• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – QUE FAZER?

3.2 O “sistema do eu”

3.2.1.1 O realismo

O surgimento do realismo na França coincide com o desenvolvimento tanto de uma concepção da história que se propõe a dar conta da totalidade da realidade apoiando-se em documentos, quanto de uma ciência que se pauta pela observação precisa e pela experimentação, ambas isentando-se, ou ao menos pretendendo isentar-se, de impor aos fatos juízos de valor.

Esses ideais serão igualmente assimilados, de modo geral, pelos escritores realistas, que pregarão a não intervenção absoluta do escritor em suas narrativas e a apresentação objetiva dos aspectos e tipos da sociedade por eles escolhidos. É conhecida a ambição de Balzac de “fazer concorrência ao registro civil”, pintando, como secretário da sociedade francesa de sua época, a história de seus costumes (GERSHMAN; WHITWORTH, 1971, p. 231), e as muitas reivindicações de imparcialidade narrativa dos escritores desse período. Stendhal, dirigindo-se ao leitor de O vermelho e o negro, define o romance como “um espelho que é levado

por uma grande estrada” e que “umas vezes reflete aos vossos olhos o azul dos céus e outras a lama da estrada”, o autor sendo apenas aquele que “carrega o espelho nas costas” (STENDHAL, 1979, p. 341-342). E Flaubert luta abertamente contra o lirismo e a presença do autor na própria obra, para que o real possa ser simplesmente representado e não julgado. Ele diz: “Nenhum lirismo, nenhuma reflexão, personalidade do autor ausente. Será triste de ler; haverá coisas atrozes de miséria e fetidez” (FLAUBERT apud GAUVIN, 2004, p. 181).

O procedimento geral de escrita dos realistas funda-se em um modo particular de enunciação que não por acaso Benveniste chamará de histórico. Afinal, contar o passado acreditando que se pode apreender os fatos em si mesmos, “objetivamente”, é, como apontamos, característica de um tipo particular de história, nascida também no século XIX, em que o historiador se constitui em seu discurso como aquele que se ausenta dele, retirando de seu enunciado todas as marcas do

eu. É Barthes que nos explica esse movimento:

Em nível de discurso, a objetividade – ou carência dos signos do enunciante – aparece assim como uma forma particular de imaginário, o produto do que se poderia chamar de ilusão referencial, visto que o historiador pretende deixar o referente falar por si só. Essa ilusão não é exclusiva do discurso histórico: quantos romancistas – na época realista – imaginam ser “objetivos” porque suprimem no discurso os signos do eu! A lingüística e a psicanálise conjugadas deixam-nos hoje muito mais lúcidos com relação a uma enunciação privativa: sabemos que as carências dos signos são também significantes. (BARTHES, 2004, p. 169).

Ele acrescenta ainda que, assim como elimina as marcas do sujeito que enuncia, os discursos que se pretendem objetivos só conhecem, por assim dizer, um esquema semântico de dois termos, o referente – a “realidade” – e o significante, como se este último pudesse “copiar” diretamente a “realidade”, sem a mediação de um conceito, sem a mediação do significado, enquanto, na verdade, os fatos reais só ganham sentido no interior de um discurso.

O discurso histórico, acreditando que o fato pode ser exprimido diretamente pelo significante, acaba, na verdade, confundindo referente externo e significado, apresentando este último como sendo o próprio referente. É isso, diz Barthes, que produz o que ele chama de “efeito de real”:

Em outros termos, na história “objetiva”, o “real” nunca é mais do que um significado não formulado, abrigado atrás da onipotência aparente do

referente. Essa situação define o que se poderia chamar de efeito de real. (BARTHES, 2004, p. 178).

Embora partilhando esses mesmos ideais, os escritores realistas têm consciência de que esse efeito é construído pela linguagem. Maupassant já falava do artifício da neutralidade realista, que apreende a lógica dos fatos e não os incontáveis acontecimentos de nosso dia a dia, embora crie essa ilusão com procedimentos da escrita.

Fazer verdadeiro consiste então em dar a ilusão completa do verdadeiro, seguindo a lógica comum dos fatos, e não em transcrevê-los servilmente no alvoroço de sua sucessão. Concluo que os realistas de talento deveriam se chamar mais exatamente ilusionistas. (MAUPASSANT apud GAUVIN, 2004, p. 169).

Mais ainda, esses escritores têm consciência da impossibilidade de eliminar totalmente as marcas de presença do sujeito no texto. Assim, Flaubert – talvez o mais “subjetivo” dos autores realistas diz: “Eu sempre me proibi de colocar o que quer que fosse de mim mesmo em minha obra e, contudo, coloquei muito” (FLAUBERT35 apud GAUVIN, 2004, p. 181).

