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CAPÍTULO 3 – QUE FAZER?

3.1 Uma nova concepção de ritmo

Meschonnic elaborará todo o seu pensamento a partir da oposição de duas acepções diferentes da palavra ritmo. A primeira e mais comum – Meschonnic tem o cuidado de rastreá-la em dicionários e manuais de literatura de diversas línguas – considera o ritmo sinônimo da alternância de dois elementos diferentes – o tempo forte e o tempo fraco na música, uma sílaba acentuada e uma não acentuada na poesia, o vaivém das ondas, o dia e a noite, a sístole e a diástole do coração, as batidas do relógio, a igual distância entre as colunas de um templo. Na linguagem, campo exclusivo do interesse de Meschonnic, já que esse crítico dedica-se a pensar a questão do ritmo na literatura, esse conceito associa-se constantemente à métrica e à rima.

É importante frisar – Meschonnic é enfático quanto a esse ponto – que a linguagem possui uma especificidade que não deve ser esquecida quando se estudam seus fenômenos: ela produz sentido. No estudo do ritmo no âmbito da linguagem é crucial, portanto, entender o estatuto do sentido ou, em outras palavras, compreender que certa concepção de ritmo implica necessariamente certa concepção de sentido e, também, como mostrará Meschonnic, certa concepção de sujeito.

Como metro e rima, o ritmo é assimilado, na linguagem, a uma simples forma, que se sobrepõe ao sentido, adorna-o como uma roupagem mais ou menos bela ou ajustada, mas em nada contribui para sua constituição. O ritmo, dessa perspectiva, não é uma noção semântica; é um nível, uma estrutura paralela ao sentido, que pode manter com ele uma relação de imitação, mas lhe será sempre externa.

Essa concepção de ritmo coaduna-se, ainda segundo Meschonnic, com a teoria do signo, que se funda na separação entre significante e significado, forma e conceito:

Basta, para situar a questão, lembrar que a noção corrente de ritmo é compatível com a teoria do signo. Porque nela está inclusa. Ela faz do ritmo um elemento formal. As relações com o sentido, quando ela as vê, são relações de imitação. Justapostas, segundas. O ritmo não é uma noção semântica. É uma estrutura. Um nível. (MESCHONNIC, 1982, p. 69).

A essa acepção aceita de ritmo se opõe, contudo, continua Meschonnic, uma outra, trazida à luz por Émile Benveniste (1995), quando ele se propõe a perseguir a verdadeira origem dessa palavra, buscando seu sentido nos primeiros contextos em que aparece.

De fato, em seu artigo A noção de ritmo na sua expressão lingüística, Benveniste (1995) esclarecerá que a palavra não se refere, em absoluto, como se pretendia desde o século XIX, ao movimento regular, ao vaivém das ondas do mar, e que, em grego, esse termo jamais se reporta ao oceano.

Em Leucipo e Demócrito, diz ele, nos escritos dos quais essa noção inicialmente aparece de modo mais significativo,  é uma das três noções que descrevem as relações entre os objetos e o modo como se distinguem um do outro. A letra A e a letra N são discerníveis por sua forma, por seu , explica Aristóteles referindo-se a Demócrito, para quem os átomos dos diferentes elementos assim como as diferentes instituições distinguiam-se por sua configuração específica. Nas palavras de Benveniste:

Não há portanto nenhuma variação, nenhuma ambigüidade, na significação que Demócrito atribui a  e que é sempre “forma”, entendendo por aí a forma distintiva, o arranjo característico das partes num todo. (BENVENISTE, 1995, p. 364).

