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Do processo de mutação constitucional e o trânsito para a inconstitucionalidade de

CAPÍTULO III – RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO INSTRUMENTO DE

3.2 Do processo de mutação constitucional e o trânsito para a inconstitucionalidade de

Ao examinar e estudar a constituição, integrada ao ordenamento jurídico, não se pode ficar no terreno puramente logicístico, cabendo ao intérprete, tanto quanto possível, analisar as exigências de hoje para entender o seu texto, não podendo se afastar dos fins sociais colimados e da exigência do bem comum124.

A partir da compreensão de que é possível ocorrer significativas mudanças no mundo fático que justifique uma reanálise de norma já declarada constitucional em controle abstrato de constitucionalidade, interessa explanar acerca da mutação constitucional, fenômeno de grande valor para compreensão de como a relação entre as normas pode ser alterada com o decurso do tempo.

A importância desse tema para a compreensão do caso concreto, tido por referência no presente trabalho, se deve ao fato de que a mutação constitucional possui papel fundamental na atualização das normas constitucionais, sem que para isso seja necessário a reforma do texto da constituição, situação que, como regra, deve ser excepcional.

Para um melhor entendimento desse tema é necessário fixar as bases sobre as quais repousam a Teoria do Poder Constituinte Difuso, etapa da mutação constitucional, também conhecida como mudança material; revisão informal; processo oblíquo; processo de fato; transição constitucional ou processo não formal125.

Zandonade126 afirma que as reformas informais do texto da Constituição são

inevitáveis e “a informalidade do processo, consequência de sua não previsão no corpo da Constituição formal, é também consequência da informalidade das alterações que se verificam na ‘realidade’, no âmbito da qual se aplica a Constituição”.

Segundo Uadi Lammêgo Bulos, esse é o poder capaz de alterar os preceitos constitucionais sem que seja necessário revisar ou emendar o texto da Carta Magna, sendo possível afirmar que “enquanto o poder originário é a potência, que faz a constituição, e o poder derivado, a competência, que a reformula, o poder difuso é a força invisível que a altera, mas sem mudar-lhe uma vírgula sequer”127.

124 PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e Outras Ações Constitucionais típicas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1990. p. 32.

125 ZANDONADE, Adriana. Mutação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, ano 9, n. 35, p. 201, abr./jun. 2001.

126 Ibidem, p. 201-202.

Ainda segundo Bulos, o poder constituinte difuso é um poder de fato que brota dos fatos socais, políticos e econômicos, manifestando-se exatamente através da mutação constitucional, que vem a ser “um processo informal de mudança das constituições que atribui novos sentidos aos seus preceitos significados e conteúdos dantes não contemplados”.128

Na gênese dessa teoria, está o entendimento de que a sociedade se encontra em permanente processo de mudanças, decorrentes do seu dinamismo, o que, por via reflexa, acaba por exigir uma série de adaptações no ordenamento jurídico vigente a fim de adequá-lo a nova realidade.

Para Barroso,129 “o Direito não existe abstratamente, fora da realidade sobre a qual

incide. Pelo contrário, em uma relação intensa e recíproca, em fricção que produz calor, mas nem sempre luz, o Direito influencia a realidade e sofre influência desta”.

Há certo consenso doutrinário no sentido de que a estabilidade de um Estado de Direito está intimamente relacionada com a permanência da constituição que o rege, por isso esta é almejada por todos, como bem salienta Raul Machado Horta130 ao afirmar que “a

permanência da Constituição é a ideia inspiradora do constitucionalismo moderno”.

A segurança jurídica e a eficácia da constituição são os dois fenômenos que evidenciam a importância da estabilidade da constituição. A segurança jurídica assegura que as normas que regem o estado não serão alteradas sorrateiramente ao mesmo tempo em que impede que o Estado se furte de efetivar as normas modificando seu texto antes de sua incidência131.