Esse “eu mesmo” de que ele fala já não é o “eu” pessoa psicológica, mas está incorporado a seu texto, como se pode facilmente verificar em Madame Bovary, onde a visão da personagem invade o texto. E mesmo em Balzac, sempre apontado como o realista por excelência, encontramos marcas de subjetividade, como ironia e juízos de valor.

Tais marcas, porém, estão envolvidas em um sistema em que o narrador ainda conserva uma posição de observador externo; assim, mesmo que ceda a palavra a suas personagens ou adote seus pontos de vista, isso não entra em conflito com sua “objetividade”, antes a confirma, pois o “eu” das personagens só pode se manifestar no interior do espaço que lhe é cedido pelo narrador para, por assim dizer, compor o mundo que ele está construindo, mas não para os pôr enquanto sujeitos.

Nos romances que se enquadram no chamado “sistema do sujeito”, acontece o inverso. Não é por serem subjetivos que tais textos se abstêm de qualquer tipo de referencialidade. Mas ela é inseparável do sujeito que a constrói e se constrói no texto.

Assim, Grande sertão: veredas, como apresentamos no Capítulo 1, é totalmente fincado na realidade social e geográfica sertaneja; contudo, nada ali é externo ao sujeito Riobaldo Tatarana, que se tece na narrativa. Aqui, o objetivo é absorvido pelo subjetivo; ali, o subjetivo enquadra-se na pintura objetiva.

Do ponto de vista desenvolvido por Meschonnic, tanto os romances “objetivos” quantos os romances “subjetivos” possuem ritmo, uma vez que ambos são movimentos do sujeito no texto, embora um se constitua ocultando-se e o outro, revelando-se, pois, diz ele, as condições de observação são sempre “inseparavelmente subjetivo-objetivas” (MESCHONNIC, 1982, p. 78-79). “A escrita impessoal”, diz ainda o mesmo autor, “não é, pois, a escrita de um sujeito zero, nem, ingenuamente, o emprego da „terceira pessoa‟” (MESCHONNIC, 1982, p. 89).

Estamos frente a diferentes modos de construção do sentido – e não a modos de construção da verdade –, que pertencem a épocas históricas particulares e se submetem a convenções literárias próprias.

A historicidade é, devemos sublinhar, outro aspecto incontornável do ritmo apontado por Meschonnic. Enquanto a teoria do signo opera com bipartições axiomáticas – forma e conteúdo, significante e significado, poesia e prosa –, a teoria do discurso, que tem o sujeito em seu cerne, inclui obrigatoriamente a história. Apenas porque está situado na história, diz Meschonnic, e sofre suas injunções, é que um discurso torna-se sistema, e não um amálgama de particularidades:

A especificidade literária, poética, é pois o máximo de injunções (variáveis segundo a dimensão, o “gênero”) que um discurso possa produzir. Apenas uma história – nem uma consciência, nem uma intenção – pode fazer com que um discurso seja sistema. O sistema do eu não é nem liberdade, nem vontade, nem escolha, nem recusa. Ele não é o querer dizer. É impreditível, como tudo o que é história, e, como ela, fornece a posteriori teleologias fáceis. (MESCHONNIC, 1982, p. 86).

Eis outro modo de dizer que subjetividade não se confunde com subjetivismo. A historicidade faz parte de qualquer prática de linguagem e a compreensão de um escrito literário passa pela compreensão do universo histórico de que participa, não porque ele o determina mecanicamente, mas porque suas injunções o constituem. A história, assim como o sujeito, se constrói no próprio texto.

É ao abordar a conceitualização da poesia e da prosa como o negativo uma da outra – para denunciá-las como mais uma das cisões da teoria do signo –, que Meschonnic põe em debate a questão da necessária historicidade dos discursos.

A teoria do signo, que define a prosa como não-poesia, coloca-as como dois gêneros distintos válidos para todo e qualquer tempo. Ora, reflete Meschonnic, quando pensadas como discurso e não como grandes formas absolutas, as prosas e

as poesias – pois há diferentes prosas e diferentes poesias – são historicamente situadas. Se a língua pode ser pensada, pela teoria do signo, como um sistema em si e por si mesmo, isso não acontece com o discurso, que é sempre constituído e constituidor de certo sujeito e, assim, obrigatoriamente partícipe de sua época. De forma que, continua ele, se no século XVIII na França a Plêiade se afasta de Marot, buscando fora da língua popular os materiais para a poesia, Pushkin, na Rússia do início do século XIX, ao contrário, afasta-se do erudito e vai buscar a inovação na língua popular (MESCHONNIC, 1982, p. 397).

