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CAPÍTULO 2 – E AGORA, JOÃO? A CORRESPONDÊNCIA COM OS TRADUTORES

2.1 Quadro geral das cartas

A extensão da correspondência de Guimarães Rosa com seus tradutores para os diversos idiomas impressiona, logo de saída, pelo volume. Conservados no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) existem 372 documentos16, classificados por correspondente. Foram 73 cartas trocadas com o tradutor alemão Curt Meyer-Clason, de 23 de janeiro de 1958 a 27 de agosto de 1967; 128 com a tradutora para o inglês, Harriet de Onís, de 19 de novembro de 1958 a 25 de outubro de 1966; 95 com o tradutor para o italiano, Edoardo Bizzarri, de 18 de outubro de 1959 a 27 de agosto de 1967; 47 com o tradutor para o francês, Jean-Jacques Villard, de 7 de julho de 1961 a 25 de abril de 1967; 20 com os tradutores para o espanhol, Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate, de 26 de fevereiro de 1964 a 21 de fevereiro de 1967; e 45 com tradutores diversos (para o espanhol, francês, inglês, italiano e sueco) para publicações avulsas no exterior, de dezembro de 1954 a 12 de setembro de 1967 (VERLANGIERI, 1993, p. 5-6).

Mais do que isso, impressiona o cuidado com que o escritor respondia a essas cartas, discutindo as dúvidas dos tradutores, e com isso despendendo um tempo que, segundo Paulo Rónai, “daria para escrever outro Corpo de baile ou outro

Grande sertão: veredas” (RÓNAI, 1971).

A importância que o escritor dava à divulgação de sua obra no exterior pode ser constatada no entusiasmo com que falava no lançamento de seus livros em outros países e no grande respeito que nutria pelos tradutores. De seus elogios abertos e repetidos, citaremos apenas alguns exemplos. Quando é publicado na França um dos tomos de Corpo de baile com o título de Les nuits du sertão, ele escreve a Jean-Jacques Villard:

E, outra vez, era ao meu amigo J.-J. Villard que ia, principalmente, a minha admiração, sincera, com a minha entusiasmada gratidão. Porque achei a tradução tão boa, cuidada, competente, conseguida, fiel e viva, saborosa – a melhor possível. Nem pensava, antes, fosse algum dia ler uma transposição, assim tão plenamente válida, da minha novela para o francês.

16 E sabemos que algumas cartas nunca foram encontradas, que outras ficaram com os tradutores e,

essas, ou desapareceram ou foram publicadas por eles – casos de Edoardo Bizzarri e Curt-Meyer Clason.

Tamanhas eram as dificuldades, mas todas vencidas com maestria. (JGR a JJV, 17/10/1962 – ROSA, [1961-1967]).

E a Edoardo Bizzarri, sobre o Coco do Chico Barbós, que abre a novela Dão-

Lalalão, também de Corpo de baile:

Sua tradução, do dito, é simplesmente formidável, represtigiou a coisa. (Digo-o “no duro”, ferozmente rigoroso, fora de toda camaradagem, simpatia intelectual, “diplomacia” ou qualquer etcétera. Ficou uma beleza. (JGR a EB, 03/01/1964 – ROSA, 1981, p. 81).

E a Meyer-Clason, sobre as amostras de tradução de Grande sertão: veredas que ele fizera para enviar às editoras eventualmente interessadas em publicá-lo:

E, com sinceridade lhe digo, gostei muito dessas amostras da tradução. Sei das muitas dificuldades que o Amigo encontrou pela frente, e admira-me que se tenha podido sair tão bem da empresa. A correspondência é exata, não há deturpações, as boas soluções são de grande felicidade. Fiquei muito contente. Agradeço-lhe e felicito-o. (JGR a CMC, 11/11/1959 – ROSA, 2003, p. 83).

E à tradutora americana, sobre Duelo, de Sagarana, primeiro conto ao qual ela se lançou:

Antes de tudo, tenho a alegria de cumprimentá-la e de lhe dizer de novo a minha gratidão. Sua tradução está realmente esplêndida. E, creia-me, nisto não entra gota de lisonja convencional ou de entusiasmo irrefletido, e sim clara sinceridade. Logo à primeira vista, achei-a ótima. Relendo-a, sucessivas vezes, sempre fui gostando mais e mais, aumentando a minha admiração pela sua honesta capacidade e carinhoso esforço. (JGR a HO, 08/04/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 72).

