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CAPÍTULO 1 – DO SERTÃO À ESCRITA

1.3 A língua

1.3.2 As palavras como se tivessem acabado de nascer

Guimarães Rosa recolocará essa discussão em seus próprios termos; sua relação com a linguagem, que expõe em seu diálogo com Günter Lorenz, ocorrido em janeiro de 1965 em Gênova, durante o Congresso de Escritores Latino- Americanos, comporta uma dimensão que ele chama de metafísica, embora ele tenha como base o português falado no Brasil.

Seus romances, diz ele, aliam poética e realidade, e sua máquina de controle contra as monstruosidades que podem nascer desse casamento é “o idioma português, tal como o usamos no Brasil” (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 70). Usa, porém, esse idioma de modo livre, explorando suas possibilidades e juntando-as com as de outros idiomas. Isso significa, diz ele, em termos tão agudos quanto Claudel, que não se submete “à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia ciência lingüística, foram inventadas pelos inimigos da poesia” (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 70-71).

Para ele, o português falado no Brasil é uma língua mais rica do que o português europeu, por razões etnológicas e antropológicas (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 81), pela influência das línguas indígenas e negras. Não se contentou, porém, com as vastas possibilidades de expressão do português do Brasil, com a síntese que, historicamente, é essa língua. A busca pelo infinito que são seus livros levou-o a explorar todas as possibilidades de expressão e elaborar sua própria síntese:

Nunca me contento com coisa alguma. Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito. E, além disso, quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis. Por isso acrescentei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 81).

Lorenz pede-lhe para citar alguns desses elementos. Guimarães Rosa diz que são muitos, mas se refere principalmente a um método, que é a base de sua

literatura e que acreditamos ser fundamental para entendermos sua linguagem. Cada palavra deve ser tratada como se fosse absolutamente nova, como se nunca tivesse sido usada antes; as palavras, tais como as usamos no cotidiano, são totalmente esvaziadas, exprimindo apenas ideias feitas, banalidades que não suscitam o menor pensamento:

Primeiro, há meu método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e reduzi-la a seu sentido original. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 81).

Parte fundamental dessa revitalização das palavras é a utilização da língua de sua região natal, por ela ainda guardar seu frescor:

Por isso, e este é o segundo elemento, eu incluo em minha dicção certas particularidades dialéticas de minha região, que são linguagem literária e ainda têm sua marca original, não estão desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria lingüística. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 81).

Como homem do século XX, Guimarães Rosa usa também a língua da ciência; por outro lado, lança mão do português dos escolásticos da Idade Média, além de expressões e palavras tomadas de empréstimo ou inspiradas de outros idiomas10. Temperando todos esses elementos que, ressalta, não são sua propriedade particular, estando à disposição de todos, compõe uma linguagem própria. Essa linguagem só é sua por confundir-se com a vida, e, porque a vida é sempre nova, as palavras têm que surgir sempre renovadas, apesar de aparentemente, no cotidiano, serem sempre as mesmas, estarem encardidas, terem perdido o brilho. Seu trabalho consiste em redescobri-las, por isso é responsável por elas.

Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isso significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas. Daí resulta que tenha de limpá-lo, e como é a

10

Günter Lorenz comenta em uma nota a esse mesmo diálogo: “Por um artigo publicado no Brasil em 1967, após a morte de Guimarães Rosa, eu soube que ele falava português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. Além disso, possuía conhecimentos suficientes para ler livros em latim, grego clássico, grego moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio.” (LORENZ, 1983, p. 82).

expressão da vida, sou eu o responsável por ele, pelo que devo constantemente umsorgen [zelar]. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 83).

Rosa quer “voltar a cada dia à origem da língua” (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 84), mas isso não significa de modo algum, para ele, buscar apenas a etimologia das palavras; ele vai mais longe do que isso, quer voltar a um ponto em que as palavras ainda não nasceram, em que ainda estão nas “entranhas da alma”, para poder pari-las segundo sua própria imagem.

Não se trata, pois, de estudos linguísticos sobre a origem das palavras, de uma espécie de eruditismo. Trata-se mais propriamente de metafísica da língua, de voltar a seu ser primeiro, à época em que ainda não existia diferença entre as palavras e as coisas, mas uma unidade originária. Acredito que seja isso o que Rosa pretende dizer ao se declarar um reacionário da língua:

Não sou um revolucionário da língua. Quem afirme isto não tem qualquer sentido da língua, pois julga segundo as aparências. Se tem de haver uma frase feita, eu preferia que me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas estranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 84).