Do mesmo modo, a maneira de pensar a relação entre poesia, prosa e língua falada, explica ele, muda de cultura para cultura. Não é em toda parte que a língua falada é assimilada, como geralmente acontece na França, à prosa; a tradição inglesa, que trabalha a relação da língua falada com a poesia, distingue a fala da prosa (MESCHONNIC, 1982, p. 405). “As culturas invertem os valores”, diz Meschonnic, após apontar que “a ousadia é, a cada vez, outra” (MESCHONNIC, 1982, p. 397).

Um escrito incorpora, assim, as injunções de seu tempo, quer se trate de um original ou de uma tradução, embora no interior de uma mesma convenção existam maneiras distintas de se construir o sujeito e, assim, ritmos particulares a cada autor e obra.

Avaliar as traduções de um romance como Grande sertão: veredas, que tem a oralidade em seu cerne – se, com Meschonnic, chamarmos de oralidade o ritmo específico dos escritos em que sujeito, escrita e mundo se fazem simultaneamente – , exige, assim, necessariamente, considerá-las de um ponto de vista que permita perceber seu ritmo.

E será mais uma vez Meschonnic que proporá parâmetros – e não categorias – que podem ser profícuos no exame de traduções literárias, pois se trata sempre de conservar a literalidade do texto, no caso de Grande sertão: veredas, sua oralidade, e não de cindi-lo em diferentes partes que devem ser mantidas cada uma por si, sem que se leve em conta o sentido que formam com suas relações. O que seria considerar, no fundo, que o ritmo está em tal ou qual ponto, e não no todo. Trata-se,

sempre, diz Meschonnic, de conservar a poética do texto e, para isso, não podemos nos valer dos dualismos da teoria do signo.

Em primeiro lugar, diz ele, cabe historicizar as traduções, ou seja, perceber que, assim como o autor está em sua época, os tradutores inserem-se igualmente na deles e que o acesso à língua só é possível através das ideias que eles têm sobre a língua, ideias que são, fatalmente, históricas.

[A língua] só é acessível através das maneiras de falar da língua: as ideias, do tradutor ou de quem quer que seja, sobre a língua. E estas ideias são sempre históricas. Elas constituem uma grade, à qual não se pode escapar. A primeira ilusão que esta grade produz é fazer crer que ela não existe. Todo modelo linguístico participa disto. Sendo invisível, passa pela natureza das coisas. É o que ocorre com o modelo dualista do signo, nesse caso. (MESCHONNIC, 2010, p. 42).

O tradutor insere necessariamente suas ideias sobre a língua em sua tradução e são elas que se destacam, em primeiro lugar, em seu texto:

É, pois, tanto em suas próprias ideias da linguagem quanto no texto que deve trabalhar o tradutor. Ele as inscreve em sua tradução tanto ou mais do que sua compreensão do texto. São elas, através de sua tradução, que vemos primeiro. Quanto mais ele as esconde ou recusa vê-las, mais ele as mostra. Elas constituem um meio metaliterário e metalinguístico que se interpõe entre o texto e a tradução (MESCHONNIC, 2010, p. 42).

Esse “meio metaliterário” que se interpõe entre original e tradução através do tradutor é a “cultura”, ou seja, todo o imaginário sobre o “literário” de uma época, que tanto mais se imporá ao tradutor quanto menos ele tiver consciência dele:

Este meio composto, mal conhecido, mal dominado, é o gosto, a cultura, a situação do tradutor. Todos os clichês sobre o fundo e a forma, a prosa e a poesia, o escrito e o oral, o gênio das línguas, formam a matéria ideológica deste magma, os mitos da linguagem que alguns tomam por uma transparência. (MESCHONNIC, 2010, p. 42-43).

De modo que podemos dizer que também a “subjetividade tradutória” não se percebe fora do texto, na pessoa psicológica do tradutor, mas pode ser constatada no próprio modo como ele constrói sua tradução.

Em segundo lugar, cabe refletir sobre as traduções da perspectiva do ritmo, tentando perceber como os tradutores deram conta da poética do original, ou seja, como o resgataram – ou não – em sua língua.

Porém, no que consiste traduzir o ritmo em sua poética? Apresentaremos alguns exemplos fornecidos por Meschonnic, que nos servirão, mais adiante, para entender as traduções de Grande sertão: veredas.