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A Existência de uma Possível Omissão Inconstitucional Parcial em relação Ao Dever

CAPÍTULO I – RECLAMAÇÃO 4374-STF: ANÁLISE DO JULGADO

1.4 Linhas argumentativas para análise da questão constitucional

1.4.2 A Existência de uma Possível Omissão Inconstitucional Parcial em relação Ao Dever

A inconstitucionalidade por omissão é um fenômeno segundo o qual uma norma constitucional, dependente de regulamentação, não produz os efeitos inicialmente pretendidos em função de um não fazer do Legislador, que estando obrigado, não cumpre com seu dever constitucional de legislar para dar efetividade a normas que exigem regulamentação em lei.

Para Alexandre de Moraes,40 “na conduta negativa consiste a inconstitucionalidade”.

Se a constituição determinou que o Poder Público tivesse uma conduta positiva para garantir a aplicabilidade e eficácia de uma dada norma constitucional e este vem a se omitir, restaria configurada a conduta negativa. É dessa incompatibilidade entre a conduta positiva exigida pelo texto constitucional e a conduta negativa do Poder Público omisso que se extrai a inconstitucionalidade por omissão.

Como já se viu, a norma contida no art. 203, inciso V da CF, que prevê o benefício assistencial aos idosos e portadores de deficiência que comprovem não possuir meios de prover sua própria manutenção, é uma norma de eficácia limitada, portanto, absolutamente dependente da atividade posterior do legislativo.

Ocorre que no caso estudado, houve, por parte do legislador, a elaboração de uma norma que pretendeu disciplinar as regras para dar efetividade à Constituição. Essa norma,

39 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 212.

qual seja, a Lei nº 8.742/93, trouxe dispositivo especificando critérios para concessão do benefício, o qual foi declarado constitucional por meio da ADI 1.232.

Em que pese seja um fato consolidado a constitucionalidade da norma – vide a improcedência da ADI, é de se destacar que, desde o primeiro momento da análise do dispositivo, questionou-se acerca da possível inconstitucionalidade por omissão parcial da norma.

O fenômeno da inconstitucionalidade se manifesta tanto em virtude de um fazer, quanto de um não fazer do legislador. Quando há ação e esta não se conforma com o texto constitucional diz-se que há inconstitucionalidade por ação. Quando, porém, o legislador não supre a demanda da constituição por inércia, tem-se a inconstitucionalidade por omissão. Entende-se que essa inação “quer dizer falta ou ausência de lei reputada, ainda que não clara e expressamente, essencial para a realização de norma constitucional ou para a satisfação de direito fundamental”.41

A inconstitucionalidade por omissão ainda pode ser total ou parcial. Será parcial quando embora exista o ato normativo necessário à efetivação do direito, este não atende de forma plena o comando constitucional. Segundo Gilmar Mendes e Lenio Luiz Streck, não se trata de tarefa fácil essa distinção42:

A tentativa de proceder a essa clara diferenciação não se afigura isenta de dificuldades. Se se considera que, atendida a maioria das exigências constitucionais de legislar, não restarão senão os casos de omissão parcial (Teilunterlassung), seja porque o legislador promulgou norma que não corresponde, plenamente, ao dever constitucional de legislar, seja porque uma mudança das relações jurídicas ou fáticas impõe-lhe um dever de adequação do complexo existente (Nachbesserungspflicht).

Essa dificuldade foi sentida no julgamento da ADI 1.232, quando o Tribunal, embora decidindo pela improcedência da ação direta, não deixou de constatar que o dispositivo contido no art. 20 da Lei nº 8.742/93 não cumpria integralmente o comando constitucional do art. 203, V, da CF.

O próprio Relator da ADI 1.232, Ministro Ilmar Galvão consignou em seu voto que43

41 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito

Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 786.

42 MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang; et al. Comentários à

Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1419.

Com efeito, se se entender - como parece ter entendido a representação acolhida pelo Exmo Sr. Procurador-Geral da República – que o §3º do art. 20 da Lei nº 8.742, de 1993, esgota o rol das possibilidades de comprovação de falta de meios, para o deficiente se manter ou ser mantido por sua família, então, realmente, essa norma há de ser tida inconstitucional, na medida em que se terá revelado flagrantemente limitadora (“considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência... a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo”) de garantia constitucional ilimitada (“a quem dela necessitar”). (grifo do autor).

Portanto, para o Relator a imposição de critério único, de caráter objetivo e econômico, não poderia limitar outros meios de a parte necessitada comprovar a situação de miserabilidade que autorizaria a concessão do benefício.

