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CAPÍTULO 4 – DOIS HORIZONTES LITERÁRIOS

4.2 Jean-Jacques Villard: espírito e poética

4.2.1 A “viril espontaneidade” da tradução

É, pois, esse universo literário que recebe – com rasgados elogios – as traduções de Corpo de baile e Grande sertão: veredas na França dos anos 1960. Jean-Jacques Villard recebeu rasgados elogios da imprensa da época, que reconheceu sua capacidade de verter para o francês, de maneira feliz, obras cuja complexidade transparecia na tradução mesma.

Nas críticas de Buriti, lemos, por exemplo, no Syndicats, de Bruxelas, que “a tradução do senhor Jean-Jacques Villard merece ser citada por seu caráter particularmente feliz” (J.B., 1961) e, na revista Arts, da França, que “não se poderia esquecer de assinalar a admirável tradução de Jean-Jacques Villard desse livro que, na tradição virgiliana, inscreve-se como uma grande obra de vida” (DEDET, 1961).

Os artigos relativos ao lançamento de Nuits du sertão reiteram esse juízo. Hubert Juin40, que realça a semelhança dos contos de Nuits du sertão e dos romances “camponeses”, assinala, contudo, que a especificidade de Rosa pode ser sentida até mesmo em sua linguagem, o que se deve ao tradutor, “pois poucos autores estrangeiros beneficiaram-se de uma tradução comparável, ao que tudo indica, à de Jean-Jacques Villard” (JUIN, 1963). Armand Guibert, crítico francês e

40 Hubert Juin, pseudônimo de Hubert Loescher (1926-1987), foi um romancista, poeta e crítico belga.

Foi cronista no jornal Combat, e colaborador das revistas Les lettres françaises, La quinzaine

tradutor de Jorge de Lima, Manoel Bandeira e Érico Veríssimo, mesmo não concordando com a ausência de notas explicativas para os termos locais, afirma ser esse um problema menor, pois há nesse livro “uma riqueza de vocabulário que confunde, e que o tradutor sabe transpor com um talento que o honra. Sob sua pena, l’once feule, le tapir grouine, etc. – e a poesia do livro permanece intacta, com

seu amálgama de saúde e de ardor sensual” (GUIBERT, 1963).

O termo talento ressurge nas críticas com a publicação de Diadorim. A Revue

littéraire mensuelle, falando do canto de altos feitos e pequenas alegrias e tristezas

que é o livro, menciona que, “para conservar esse clima poético, era preciso o talento de um tradutor como Jean-Jacques Villard” (LACHGAR, 1965).

Menos que esses elogios, porém, é a percepção da obra propiciada pela tradução que nos parece indicativa de seu mérito. Além das críticas que já citamos, chamou-nos a atenção um comentário da Tribune de Genève, em que a impossibilidade de verter perfeitamente obras como as de Guimarães Rosa é apontada a partir de sua própria transposição para o francês:

A infelicidade é que nenhuma tradução jamais poderá reproduzir o enigmático esplendor da Quarta Bucólica: Sicelides Musae. O livro de Guimarães Rosa, que se situa em um patamar menos alto, sofre provavelmente de um inconveniente desse gênero. (RAMONI, 1962).

E não podemos deixar de notar que o sentimento da linguagem poética e corrente de Rosa pelos leitores franceses foi propiciado igualmente pela tradução. A propósito de Diadorim, Alain Bosquet41, por exemplo, comenta que as palavras de que se compõe o romance não são menos encantatórias que o homem e a natureza que o habitam:

Não há nenhuma razão para se considerar as palavras como menos encantatórias, nem menos ferozes em suas prerrogativas. Também elas ainda não saíram da floresta virgem, em que tudo se define, se deforma, se devora, ressuscita. A linguagem não se contenta em ser viva: é vívida e sem misericórdia. (BOSQUET, 1965).

41 Anatole Bisk, conhecido como Alain Bosquet (1919-1998), foi um escritor francês de origem russa

que se dedicou tanto aos romances quanto à poesia. Trabalhou como crítico literário nos jornais

O Canard enchaîné, por sua vez, repara na “bela linguagem chamada de corrente” em que se exprimem as personagens e, como nós, deduz o mérito da tradução pelo que é capaz de transmitir do original:

A tradução do senhor J.-J. Villard é com toda certeza perfeitamente boa, já que deixou à obra todo o frescor, toda a viril espontaneidade. Em uma efusão de cores e música, eis um Brasil bem atraente. (LEFRÈVE, 1961).

Contudo, o artigo que aborda diretamente a questão do modo como as estórias de Rosa foram recebidas pelos leitores de língua francesa é de uma brasileira, então correspondente do Jornal do Brasil em Paris e que já citamos anteriormente. Ao refletir sobre os méritos e deméritos da tradução de Buriti, ela chega à conclusão de que “o brasileiro que lê Rosa no original não pode deixar de fazer restrições à tradução”, importando, portanto, “saber o que diz este livro ao francês que o lê sem espírito prevenido” (ALVIM, 1961). Relata, então, três depoimentos:

De um que sabe bastante português para julgar, ouvi um curto mas inequívoco: “Admirável tradução!”. De outro, cujo português já é mais duvidoso, esta confissão: preferiu o texto francês que, simplificando a língua, deixa mais livre a trama das histórias. Ouvi também a impressão de uma mulher – uma livreira. Alta, esguia, vibrante como uma antena, encontrei-a, como sempre, no seu posto de comando. Sentada à sua mesa, um lápis na mão, um minúsculo tamborim vermelho no cimo da cabeça. Falamos de livros, do Brasil, do Buriti... Perguntei-lhe se tinha gostado. Ela estendeu o braço, apontou os olhos na direção do horizonte e exclamou: “Admirável! Extraordinário! Oh cet homme à cheval qui va, qui va!” Eu avistei lá longe o vulto de Soropita e disfarcei um sorriso. Ela recolheu o braço, trouxe de volta o olhar e, como se se tratasse de uma conclusão lógica, me comunicou: “Je pars au Brésil le mois prochain.” (ALVIM, 1961).

Esse depoimento elucida o impacto provocado pelas obras de Rosa nas traduções de Jean-Jacques Villard. Cabe-nos agora delinear, a partir de sua correspondência com o escritor e suas notas de tradutor a Diadorim e Nuits du