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CAPÍTULO 4 – DOIS HORIZONTES LITERÁRIOS

4.1 Anos 1960: “uma estranha poesia feita de exotismo”

4.1.3 Um Giono multiplicado por dez

Apesar dessas rupturas, em Giono a distinção entre sujeito e objeto ou, mais precisamente, a distinção entre homem e natureza ainda não será de todo abolida. A natureza é ainda o outro que provoca, em um sujeito, impressões que lança no papel. As impressões são dele, não são “objetivas” e, por isso, são carregadas de afeto, mas o mundo ainda não se confunde com ele e com sua escrita, como acontecerá em Guimarães Rosa.

A escrita de Rosa, como pudemos verificar, é sempre subjetiva. Nele, mundo e sujeito se fazem simultaneamente à escrita e são idênticos não no sentido de Giono, em que o homem é naturalizado e a natureza, antropomorfizada. A identidade que ele constrói é de outro teor. Não existe mais a natureza e o homem, mas, unicamente, a constituição de uma subjetividade. A ruptura da sintaxe, o

deslocamento das imagens, a rejeição absoluta ao lugar-comum são isso: expressão da subjetividade, identidade profunda entre o homem e o mundo.

Três pontos aproximam, assim, os dois autores: o fato de suas estórias se ambientarem no interior e não na cidade, a presença constante da natureza e, não menos importante, a presença da língua falada, que, em ambos, significou uma ruptura com a escrita tradicional e a inserção do sujeito na escrita.

Por outro lado, eles se afastam por adotarem, no interior do mesmo movimento global, pontos de vista diferentes. Jean Giono uniu e separou homem e natureza ao naturalizar um e animizar o outro, e sua linguagem é justamente essa unidade e essa separação, pois o presente narrativo, ao mesmo tempo que confunde personagens, natureza, narrador, ainda é impressionista, submetendo-se a sensações exteriores.

Guimarães Rosa, sem dúvida herdeiro desse movimento que pregava o uso livre da língua em todas as suas possibilidades e sua consequente subjetivação, já o absorveu em toda a sua radicalidade. O sujeito não está mais na língua; ele é a própria língua, a própria escrita. A aversão ao lugar-comum, insistentemente repetida por Rosa a seus tradutores, é a aversão ao mundo como externo ao sujeito. Assim, têm razão jornalistas e críticos que o comparam a Giono, por perceberem que estão tratando com um autor que, como o escritor provençal, é um “regionalista universal”, por assim dizer, pois ambos fogem do provincianismo pela novidade da linguagem.

O Nouveau journal, de Montreal, comenta sobre Buriti:

O tom é poético, e a beleza da língua, que se identifica estreitamente com as coisas, apaga-lhe o regionalismo; ela se torna palpável e visível. Apenas “Dão-Lalalão” é um romance; “O Recado do Morro” e “A Festa de Manuelzão”, que completam “Buriti”, são cantos. (“BURITI”, 1961).

O Courrier, de Vervière, por sua vez, designa-o como “uma contemplação, um canto” (DUBOIS, 1961).

Os mesmos artigos, porém, que o comparam a Giono, percebem com impressionante acurácia que estão lidando com algo peculiar, que destoa de todo o já conhecido.

O artigo de Hubert Juin para Les lettres françaises sobre Les nuits du sertão, segundo volume de Corpo de baile publicado na França com a novela Buriti, é

interessante a esse respeito. Inicialmente, seu autor tenta equiparar as estórias de Rosa aos “romances caipiras”, posto que

os heróis de Rosa são homens da terra, mesmo se o sertão não é a Beauce; o cenário de seus livros é o meio rural, mesmo se uma fazenda não é exatamente uma ferme; seu ritmo conforma-se com os trabalhos da lavoura, mesmo se a lida das palmeiras não é a lida do trigo; suas páginas são atravessadas por diversos tipos de animais, domésticos ou selvagens, mesmo se o crocodilo não é semelhante ao javali... O sertão de Rosa é tão distante do mundo quanto o deserto da Sologne ou o planalto das Ardennes (JUIN, 1961).

Porém, ele próprio se rende, no final, à originalidade da obra, que consegue suplantar ao mesmo tempo dois gêneros e os preconceitos a eles ligados, o romance regionalista e o romance exótico:

Romance caipira e romance exótico, é realmente colocar muitas adversidades contra si, e encarniçar-se a destruir muitos preconceitos que, sabemos, estão ligados tanto a um quanto a outro desses dois gêneros. Ora, nenhum leitor de língua francesa precisará torcer o nariz frente a Les

Nuits du Sertão. É um belo êxito (JUIN, 1961).

Outro artigo, publicado pelo jornal Combat, de Liège, citando, além de Giono, outro autor classificado como regionalista, o também provençal Henri Bosco (1888- 1976), dá-se muito justamente conta de sua distinção com relação a Guimarães Rosa. Embora muitas páginas deste último possam remeter o leitor francês, em busca de uma correspondência em sua língua, a Giono e a Bosco, diz Jacques Parisse39, autor do artigo, a comparação não pode ser levada muito adiante, pois a

integração entre homem e meio, muitas vezes artificial nesses dois autores, é radical em Rosa:

Lendo “Les Nuits du Sertão” lembramos-nos de certas páginas de “Batailles dans la Montagne” do escritor do Manosque e da longa e admirável dissertação sobre o vento que fazia agir as personagens de “Malicroix” de Henri Bosco. Mas em Giono, mas em Bosco, o homem não se integrava inteiramente à natureza, que só permanecia, no final das contas, como o fermento às vezes artificial e literário de suas ações. João Guimarães Rosa, o mais importante dos escritores brasileiros, mal dissocia a natureza luxuriante das grandes savanas e as densas florestas e os homens totalmente condicionados pelos elementos. Podemos chegar a dizer que nessa obra profunda em que o fôlego se perde, Rosa, demiurgo todo poderoso e inspirado, junta, com uma imaginação e um sentido descritivo quase satânico, herói da narrativa e cenário. (PARISSE, 1962).

39 Jacques Parisse, formado em filosofia e letras, foi durante muitos anos crítico de arte na imprensa

Dessa perspectiva, a afirmação de Yves Berger, do L’express, de que João

Guimarães Rosa seria um “Jean Giono multiplicado por dez”, revela-se bastante aguda. Se o autor francês, rompendo com a escrita clássica, introduziu o sujeito na escrita, Guimarães Rosa, herdeiro do movimento da “língua falada”, radicalizou esse procedimento e, ao abolir qualquer lugar-comum, fundiu completamente sujeito e objeto.