Na verdade, ao prever uma única hipótese para a concessão do benefício, a lei estaria limitando uma norma constitucional ilimitada. Além disso, a definição de um critério único teria o condão de afastar uma parte significativa daqueles que necessitassem do benefício assistencial inserto no art. 203 da CF.

Também o Ministro Sepúlveda Pertence enfatizou a insuficiência do comando presente no art. 20 da Lei 8.742/93. É o que se vê do seguinte trecho do seu voto, já destacado anteriormente44:

Senhor Presidente, considero perfeita a inteligência dada ao dispositivo constitucional, no parecer acolhido pelo Relator, no sentido de que o legislador deve estabelecer outras situações caracterizadoras da absoluta incapacidade de manter-se o idoso ou o deficiente físico, a fim de completar a efetivação do programa normativo de assistência contido no art. 203 da Constituição. A meu ver, isso não a faz inconstitucional nem é preciso dar interpretação conforme a lei que estabeleceu uma hipótese objetiva de direito à prestação assistencial do Estado. Haverá, aí, inconstitucionalidade por omissão de outras hipóteses? A meu ver, certamente que sim, mas isso não encontrará remédio nesta ação direta.

Inobstante tais ponderações, não foi o entendimento que prevaleceu. Como também já foi visto, o Tribunal acolheu o raciocínio do Ministro Nelson Jobim que na ocasião afirmou que “compete à lei dispor a forma de comprovação; se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da lei”45.

O prevalecimento do quanto exposto pelo Ministro Nelson Jobim, entretanto, não trouxe solução definitiva para o problema até então vivenciado pelos juristas da área. Não houve manifestação conclusiva acerca da omissão parcial inconstitucional. E isso se deveu

44 ADI nº 1.232/DF. Relator para Acórdão Ministro Nelson Jobim. DJ 01-06-1991. 45 Ibidem.

basicamente ao fato de que no momento do julgamento daquela ADI, o STF mantinha entendimento de que as ações diretas de inconstitucionalidade por ação e por omissão eram infungíveis, como exposto na ADI 986, Relator Néri da Silveira, DJ 08/04/199446:

A “quaestio juris”, que então se propõe como preliminar, respeita à possibilidade, ou não, de converter-se a ação direta de inconstitucionalidade em ação de inconstitucionalidade por omissão, tendo em conta o que efetivamente pretende a requerente.

Penso, no particular, que não cabe à Corte converter a ação direta de inconstitucionalidade em ação de inconstitucionalidade por omissão. Configurada hipótese de ação de inconstitucionalidade por omissão, em face dos termos do pedido, ase no § 2º do art. 103 da Lei Magna, o que incumbe ao Tribunal é negar curso à ação direta de inconstitucionalidade, “ut” art. 102, I, letra “a”, do Estatuto Supremo. À parte ficará reservado aforar, então, a ação de inconstitucionalidade por omissão, ou não, adotando-se, para tanto, o procedimento cabível, não coincidente com o da demanda aforada, não sendo, desde logo, cabível cautelar.

Dessa forma, a questão acerca da possível omissão parcial inconstitucional do art. 20 da Lei nº 8.742/93 manteve-se latente, permitindo que julgadores de todas as partes do país adotassem interpretações criativas ao se deparar com situações de miserabilidade não enquadráveis no dispositivo legal, porém exigentes da efetividade do art. 203, inciso V, da Constituição Federal.

Segundo o Ministro Gilmar Mendes, “não se podia exigir outra postura desses juízes. Os critérios criados e posteriormente sumulados pelos Juizados Especiais, visava apenas a preencher a patente lacuna normativa em tema de assistência social do idoso e do deficiente”47.

Para compreender a questão da (in)existência de uma omissão inconstitucional, ainda que parcial, do dispositivo da Lei nº 8.742/93, é necessário buscar a origem da norma constitucional regulamentada, ou seja, é importante levantar sob quais matizes emergiu a norma do art. 203, inciso V da CF.

Nesse aspecto, primeiramente é de se destacar que a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, batizada pelo então Deputado Ulysses Guimarães de “constituição coragem” e de “constituição cidadã”, tinha por finalidade, dentre outras coisas, reduzir as desigualdades sociais e lutar “contra os bolsões de pobreza que envergonham o país”48.

46 ADI nº 986/DF. Relator Ministro Néri da Silveira. DJ 08.04.1994.

47 RE 4.374/PE. Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes, DJe-173 de 03-09-2013.

48 MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang; et al. Comentários à

Coerente com essa ideia houve pela primeira vez na história constitucional brasileira, a constitucionalização da assistência social, conforme previsão dos arts. 203 e 204 da CF/88.

