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As Ordenações Filipinas e o direito romano no Brasil

A independência do Brasil não acarretou uma ruptura imediata da ordem jurídica herdada de Portugal. Após a independência, o Direito Civil continuou a ser regido pelas Ordenações Filipinas e, subsidiariamente, pelo direito romano, até o advento do primeiro Código Civil brasileiro.

Assim, a adoção no Brasil, no período compreendido entre os anos de 1822 e 1916, foi regulamentada por estas duas fontes jurídicas.

Dispensa-se, neste momento, abordar novamente toda a regulamentação jurídica da adoção nas Ordenações Filipinas e no direito romano. 292

290 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Introdução à História do Direito Privado e da Codificação. 2ª. ed. Belo

Horizonte: Editora Del Rey, 2008. p. 43.

291

CÂMARA, José Gomes B. . Subsídios para a História do Direito Pátrio. Tomo III. 1822-1889. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1966. p. 54.

95 Contudo, é necessário realizar algumas ponderações acerca da aplicação destas fontes jurídicas no Brasil, no século XIX.

No primeiro capítulo ressaltou-se que, no século XVIII, em decorrência das influências do Iluminismo e das ideias jusracionalistas, surgiram na Europa correntes doutrinárias que buscaram estudar e aplicar o direito romano “com os olhos postos na realidade”. 293

Entre elas, destacou-se a corrente alemã do usus modernus, pela qual o direito romano devia ser adaptado às exigências da contemporaneidade. 294

Assim, com relação à aplicação do direito romano como fonte subsidiária das Ordenações Filipinas, a tendência da época era identificar no sistema do Corpus iuris civilis o que ainda podia ser aplicado e o que era obsoleto. Importava em distinguir as normas adaptadas às exigências do tempo, daquelas que correspondiam às circunstâncias romanas peculiares. Apenas as normas adaptadas deviam ser aplicadas.295

Em Portugal, os reflexos do iluminismo e das ideias jusracionalistas foram verificados por meio das alterações promovidas por Marquês de Pombal, em especial, na sistematização das fontes do direito português. 296

Conforme ressaltado, a conhecida “Lei da Boa Razão” determinou que o direito romano somente fosse aplicado quando, no caso concreto, se mostrasse concordante com a boa razão jusracionalista. 297

Assim, a reforma pombalina fixou um conjunto de regras destinadas a aferir a boa razão dos textos romanos. A partir de então, o interprete do direito devia averiguar o uso moderno dos preceitos do Corpus iuris civilis. 298

As ideias iluministas e jusracionalistas também chegaram ao Brasil Império.

293

COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português. 3ª. ed. Coimbra: Edições Almedina S.A., 1996. p. 357.

294 SILVA, Nuno. J. Espinosa Gomes da. História do Direito Português. Fontes de Direito. 4ª. ed. revista e

atualizada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. p. 459/460.

295 COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português. 3ª. ed. Coimbra: Edições Almedina S.A.,

1996. p. 357.

296 Conforme destacado, a expressão “boa razão” refere-se à utilização da razão jusnaturalista.

297 SILVA, Nuno. J. Espinosa Gomes da. História do Direito Português. Fontes de Direito. 4ª. ed. revista e

atualizada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. p. 465.

298 COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português. 3ª. ed. Coimbra: Edições Almedina S.A.,

96 Nesse sentido, Ricardo Marcelo Fonseca destaca:

“Dessa forma, se por um lado é verdadeiro que as ordenações mantiveram-se vigentes no Brasil, atravessando ainda todo o século XIX, não é menos verdade que sua aplicação, já no fim do século XVIII, não pode ser considerada como incólume às influências do jusnaturalismo racionalista, que a moldou e tingiu com cores iluministas.” 299

Dois fatores contribuíram nesse sentido.

Primeiramente, o fato de no Brasil, até 1827, não existirem cursos jurídicos. Assim, muitos intelectuais da elite brasileira se formavam em universidades européias, principalmente na Universidade de Coimbra 300, e traziam de lá as ideias iluministas e jusracionalistas.

Além disso, o fato dos primeiros cursos jurídicos no Brasil, criados em 1827, terem, inicialmente, seguido o paradigma do ensino português, que após as reformas pombalinas, conforme destacado, estabelecia um conjunto de regras destinadas a aferir a boa razão dos textos romanos, orientando o interprete do direito a verificar o uso moderno dos preceitos do

Corpus iuris civilis. 301

Nesse sentido, Giordano Bruno Soares Roberto ressalta que, “de Coimbra, vieram os principais elementos utilizados na organização dos cursos jurídicos brasileiros”. 302

Portanto, os primeiros juristas formados na Faculdade do Recife e na Faculdade de São Paulo também foram influenciados pelas ideias européias da época.