Dessa maneira, um Estado que se propõe estável juridicamente busca essa segurança jurídica por meio de uma constituição perene, o que de forma alguma implica dizer que deva ser ela imutável. Por isso se diz que para a Constituição atender à realidade nacional é preciso que ela esteja em sintonia com a realidade do meio que ela pretende disciplinar e, paralelamente, com a alma perene do povo. A visão deve ser abrangente: um olhar absorto para o passado teria o condão de negar o progresso social e a evolução humana, fixar-se no presente é tentar uma paralisia que não ocorrerá e olhar apenas para o futuro seria como perder-se nas nuvens132.

128 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 435.

129 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 149.

130 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 97.

131 SILVA, Gustavo Just da Costa. Os limites da reforma constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 57- 62.

132 CAMPOS, Milton. Constituição e Realidade. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 187, ano 57, p. 18-22, jan./fev. 1960.

Assim, embora se almeje uma Constituição permanente, marcada pela rigidez do seu texto, é inquestionável que o corpo da constituição deve estar aberto a sofrer reforma ao longo de sua existência. É a partir dos processos de adequação do texto à realidade que se viabiliza que a constituição não se transforme em mera “folha de papel”, absolutamente distante dos fatores reais de poder mencionados por Ferdinand Lassale133.

Bonavides134 corrobora desse pensamento destacando que “a imutabilidade

constitucional, tese absurda, colide com a vida, que é mudança, movimento, renovação, progresso, rotatividade”.

Segundo Canotilho, citando Zagrebelsky, o poder de revisão da constituição “baseia-se na própria constituição, se ele a negasse como tal, para substituí-la por uma outra, transformar-se-ia em inimigo da constituição e não poderia invocá-lo como base de validade”135.

Para Gonet Branco, a evolução dos fatos sociais pode reclamar a realização de ajustes na expressão original do Constituinte Originário, o que em última análise, preveniria efeitos nefastos decorrentes de um despropositado engessamento da Lei Maior, que conduziria a uma ruptura na ordem constitucional. Diz o Autor136:

Aceita-se, então, que a Constituição seja alterada, justamente com a finalidade de regenerá-la, conservá-la na sua essência, eliminando as normas que não mais se justificam política, social e juridicamente, aditando outras que revitalizem o texto, para que possa cumprir mais adequadamente a função de conformação da sociedade.

Manuel Gonçalves Ferreira Filho137 arremata esta compreensão explicando que

embora a Constituição seja a lei maior de um Estado, o que lhe confere eficácia e validade superior às outras espécies normativas, nenhuma geração pode sujeitar as gerações futuras às deliberações tomadas em determinado contexto histórico. Ou seja, ao mesmo tempo em que tem de ser estável, a constituição deve ser flexível, permitindo uma adaptação do seu texto às novas circunstâncias sociais.

133 LASSALE, Ferdinand. O que é uma constituição. Disponível em:

<http://bdjur.tjce.jus.br/jspui/bitstream/123456789/418/1/LASSALLE,%20F.%20O%20que%20%C3%A9% 20uma%20Constituic%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.

134 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 196.

135 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 938.

136 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 118.

137 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Revisão constitucional. Revista do Instituto dos Advogados em

Canotilho138, ao abordar criticamente o tema da mutação, à considera como uma

necessidade e a define como uma “transição constitucional” que busca a “revisão informal do compromisso político formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional”.

Embora seja necessária essa possibilidade de modificação do texto constitucional, também é verdade que deve haver um disciplinamento rigoroso dos métodos supervenientes de alteração da Carta, sob pena de maiorias políticas supervenientes subverterem a ordem jurídica. Jorge Miranda explicita139:

A força jurídica das normas constitucionais liga-se a um modo especial de produção e as dificuldades postas à aprovação de uma nova norma constitucional impedem que a Constituição possa ser alterada em quaisquer circunstancias, sob pressão de certos acontecimentos, ou que possa ser afetada por qualquer oscilação ou inversão da situação política.

