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CAPÍTULO 4 – DOIS HORIZONTES LITERÁRIOS

4.3 Anos 1980 e 1990: Joyce perdido no sertão

4.3.3 O primado do poético sobre a realidade

Diadorim, em sua versão de 1991, é antecedido por um prefácio de Mario

Vargas Llosa, que apresenta o romance e o próprio Guimarães Rosa e sua obra ao leitor. Vargas Llosa acentua o caráter multifacetado de um e de outra. Guimarães Rosa, médico, diplomata, escritor, conhecedor das línguas europeias, mas também da gramática e da sintaxe do húngaro, do sérvio-croata, do chinês, do malásio, do persa, do japonês, do híndi. Grande sertão: veredas, “livro tão enigmático e múltiplo quanto seu autor” (LLOSA, 1991, p. 8), permitindo, prova maior de seu valor literário, infinitas leituras.

Vargas Llosa explora-lhe três veios, o da epopeia, o do verbo, o da mística. Fascinante livro de aventuras, com um quê de romance de cavalaria, de mosqueteiros e de faroeste, verbo criando a si mesmo, como “um rio sonoro de curso tumultuoso”, cujas águas “vão arrastando metáforas, substantivos, adjetivos, expressões, verbos modelados, triturados, organizados de tal sorte que ganham soberania e só remetem à realidade que eles próprios criaram ao longo da narração de Riobaldo” (LLOSA, 1991, p. 9-10) e, finalmente, mística que discute Deus, diabo, bem, mal, como uma “catedral cheia de símbolos, espécie de templo maçônico” (LLOSA, 1991, p. 11).

Mario Vargas Llosa diz que, se tivesse que escolher um deles, escolheria o primeiro, para logo reconhecer que essa escolha é totalmente teórica, “pois, de fato, esses três livros diferentes são como a santíssima trindade: um único deus”, e para em seguida concluir reafirmando as infinitas leituras que ainda poderão ser feitas desse romance:

Não é exagerado dizer que com o tempo outras leituras verão o dia, que outros leitores descobrirão nesse livro dimensões insuspeitadas. Guimarães Rosa escreveu um romance ambíguo, múltiplo, destinado a durar, dificilmente apreensível em sua totalidade, enganoso e fascinante como a vida imediata, profundo e inesgotável como a própria realidade. É provavelmente o mais belo elogio que possa receber um criador. (LLOSA, 1991, p. 12).

Assim, a apresentação do romance nessa segunda tradução fica a cargo de um outro grande escritor latino-americano, enquanto, na primeira, coube ao próprio

tradutor apresentar Riobaldo ao leitor. Buriti foi o único volume de Corpo de baile a gozar de um prefácio escrito por Xavier Domingo, professor de literatura.

Em seguida, encontra-se uma nota liminar intitulada Les veredas, na qual se reproduz, em francês, a passagem da carta de João Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri de 11 de outubro de 1963, na qual ele descreve longamente a seu tradutor italiano – que lhe perguntara o que seriam, precisamente, as veredas – a paisagem dos campos gerais, suas formações geográficas e sua vegetação.

Essa nota, ilustrada por um desenho que representa, justamente, o buriti, palmeira que povoa as veredas, tem, em nossa opinião, a função de introduzir o leitor à paisagem real em que se desenrolará toda a estória que vai ler. Como comentamos no Capítulo 1, essa passagem da carta a Edoardo Bizzarri descreve a geografia real dos gerais, que se confundirá no romance com os pensamentos e sentimentos de Riobaldo.

Vem, em seguida, uma nota da tradutora, em que ela começa por explicar sua tradução da palavra “vereda”, o que nos faz acreditar ter sido dela a iniciativa da nota liminar. Depois, indica a existência de um pequeno glossário, no final do livro, para os termos não traduzidos, para finalmente dizer que procurou seguir, quanto à flora e à fauna, as indicações de Rosa a seus tradutores francês e italiano, quando o escritor lhes sugeria usar “vocábulos familiares” ou acoplar “um vocábulo brasileiro e um vocábulo da língua de chegada”, pois – e Maryvonne Lapouge cita Guimarães Rosa – “a sonoridade, nesse caso, tendo tanta senão mais importância que a veracidade” (LAPOUGE-PETTORELLI, 1991, p. 17).

A escolha dessa passagem é importante, porque já indica que ela tentará seguir, em sua tradução, as indicações de Rosa a esses tradutores, segundo um princípio que ela explicitará adiante, glosando, provavelmente, a conhecida afirmação de Guimarães Rosa a Edoardo Bizzarri, em que ele sustenta a primazia do místico e do poético sobre o cenário e a realidade sertanejas e o enredo (ROSA, 1981, p. 58). Nas palavras de Maryvonne Lapouge: “Outra maneira de avisar, para todas as traduções que poderiam ser feitas de sua obra, que as dimensões poética e mítica deveriam, no espírito dos tradutores, e dos leitores futuros, sempre primar sobre a imediata realidade” (LAPOUGE-PETTORELLI, 1991).

A correspondência de Rosa com os tradutores se tornou, naturalmente, uma referência aos que se propõem a tarefa de traduzir sua obra nos anos 1980 e 1990. Jacques Thiériot, a quem devemos as versões francesas de Sagarana, Tutameia e

Meu tio o Iauaretê, transcreve, em suas “Notas do Tradutor” para os dois primeiros volumes, alguns dos conselhos de Rosa a seus tradutores, tomando-os como uma espécie de fiel de seu trabalho. Assim, ao revisar Toutameia com Francis Utéza, ele diz:

No curso de nossas inúmeras sessões de re-releituras, sempre tivemos no espírito os textos em que João Guimarães Rosa revela suas intenções de escritor, em particular em sua correspondência com seus tradutores inglês, francês e italiano. (THIÉRIOT, 1994, p. 7).