Se pode haver, nesses elogios, uma boa dose de diplomacia, há também muito de verdade, pois Guimarães Rosa reconhece o esforço exigido para traduzir seus livros e é grato aos que se dispuseram a tal empreitada, mesmo quando o resultado se revela frágil. Assim, ele comenta as versões americana e francesa de

Grande sertão: veredas com Curt Meyer-Clason. Sobre a primeira, ele diz:

O livro americano está cheio dessas falhas, e ainda mais fundas alterações, enfraquecimentos, omissões, cortes. Basta compará-lo com o original, em qualquer página. Com tudo isso, porém, reconheço que os tradutores merecem meu aplauso e gratidão, pelos enormes esforços com que operaram, dando ao mundo o Grande Sertão em inglês, abrindo para ele um grande caminho, se Deus quiser. (JGR a CMC, 17/06/1963 – ROSA, 2003, p. 116).

E sobre a segunda:

Saiu a tradução francesa, pela Albin Michel. Já recebi um exemplar, por via aérea. O livro ficou bonito, e a tradução não está má; mesmo, fiquei grato, a leitura alegrou-me bastante. Naturalmente, como fazem os franceses, houve cortes, às vezes infelizes. A coisa engrossou, perdendo muito da sutileza. (JGR a CMC, 27/03/1965 – ROSA, 2003, p. 259).

E não poderíamos deixar de mencionar seu maravilhamento com o Corpo di

ballo, de Edoardo Bizzarri:

[...] agora, por via aérea, recebi o primeiro exemplar do, Corpo di Ballo remetido por Feltrinelli. Enfim, pude lê-lo, inteiro. Também com grata emoção. Admirável o trabalho de Edoardo Bizzarri. Tão sério, meticulosamente esforçado, fatto con amore. Vibrei de alegria, ante magníficas “recriações”, soluções que eu não pensava possíveis. Principalmente, a estrita fidelidade, com colorido, com os frêmitos. O homem sabe passar o fio mais fininho, pelo olho da mínima agulha. Fiquei feliz. (JGR a CMC, 15/12/1964 – ROSA, 2003, p. 205).

Por reconhecer a dureza da tarefa17 e desejar ampliar seu público leitor, Rosa se dispõe a ajudá-los a decifrar seus livros e, com isso, lega-nos uma verdadeira chave para entendê-los, indicando os pontos cruciais de sua escrita, aquilo que não se poderia nela ignorar sem descaracterizá-la. Paulo Rónai sintetiza:

O conjunto das respostas dadas aos tradutores alemão, italiano, francês, norte-americano e espanhol representa nada menos que uma exegese minuciosa da obra rosiana dada pela única pessoa capaz de dá-la. Seu valor é acrescido pelo poliglotismo de Guimarães Rosa que lhe permitia não só esclarecer o sentido de vocábulos ou de trechos, mas também de propor equivalentes na respectiva língua. (RÓNAI, 1971).

Essas chaves são essenciais para quem, como nós, pretende analisar as duas traduções francesas de Grande sertão: veredas, e é por isso que nos dispomos, neste capítulo, a lê-las e a delas extrair as opiniões do autor sobre sua própria obra.

17 Sobre Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa diz a Jean-

Jacques Villard: “O livro é crespo, fechado, duro, pelo que posso imaginar as dificuldades heróicas para vertê-lo” (JGR a JJV, 17/08/1963 – ROSA, [1961-1967]). E sobre Duelo, a Harriet de Onís: “Sei também que o texto original era de versão difícil, por causa da quantidade de termos e giros-de-frase regionais, e mais os „tiques‟ do autor, arrevezamentos e ousadias” (JJG a HO, 08/04/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 72).

Cada conjunto de cartas dirigidas a um tradutor em particular aborda precipuamente uma obra específica, e isso por um motivo de ordem prática: Rosa propunha-se a auxiliar o tradutor que estava vertendo pela primeira vez em língua estrangeira determinado livro seu e que não tinha, por isso, nenhuma tradução de base para comparar com a sua.