Da mesma forma, é de se ressaltar que a necessidade de manter a constituição atualizada não pode conduzir ao seu desprestígio, como expõe a Ministra Carmen Lúcia140:

Faz-se mister, pois, que a modificação por que tenha que passar a Constituição faça-se serena e racionalmente, parcimoniosa e refletidamente, a fim de que ao invés de aperfeiçoar não se venha por comprometer toda a construção constitucional, ou mesmo a estabilidade do Estado.

Daí que se reconhece que a adaptação da constituição ocorrerá por via da interpretação, da mutação e da reforma constitucional. Barroso leciona que141:

A legitimidade democrática do poder constituinte e de sua obra, que é a constituição, recai, portanto, no caráter especial da vontade cívica manifestada em momento de grande mobilização popular. As limitações que impõe às maiorias políticas supervenientes destinam-se a preservar a razão republicana – que se expressa por meio de valores e virtudes – das turbulências das paixões e dos interesses da política cotidiana. A adaptação da Constituição às demandas dos novos tempos e das novas gerações dar-se- á por via da interpretação, da mutação e da reforma constitucionais. Esse

138 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1101.

139 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Introdução à Teoria da Constituição. Tomo II, 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1988. p. 122.

140 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e mudança constitucional: limites ao exercício do poder de

reforma constitucional. Disponível em:

<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176171/000483308.pdf?sequence=3>. Acesso em: 11 nov. 2015.

141 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.144.

esforço de atualização tende a funcionar como uma renovação permanente do pré-compromisso original, uma manifestação de reiterada aceitação da ordem constitucional e dos limites por ela impostos. Nas situações-limite, porém, o poder constituinte originário sairá do seu estado de latência e voltará à cena, rompendo com a ordem anterior que se tenha tornado indesejada e inaugurando uma nova.

Para Meirelles Teixeira, seria equivocado e até mesmo ingênuo acreditar que as constituições rígidas somente pudessem ser alteradas através de técnicas expressas previamente, negando a realidade provocada pelo impacto da evolução política e social que “necessariamente deveria acomodar-se, em seu eterno fluxo de renovação e progresso, dobrando-se com docilidade ao sabor destas fórmulas e apenas ao juízo de políticos e legisladores”142.

Assim, partindo do pressuposto de que a Constituição é um complexo normativo aberto e sujeito a uma diversidade de significados, e ainda, partindo do pressuposto de que a atualização da constituição é uma necessidade que serve à sua própria permanência, cabe aos poderes constituídos procederem às devidas atualizações, concretizando os anseios dessa nova realidade social a partir de mudanças nas normas presentes no texto da Carta.

Responsável pela função renovadora da constituição, o Poder Constituinte Derivado é o instrumento dessas mudanças formais do texto constitucional. Ele recria e inova a ordem jurídica, viabilizando que a constituição permaneça atendendo aos reclamos atuais sem, no entanto, violar os preceitos básicos do Estado estabelecidos pelo constituinte originário.

Não é dado ao Poder Constituinte Derivado, no entanto, poder de “elaborar uma nova Constituição, em substituição à ideia de direito que deu origem ao ato constituinte originário, pois não outorga faculdades a si mesmo, mas as recebe do constituinte”143.

O Ministro Ayres Britto aduz inexistir poder constituinte derivado pela consideração, segundo ele, elementar, de que se é derivado não é constituinte. Para o Ministro, se o poder é exercitado por órgãos estatais, ainda que para o especial fim de reformar a constituição, é porque sua ontologia é igualmente estatal, não sendo possível criar um “Estado zero quilômetro”144.

De qualquer forma, independentemente da terminologia, o fato é que a constituição pode ser alterada por meio de um procedimento formal que obedece a limitações endereçadas

142 TEIXEIRA, Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Org. e atual. Por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 141.

143 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do estado e da Constituição. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 271.

ao poder legislativo. Essas limitações podem ser de natureza formal, temporal, circunstancial e material. As limitações materiais podem ser expressas ou implícitas.