Assim, a cultura jurídica brasileira do século XIX não ficou imune às influências do iluminismo e do jusracionalismo.

299 FONSECA, Ricardo Marcelo. A cultura jurídica brasileira e a questão da codificação civil no século XIX.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, América do Norte, 44, out. 2007. Artigo disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view/9415/6507 .

300 FONSECA, Ricardo Marcelo. A cultura jurídica brasileira e a questão da codificação civil no século XIX.

Revista da Faculdade de Direito da UFPR, América do Norte, 44, out. 2007. Artigo disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/view/9415/6507 .

301 COSTA, Mário Júlio de Almeida. História do Direito Português. 3ª. ed. Coimbra: Edições Almedina S.A.,

1996. p. 370.

302 ROBERTO, Giordano Bruno Soares. O Direito Civil nas Academias Jurídicas do Império. Tese de doutorado

apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. 2008. p. 18.

97 Com relação à regulamentação da adoção e da legitimação de filhos no Brasil Império, alguns civilistas, ao tratar dos referidos institutos, chegaram a se referir à aplicação do direito romano adaptado ao uso moderno.

Cita-se, por exemplo, Lourenço Trigo de Loureiro que, em sua obra Instituições de

Direito Civil Brasileiro, ao tratar das adoções, assim esclarecia:

“(...) Como porém o nosso Direito não regulou completamente esta matéria, as questões ocorrentes devem ser decididas pelo Direito Romano, supletório das leis pátrias, no que ele for conforme a boa razão, ou aliás, pelas leis das nações civilizadas. O Cód. Civ. Fr., art. 343, só permite a adoção aos maiores de cinqüenta anos, varões, ou fêmeas, que não tiverem legítimos descendentes, e que excederem em idade ao adotado pelo menos quinze anos.” 303

Da mesma forma, Lafayette Rodrigues Pereira, em sua obra Direitos de Família, ao tratar do décimo segundo parágrafo, do título trinta e cinco, do livro segundo das Ordenações Filipinas, comentado no capítulo anterior, destacava:

“Tenho para mim que a cit. Ord. refere-se ao Direito Romano, corrigido pelo uso moderno, isto é, nos termos em que ele pode ser recebido como subsidiário, segundo as declarações da Ord. L. 3, Tit. 64, pr., in fine; da lei de 18 de agosto de 1769, §9; e dos Est. da Univer. de Coimbra. L. 2. Tit. 2, cap. 3, §§4, 13, 14, 15, 16, 17 e 19.

(...)

Assim pois, segundo o Direito Romano, corrigido pelo uso moderno, só não podem ser legitimados por subseqüente matrimônio os adulterinos e os incestuosos.” 304

Da mesma forma, constata-se a presença das ideias jusracionalistas na obra de Clovis Beviláqua, autor do projeto do Código Civil de 1916:

“A conclusão que se nos impõe é a da existência do instituto da adoção; e como não a regularam nossas leis, cumpre-nos suprir a lacuna com o direito romano interpretado e modificado pelo uso moderno.” 305

303 LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro. Tomo I. 3ª. ed. mais correta e

aumentada. Recife: Tipografia Universal, 1861. p. 86.

304

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. 2ª. tiragem. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1889. p. 363/364.

98 Assim, a adoção no século XIX, continuou regulamentada pelo direito romano, mas devendo este ser adaptado ao contexto jurídico da época.

Pode-se dizer que a aplicação do direito romano adaptado ao uso moderno contribuiu para o desenvolvimento do instituto da adoção.

No final do século XVIII e no século XIX, já não existia a diferença entre adrogação e adpoção existente no Corpus iuris civilis. Não havia mais a distinção do instituto da adoção pelo fato do adotando ser menor ou emancipado. 306

Clovis Beviláqua ressalta que, no século XIX, a adoção não mais se restringia a um direito do pater familia. As mulheres já podiam praticar a adoção, desde que não possuíssem filhos e estivessem em pleno gozo de sua capacidade civil. 307

Assim, segundo Clovis Beviláqua, os princípios romanos não subsistiram em sua integridade. 308

Portanto, pode-se afirmar que no Brasil, no século XIX, a adoção foi regulamentada pelas Ordenações Filipinas e pelo direito romano. Na verdade, mais pelo direito romano que pelas Ordenações Filipinas, e que, em decorrência das influências iluministas e jusracionalistas, a aplicação do direito romano foi adaptada ao uso moderno.

Pode-se afirmar ainda que a aplicação do direito romano adaptado ao uso moderno para regulamentar a adoção contribuiu para que o instituto atendesse as finalidades da época, mas permanecesse disciplinado por antigas normas jurídicas, o que refletiu, como se demonstrará adiante, na recepção e continuidade das mesmas normas regulamentadoras da adoção no Código Civil de 1916.