Nesse mesmo sentido, continua Benveniste, Anacreonte a utiliza para falar das personalidades dos homens, que têm  diferentes, e Ésquilo para exprimir a condição em que alguém se encontra, resultado da conjunção de múltiplos fatores.

 tem, além disso, duas especificidades que o separam de outras palavras gregas que também significam forma. O sufixo , em grego, “indica não o cumprimento da noção, mas a modalidade particular de seu cumprimento, tal como se apresenta aos olhos” (BENVENISTE, 1995, p. 367). Por exemplo,  é o fato de dançar, mas  é a figura que uma dança forma ao ser dançada, seu desenho. Do mesmo modo, é o ato de consultar um oráculo e  é o oráculo dado.

Outro elemento importante refere-se ao radical de  que remete a algo fluido, que não tem forma fixa. O corpo humano, por exemplo, possui uma forma definida, mas uma dança, não. Ela engendra várias formas, compõe várias figuras, dependendo de como os dançarinos se movimentam. Também o peplo, amarrado

de diferentes maneiras, configura diferentes, assim como o humor ou a disposição humana, que, sendo mutáveis, podem variar a cada dia, como explica Benveniste:

, segundo os contextos onde aparece, designa a forma no instante em que é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluido, a forma daquilo que não tem consistência orgânica: convém ao pattern de um elemento fluido, a uma letra arbitrariamente modelada, a um peplo que se arruma como se quer, à disposição particular do caráter ou do humor. É a forma improvisada, momentânea, modificável. Ora,  é o predicado essencial da natureza e das coisas na filosofia jônica desde Heráclito, e Demócrito pensava que, sendo tudo produzido pelos átomos, só o seu arranjo diferente produz a diferença das formas e dos objetos. (BENVENISTE, 1995, p. 367-368).

Pensada com relação à linguagem, essa noção de ritmo desestabiliza a teoria do signo, reflete Meschonnic, pois o sentido, nesse caso, nasceria do arranjo particular dos elementos de um todo, não preexistiria a eles, contrariando o princípio mesmo da teoria do signo. Desse ponto de vista, não há dois níveis distintos, o sentido por um lado e o ritmo por outro. Se a configuração do discurso é o ritmo, o ritmo é o sentido:

O ritmo é a organização do sentido no discurso. Se ele é uma organização do sentido, ele não é mais um nível distinto, justaposto. O sentido se faz no e por todos os elementos do discurso. (MESCHONNIC, 1982, p. 70).

O sentido não se reduz mais ao significado, oposto ao significante e à entonação, à prosódia da língua. Não existem mais signos, “apenas significantes, particípios passados do verbo significar” (MESCHONNIC, 1982, p. 70).

Tal concepção de ritmo exige que se considere uma outra teoria da linguagem, a teoria do discurso33, no interior da qual pode ser pensada, e da qual se depreende um conceito de sujeito totalmente diferente daquele que pressupõe a teoria do signo34.

33 A teoria do discurso não é apenas a distinção entre história e discurso feita pelo próprio Benveniste,

é um modo de ver as coisas a partir da teoria da enunciação. A teoria do discurso é o contraponto à teoria do signo; enquanto a teoria do signo cria dicotomias, a teoria do discurso as abole, enquanto a teoria do signo exclui o sujeito, a teoria do discurso o inclui.

34 Não discutiremos, aqui, se Meschonnic tem ou não razão em sua visão a respeito da teoria do

signo, que ele critica na sua face estruturalista, e não saussuriana, como ele esclarecerá muitas vezes. O que nos interessa é a nova perspectiva que, a partir dessa sua reflexão, ele abre para pensarmos as escritas moderna e contemporânea, que não obedecem mais a regras formais estritas, e suas traduções.