No caso brasileiro as limitações materiais expressas estão elencadas no art. 60, §4º da CF/88. Já as limitações implícitas, segundo Nelson de Souza Sampaio, podem ser enumeradas da seguinte forma: a) as que dizem respeito aos direitos fundamentais, devendo-se observar que tais limitações se tornaram expressas na Constituição de 1988; b) as concernentes ao titular do poder constituinte, já que o reformador não pode dispor do que não lhe pertence, devendo-se ainda considerar a inalienabilidade da soberania popular, princípio que nega ao próprio povo o direito de renunciar ao seu poder constituinte; c) as relativas ao titular do poder reformador, porque este não pode renunciar a sua competência em favor de nenhum outro órgão, nem delegar suas atribuições, pois estas lhe foram conferidas para que ele próprio as exercite; d) as referentes ao processo da própria emenda ou revisão constitucional, de vez que o reformador não pode simplificar as normas que a Constituição estabelece para a elaboração legislativa145.

Ocorre que, como já afirmado, nem todo processo de mudança do texto constitucional se dará de forma expressa, a partir de uma atuação positiva do poder reformador. A atualização do texto também pode decorrer de simples interpretação e/ou mutação constitucional.

No caso da mutação constitucional essa alteração se dá de forma lenta, silenciosa e gradual. Sua atuação é imperceptível, sobretudo porque as normas do texto permanecem inalteradas. Além disso, a mutação constitucional não segue um rito específico e normalmente ocorre em períodos de tempo e situações diferentes.

Quanto a este último ponto, alguns rechaçam a afirmação de que a mutação ocorre necessariamente em momentos cronologicamente distintos. Bulos146 afirma que:

Seguimos a orientação, consoante a qual as mudanças informais da Constituição dão-se, normalmente, em períodos separados no tempo, sendo esta uma das marcas características do fenômeno. Isto, entretanto, não precisa ser levado ao pé da letra, ou seja, não descartamos a hipótese de existirem mutações constitucionais em momentos próximos, pois há algo de exato naquela afirmação de Loewenstein, quando diz que uma “Constituição não é jamais idêntica a si própria, estando constantemente submetida ao phata rei heraclitiano de todo ser vivo”.

145 SAMPAIO, Nelson de Souza. O poder de reforma constitucional. Salvador: Progresso, 1954. p. 92-107. 146 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 63.

Fato certo é que a mutação, exatamente por suas características, é de difícil percepção. Sua verificação ocorre “mediante cuidadoso exame comparativo do entendimento atribuído ao mesmo texto constitucional, aplicado em épocas diferentes, em momentos cronologicamente afastados entre si”147.

Desse debate o que se nota é que, seja em maior ou menor espaço de tempo, a mutação ocorre de acordo com fatores históricos que igualmente estão interligados com o ritmo das transformações sociais e políticas ocorridas tempo respectivo.

Esse processo silencioso de alteração da constituição em nada se assemelha aos modos mais comuns de reforma, normalmente já previstos expressamente na própria Carta pelo Poder Constituinte Originário, e capazes de produzir mudanças significativas no seu texto através de um processo formal de alteração.

No caso da mutação, o entendimento é de que a constituição transforma-se espontânea e continuamente. Por serem consideradas “organismos vivos”, as constituições possuem um “íntimo vínculo dialético com o meio circundante, com as forças presentes na sociedade, como, entre outros, as crenças, as convicções, as aspirações e anseios populares, a economia, a burocracia”148.

É de se destacar, no entanto, que é preciso que estas transformações não atinjam o espírito da constituição, sob pena de se estar diante de uma mutação inconstitucional. Ana Cândida Ferraz destaca a importância dessa distinção ao afirmar que as alterações não podem ultrapassar os limites constitucionais estabelecidos pelas normas, ou seja, na mutação não pode haver violação da letra e do espírito da constituição149.

