato de constitucionalidade. Trata-se – isto, sim – de um poder ínsito à própria competência do Tribunal de fiscalizar incidentalmente a constitucionalidade das leis e dos atos normativos. Esse poder é realçado quando a Corte se depara com leis de teor idêntico àquelas já submetidas ao seu crivo no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade.

83 Rcl nº 3014/SP, Relator Ministro Ayres Britto. DJe 21.05.2010.

84 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnold; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de Segurança e Ações

Como visto, o Ministro tentou obter o efeito causado pela transcendência dos motivos determinantes, então refutada pelo Tribunal, por meio da aceitação da reclamação constitucional para questionar o descumprimento de decisão em processo objetivo sobre norma de teor igual ou semelhante.