Ele ainda aproveita a ocasião para explicar seu processo de criação com as palavras “revolucionário” e “reacionário”: o significado que atribuímos às palavras depende de como as utilizamos, e não apenas de sua etimologia. É onde as palavras estão e sua utilidade o que determinará seu sentido, que não é necessariamente o mais batido.

Veja como se tornam insensatas as frases feitas, tais como “revolucionário” ou “reacionário”, quando as examinamos em função de sua utilidade, quando a gente as toma beim Wort nimmt [literalmente], como dizem os alemães. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 84).

Essa volta ao ser originário da língua está relacionada com o sertão, com o homem do sertão e com a língua que ali se fala:

Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 85).

Mas é preciso entender o que Rosa quer dizer com homem do sertão, língua

do sertão, sertão.

O sertão, diz ele, “é o terreno da eternidade, da solidão, onde Inneres und

Ausseres sind nicht zu trennen [o interior e o exterior já não podem ser separados],

segundo o Westöstlicher Divan [Divã oriental-ocidental]” (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 86). O sertão é, então, o lugar mágico de Minas Gerais que ainda vive a unidade originária de sujeito e objeto, em que o mundo não se distingue do sujeito que o representa, em que as palavras não dizem o mundo, são o mundo.

O homem do sertão é também uma unidade originária, “é o eu que ainda não encontrou um tu”, ele simplesmente é. O homem do sertão é absoluto, a palavra absoluta que cria o mundo, que ainda está “além do céu e do inferno” (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 86).

Isso explica a complexidade do discurso de Rosa/Riobaldo11: trata-se de pôr em palavras aquilo que é, mas aquilo que é são as próprias palavras, e não se pode fazer com que o ouvinte ou o leitor confundam as coisas, achando que se está descrevendo uma realidade que está fora do sujeito que a está contando, embora, como apontou Walnice Nogueira Galvão, essa realidade esteja sempre presente.

Assim como a realidade do sertão é mais que sua realidade empírica, o idioma do sertão é mais do que a língua empírica falada por seus habitantes, embora esta última esteja totalmente incluída nele. Por isso o regionalismo de Rosa é tão universal, e por essa mesma razão ele pode dizer que Goethe era um sertanejo:

Goethe nasceu no sertão, assim como Dostoievski, Tolstoi, Flaubert, Balzac; ele era, como os outros que eu admiro, um moralista, um homem que vivia a língua e pensava no infinito. Acho que Goethe foi, em resumo, o único grande poeta da literatura mundial, que não escrevia para o dia, mas para o infinito. Era um sertanejo. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 85).

Zola, cuja língua Rosa considerava estar aquém de sua consciência, não é considerado sertanejo, mas apenas “de São Paulo”, por perceber, “como muitos

11 Na mesma entrevista a Lorenz, Guimarães Rosa se coloca como um homem do sertão, no sentido

que acabamos de descrever. Por isso, diz ele, Riobaldo é seu irmão e o Grande sertão: veredas pode, desse ponto de vista, ser considerado biográfico. Manuel Bandeira, em carta ao amigo, dizendo ter percebido, à leitura do romance, que Riobaldo era poeta, escreve-lhe: “Riobaldo é você se você fosse jagunço” (BANDEIRA, 1967, p. 590).

autores contemporâneos, a maldição dos costumes”, mas aceitar sem crítica “a linguagem corrente” (ROSA, apud LORENZ, 1983, p. 85).

A língua corrente está morta porque só expressa clichês, por isso não se pode usá-la para fazer literatura, ou para expressar ideias. Ideias não podem ser expressas com algo morto:

O que chamamos hoje linguagem corrente é um monstro morto. A língua serve para expressar idéias, mas a linguagem corrente expressa apenas clichês e não idéias; por isso está morta, e o que está morto não pode engendrar idéias. Não se pode fazer desta linguagem corrente uma língua literária, como pretendem os jovens do mundo inteiro, sem pensar muito. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 88).

Essas afirmações de Guimarães Rosa são esclarecedoras a respeito do que ele chama de homem do sertão, sertão, língua sertaneja. Cabe-nos, agora, examinar como se compõe, em Grande sertão: veredas, essa língua sertaneja, ao mesmo tempo tão próxima e tão distante da língua empírica falada no sertão.