Ao recusar ler as provas da edição alemã de Corpo de baile, além da confiança no tradutor e da falta de tempo, Guimarães Rosa argumenta já existir uma tradução modelo dessa obra, a de Edoardo Bizzarri, para o italiano, à qual acompanhara de perto em sua correspondência com ele. Na mesma oportunidade, comenta que está dando todo apoio a Harriet de Onís, para a versão inglesa de

Sagarana, por tratar-se justamente de sua primeira publicação para uma língua

estrangeira:

Mas, dirá, se deu tanto empenho nisso, quanto ao Sagarana em inglês, por que razão não dedicar também mais alguns momentos ao Balletkorps, que, além do mais, é o meu livro predileto? Ah, por tudo que disse antes. E porque, para o Sagarana, é a primeira tradução, que, se não sair boa, prejudicará o livro no mundo. Já o Corpo de baile tem uma tradução básica, “autorizada”, definitiva: a de Bizzarri. O Grande sertão: veredas tem também a sua: a de Meyer-Clason. O Sagarana, não. E note, a tradutora dele não é um Tradutor como Meyer-Clason ou Bizzarri, infelizmente. (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 236).

Na mesma passagem, ainda acrescenta estar disposto a dar toda cobertura para Meyer-Clason lançar-se ao Primeiras estórias, ainda sem nenhuma tradução:

A não ser, isto é, quanto ao Primeiras estórias, também ainda sem sua “tradução modelo” pronta. Se o Amigo quiser atacar, desde já, o Primeiras

estórias, estarei pronto a dar toda cobertura e completa colaboração. Seria

ótimo. (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 236).

Isso nos possibilita apreender a posição de Guimarães Rosa acerca de seu fazer literário em geral, e não apenas acerca da visão que o guiou na elaboração de uma obra específica. Nenhum dos conjuntos de cartas, aliás, focaliza-se em Grande

sertão: veredas. Harriet de Onís, que primeiro a enfrentou, não pôde contar com a

ajuda direta de Rosa, o qual, sobrecarregado de trabalho e com a saúde abalada, não podia se permitir as emoções e a angústia que lhe provocavam tal tarefa, além de sentir ainda dentro de si, naquele momento, a pressão de um novo livro que exigia nascer:

Note bem, não é só pela extensão “territorial” do trabalho, mas principalmente pela carga de excitação que deflagra, a ansiedade febril que em mim provoca uma tarefa dessas, com seu stress qualitativo, afetivo. [...] Outra coisa, que aumentaria de muito o stress: é que, puxado por escravizadora inspiração interna, estou trabalhando, quando posso, num novo livro; e a Senhora sabe, que, nessas ocasiões, a gente fica no que os franceses chamam de “état de défense”, com relação a livros passados. (JGR a HO, 23/04/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 90).

Harriet de Onís e, depois, James Taylor, que concluiu a tradução, contaram, por indicação do próprio Rosa, com a ajuda de uma inglesa que morava no Rio de Janeiro, Nina F. Oliver. Curt Meyer-Clason, por sua vez, trabalhou com a ajuda do então cônsul brasileiro em Munique, Mário Calábria. Jean-Jacques Villard, com veremos adiante, não era afeito a grandes consultas tradutórias, e Edoardo Bizzarri só realizou a tradução do romance após a morte de Rosa. Em todas as cartas, porém, encontramos comentários à tradução dessa obra. A Harriet de Onís, Rosa aponta algumas falhas da tradução, após a publicação do livro. Com Curt Meyer- Clason, comenta algumas passagens da tradução americana e a prova de tradução que este tradutor fizera com o intuito de apresentar o livro às editoras alemãs. Com Jean-Jacques Villard, ele se dedicará à discussão dos nomes próprios e com Bizzarri vai se limitar a exprimir seu contentamento com a publicação dessa obra no exterior.

Antes de selecionarmos os exemplos que nos permitirão ter uma ideia de como o autor pensava sua própria escrita, acreditamos ser útil apresentar brevemente cada conjunto de cartas e cada tradutor.