O inciso V do mencionado art. 203 trouxe previsão inédita que garante direito ao recebimento de um salário mínimo de benefício mensal caso a pessoa seja portadora de deficiência e/ou idosa e comprove não possuir meios de prover à própria manutenção ou tê-la provida por sua família. Segundo Sérgio Fernando Moro “trata-se de um verdadeiro direito antipobreza”49.

Essa norma constitucional guarda estreita relação com a ideia de democracia substantiva proclamada pelo texto constitucional de 1988. Representou a clara transição entre a democracia formal, modelo em que as desigualdades sociais são absolutamente ignoradas e disfarçadas, para a democracia substantiva, ilustrativa de um sistema que busca a redução das desigualdades sociais e a aproximação de indivíduos de diferentes congregações. Foi daí, inclusive, que se percebeu a necessidade de se constitucionalizar os direitos sociais.

Não pode haver democracia substantiva num estado constitucional que não garanta o mínimo de dignidade a todos os seus cidadãos indistintamente. Para Ingo Wolfgang Sarlet50, o

regime constitucional da assistência social elaborado pelo constituinte de 1988 “configura-se como a expressão máxima do princípio da solidariedade e mesmo do respeito à dignidade da pessoa humana, porquanto representa proteção político-jurídica especial destinada a indivíduos e grupos sociais vulneráveis ou necessitados”.

Portanto, o que se percebe da atuação do constituinte, é que dado o momento histórico vivenciado, houve uma clara opção pela segurança de inserir a previsão do pagamento do benefício assistencial de forma expressa na constituição.

Com isso, o direito ao benefício assistencial de um salário mínimo foi reforçado pelas garantias inerentes a qualquer outra norma constitucional garantidora de direito e ganhou uma dimensão subjetiva, tornando-se um direito público subjetivo que impõe ao Estado obrigações de ordem normativa e fática.

Da mesma forma, não é de se olvidar que o direito ao benefício também representou uma importante norma vinculante para o Estado, especialmente para os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que a partir de então, deverão fazer cumprir o mandamento constitucional em estrita observância às finalidades almejadas.

49 MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang; et al. Comentários à

Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 1953.

50 SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito

No que tange ao Poder Legislativo, é de grande relevância notar que o próprio texto constitucional deixou a seu cargo a regulamentação da norma garantidora do benefício assistencial. Fixados os limites à concessão do benefício, não pode a lei infraconstitucional impedir que o texto da constituição alcance sua finalidade. Ou seja, não é dado ao legislador elaborar lei que impeça o dispositivo constitucional de produzir seus devidos efeitos.

Da mesma forma “o não cumprimento total ou parcial desse dever constitucional de legislar gera, impreterivelmente, um estado de proteção insuficiente do direito fundamental”51. Assim, não há apenas uma proibição de excesso, mas também uma proibição

de proteção insuficiente. Essa mora legislativa não decorre exatamente de uma omissão, mas sim uma atuação incapaz de cumprir integralmente a vontade do legislador constituinte.

No julgamento da Reclamação 4374, o Ministro Relator afirma que se fosse hoje, o julgamento da ADI 1.232 não teria o mesmo resultado. Argumenta que a jurisprudência do Tribunal sofreu inúmeros avanços, sobretudo a partir da Lei nº 9.868/99, uma vez que são apresentadas algumas possibilidades de soluções para o caso de se detectar uma omissão inconstitucional.

A constatação desse avanço jurisprudencial pode ser percebida através de alguns julgamentos importantes. Vê-se que o Tribunal, que antes apenas cientificava o legislativo omisso acerca do estado de omissão inconstitucional, passou a adotar técnicas de decisão em que se prevê prazo para sanar a omissão; declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade; e até mesmo sentenças de perfil aditivo, regulando provisoriamente o tema questionado.

É exatamente por conta desses avanços que o Relator conclui afirmando52:

Portanto, o Supremo Tribunal Federal já dispõe de um arsenal diversificado de técnicas de decisão para enfrentar os problemas de omissão inconstitucional. Hoje, a ADI 1.232 poderia ter sido decidida de forma completamente diferente, sem a necessidade da adoção de posturas de autocontenção por parte da Corte, como ocorreu naquele caso.

Constatada então a omissão inconstitucional, e considerada a coisa julgada constante da ADI 1.232, urge verificar se a norma então declarada constitucional, sofreu, com o passar dos anos, um processo de inconstitucionalização, ou seja, se houve trânsito para a inconstitucionalidade na medida em que houve alterações fáticas e jurídicas justificantes de uma reinterpretação da norma infraconstitucional.

51RE 4.374/PE. Relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes, DJe-173 de 03-09-2013. 52

1.4.3 As mudanças fáticas e jurídicas que conduziram à Inconstitucionalização do §3º do art.