Em Sagarana, ele destaca, como Maryvonne Lapouge, as indicações do escritor referentes ao tratamento da flora e da fauna sertanejas para, assim como ela, lembrar que, para Guimarães Rosa, a expressividade das palavras era mais importante que o rigor científico: “Para ser fiel às intenções de João Guimarães Rosa, era preciso não esquecer que ele era mais atento à música e à cor dos vocábulos, à sua força expressiva em um sistema de ecos e de ressonâncias, do que ao rigor científico” (THIÉRIOT, 1994, p. 7-8).

Assim, constata-se uma tendência a privilegiar o poético em João Guimarães Rosa, embora os diferentes tradutores possam ter concepções diversas do significado da palavra “poético” e, por conseguinte, diferentes maneiras de realizá-lo em suas respectivas traduções. Verificamos, também, que os tradutores sentem, hoje, o desejo e/ou a obrigação de explicar como procederam ou, pelo menos, de fazer uma declaração de intenções em que afirmam buscar privilegiar, como queria o autor, a poética roseana.

Nesse sentido, não podemos deixar de observar que, nos anos 1960, nem J.- J. Villard nem a editora sentiram necessidade de dar satisfações ou se manifestar sobre o ato tradutório. Não lhes parecia que isso fosse algo essencial para os leitores. A única menção que Villard faz, nos próprios livros de Rosa que traduziu, de suas escolhas, é em Les nuits du sertão, para responder a críticas recebidas por

Buriti acerca da não inclusão de um glossário final no livro com os nomes de plantas

e animais não traduzidos. Na sua “Nota do Tradutor” de Diadorim, ele se preocupa em apresentar Riobaldo, sua personalidade, seus dilemas e sua linguagem aos leitores, e não em justificar escolhas tradutórias. Essas são discutidas com Guimarães Rosa, mas não com o público.

Na nova tradução, a apresentação do livro ficou a cargo de Mario Vargas Llosa, enquanto a tradutora tenta justificar sua perspectiva. Isso indica a diferença de época e de expectativa do tradutor, do leitor e, também, no caso da retradução de Grande sertão: veredas, do editor.

De fato, como comentamos no início deste capítulo, essa segunda versão foi realizada pelo fato de seu editor ter considerado que “essa obra-prima da literatura sul-americana merecia uma nova chance junto ao público francês” (PAGÈS, 1995, p. 22).

A investigação dos universos literários que banham a recepção e a tradução desse romance nos anos 1960 e nos anos 1990 ilumina essa afirmação de Jean- Claude Zylberstein. A “nova chance” corresponde, ao que tudo indica, à exigência de se observar o primado do poético em Rosa, supostamente perdido pelo primeiro tradutor, e a apresentar ao leitor francês, que já recebera uma versão “prosaica” da obra, uma outra. Esta, propondo-se a recuperar a poesia de Rosa, equivaleria, em seu projeto, mais ao terceiro modo de tradução apresentado por Goethe, aquele que busca transpor toda a estranheza da obra, a tradução sublime, do que ao segundo, que adaptaria a obra à cultura de chegada.

A identificação dos três tipos de tradução explicitados por Goethe como uma progressão temporal aparece subliminarmente nos artigos de imprensa dedicados à segunda tradução. Assim, Frédéric Pagès afirma – é curioso ver como sua declaração corresponde à primeira forma de tradução apontada por Goethe – que Jean-Jacques Villard “escolheu, não sem motivos, tornar-se acessível ao leitor francês”, o que lhe custou “certa traição ao estilo do escritor”. Essa traição poderia ser entendida como sua prosaização – na verdade, Goethe, referindo-se à poesia persa, remete à versão em prosa de poemas, mas, ampliando essa noção com base na crítica que Meschonnic (1990, p. 395 et seq.) faz à separação entre prosa e verso, poderíamos pensar em traduções que perdem a poética do original, quer ele esteja em “verso” ou em “prosa”.

A segunda tradução, em compensação, segundo o mesmo crítico, estaria mais próxima do terceiro tipo, pois “apesar de certas lacunas”, ela é “meritória a mais de um título: há grandes acertos, passagens que se aproximam muito estreitamente do texto original, de seu ritmo, de sua música própria”(PAGÈS, 1995, p. 21).

Pierre Lepape, por sua vez, e voltamos a encontrar, aqui, a definição do primeiro tipo de tradução de Goethe, considera a versão de Villard como uma

adaptação “que só muito imperfeitamente dava conta da escrita do romancista”. Contudo, ele é um pouco mais ponderado quanto à tradução de Maryvonne Lapouge, que, embora permita perceber a riqueza infinita do romance, “não é a única possível” (LEPAPE, 1991). O que nos faria pensar, ainda no interior da grade goetheana, que ela se aproxima mais do segundo do que do terceiro tipo de tradução.

Ao abandonar essa visão evolutiva e historicizar as traduções, podemos sair dessa perspectiva um tanto maniqueísta e mudar nosso foco de análise, entendendo cada tradução como tributária de seu tempo e, ao mesmo tempo, principalmente, tentando compreender cada uma delas em seu ritmo próprio, sem considerar a priori a primeira tradução como inferior à segunda e esta como dialeticamente superadora da primeira.

Voltaremos a encontrar, aqui, a perspectiva de Henri Meschonnic, que desenvolvemos no Capítulo 3 e que nos permitirá pensar como as duas versões de

Grande sertão: veredas lidaram, com suas respectivas escolhas tradutórias, com a

subjetividade. que é o cerne da obra de Rosa, e que sujeito foi construído a partir da escrita que realizaram.