Nesta última, a língua é vista como um conjunto de signos que existem por si mesmos, sem a intervenção do sujeito, cujo papel se limita, na formação de seu discurso, ao de simples selecionador. Ele escolhe, entre os signos, aqueles que mais lhe convêm, e os arruma como quer. Os signos não se comovem, porém, com isso, e continuam significando o que já significavam sem ele. A estilística deriva dessa concepção: o estilo de um autor é a ordenação que confere a signos já dados. Em outras palavras, ele só veste com roupas mais ou menos originais conteúdos já prontos, seu envolvimento no próprio discurso sendo, por princípio, restrito:

Na teoria do signo, a língua é primeira, e o discurso, segundo. Não pode ser diferente. O discurso é, nela, um uso dos signos, uma escolha, uma série de escolhas no sistema dos signos pré-existente. Com relação à língua, o sujeito falante não pode ter mais que uma definição gramatical: a que é fornecida por essa escolha. Daí o estilo e a estilística. (MESCHONNIC, 1982, p. 70).

Na teoria do discurso, a língua não é uma entidade anterior e exterior ao sujeito e a seu discurso; ao contrário, é o sujeito que, ao produzir discurso, gera sentido e cria, simultaneamente, a língua. O sentido, ao ser gerado por um sujeito, não pode mais ser separado do modo específico como foi engendrado. Rompe-se, assim, a ideia de dois níveis distintos, conteúdo e forma, significante e significado, sujeito e coisa; o sentido é a atividade do sujeito na linguagem. “O discurso não é o emprego de signos”, diz Meschonnic, “mas a atividade dos sujeitos no interior e contra uma história, uma cultura, uma língua” (MESCHONNIC, 1982, p. 71). Essa percepção tornou-se possível graças ao conceito de ritmo recuperado por Benveniste, como explica Meschonnic:

O ritmo como organização do discurso e, portanto, do sentido, volta a colocar no primeiro plano a evidência empírica de que só existe sentido por e para sujeitos. De que o sentido está no discurso, não na língua. A noção (e o privilégio) do significado não era apenas o produto de uma descrição, tinha também como efeito e princípio excluir o sujeito. (MESCHONNIC, 1982, p. 71).

Colocando o sujeito no cerne da questão do sentido, Meschonnic terá que discutir quem é esse sujeito, como pode ser conceituado no âmbito da literatura.

Segundo a teoria da enunciação de Benveniste, encampada por ele, o sujeito nasce, necessariamente, junto com a linguagem. O sujeito do discurso é, assim, em

primeiro lugar, sujeito da enunciação. “Subjetividade”, diz Benveniste, “é a capacidade do locutor para se propor como „sujeito‟” (BENVENISTE, 1995, p. 286).

O sujeito da enunciação, o “eu”, contudo, só pode se pôr em situação dialógica, ou seja, quando coloca também o outro como sujeito, chamando-o de “tu”. Essa situação de enunciação se constrói sobre o tempo presente, sobre o aqui e o agora daquele que fala. Benveniste alerta, contudo, que essa instância de enunciação, que ele denomina discurso, não se restringe absolutamente às conversas entre homens reais, à língua falada. Temos discurso em qualquer situação em que haja a presença de um “eu” e de um “tu”.

É preciso entender discurso na sua mais ampla extensão: toda enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a intenção de influenciar, de algum modo, o outro. É em primeiro lugar a diversidade dos discursos orais de qualquer natureza e qualquer nível, da conversa trivial à oração mais ornamentada. E é também a massa dos escritos que reproduzem discursos orais ou que lhes tomam emprestados a construção e os fins: correspondências, memórias, teatro, obras didáticas, enfim, todos os gêneros nos quais alguém se dirige a alguém, se enuncia como locutor e organiza aquilo que diz na categoria de pessoa. (BENVENISTE, 1995, p. 267).

Meschonnic irá pensar como esse “eu” se coloca no universo literário. Não, porém, simplesmente como uma aparição esporádica, no momento da inserção de um diálogo no interior de uma narrativa fundamentalmente impessoal – que se desenrola na instância da história, tal como conceituada por Benveniste –, regida pela não pessoa e por um tempo particular, o passé simple, em francês. O que ele pretende é ver como a escrita pode ser o sistema próprio ao sujeito, em que tudo o que está escrito remeta a ele e só a ele.