Segundo Bulos150, a doutrina alemã foi a primeira a detectar a ocorrência do fenômeno

ao constatar que a Constituição de 1871 sofria frequentes alterações quanto ao funcionamento das instituições do Reich. Notou-se que essas alterações se davam sem que nenhuma mudança formal ocorresse no seu texto, e então, em 1895 Paul Laband, em seu livro Die Wandlungen der deuschen Reichsverfassung, identificou a necessidade de se diferenciar a

verfassungänderung (reforma constitucional) da verfassungswandlung (mutação

constitucional).

Nos Estados Unidos a mutação constitucional foi potencializada pelo caráter sintético da constituição e diluído em razão do papel mais discricionário e criativo desempenhado por

147 ZANDONADE, Adriana. Mutação constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, ano 9, n. 35, p. 206, abr./jun. 2001.

148 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 03.

149 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. São Paulo: Max Limonade, 1986. p. 10.

juízes e tribunais que vivenciam o sistema da common law. Exatamente por conta dessas peculiaridades a jurisprudência norte-americana encontrou campo aberto para desenvolver inúmeras teses que não tinham previsão expressa, a exemplo da teoria dos poderes implícitos; da imunidade tributária recíproca entre os entes da federação; a doutrina das questões políticas e o direito de privacidade151.

Exatamente por não possuir um rito específico, a mutação constitucional está sujeita a se apresentar por construção judicial, pelos usos e costumes, a partir da influência dos grupos de pressão e de tantos outros meios que podem provocar alteração da realidade do ordenamento jurídico de um Estado.

Daí advém o entendimento de que a mutação se aproxima mais das constituições rígidas do que das flexíveis, já que se apresentam como uma alternativa à complexidade dos métodos de reforma previstos formalmente. Entretanto, como já afirmado, as alterações que eventualmente gerem deformações maliciosas ou subversão da ordem jurídica - do espírito da constituição - serão tidas por inconstitucionais.

O fundamento do fenômeno da mutação constitucional, segundo Anna Cândida Ferraz, encontra fundamento na expressão de Georges Burdeau, conhecida como poder constituinte difuso, segundo a qual a mutação é autorizada pela própria constituição e é decorrência lógica dessa, na medida em que nasce para ser aplicada e precisa de atuação ulterior152.

Mesmo sendo de fundamental importância para a efetivação da constituição, impende examinar os limites à mutação constitucional, sobretudo porque, como vimos, a mutação pode resultar numa mudança de entendimento que altera completamente a aplicação de determinada norma ao caso concreto, como no caso concreto trazido ao exame no presente trabalho.

Bulos afirma ser impossível traçar com exatidão os limites da mutação. Justifica essa dificuldade na insuficiência da doutrina, que segundo ele ainda não enfrentou o tema especificamente. Bulos153 arremata:

Em verdade, não é possível determinar os limites da mutação constitucional, porque o fenômeno é, em essência, o resultado de uma atuação de forças elementares, dificilmente explicáveis, que variam conforme acontecimentos derivados do fato social cambiante, com exigências e situações sempre novas, em constante transformação.

151 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 147.

152 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos Informais de Mudança da Constituição: Mutações Constitucionais e Mutações Inconstitucionais. São Paulo: Max Limonade, 1986. p. 10.

A grande dificuldade de se disciplinar os limites da mutação está exatamente no fato de que trata-se de um fenômeno que não se concretiza através de meios convencionais, mas ao contrário, decorre da interpretação, dos usos e costumes, da construção judicial, dentre outros154.

Após citar Konrad Hesse e Herman Heller como doutrinadores que, apesar de tratarem do tem, não esclarecem a existência de limites à mutação, Bulos155 conclui:

Diante de tudo isso, as mudanças informais da constituição não encontram limites em seu exercício. A única limitação que poderia existir – mas de natureza subjetiva, e, até mesmo, psicológica – seria a consciência do intérprete de não extrapolar a forma plasmada na letra dos preceptivos