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CAPÍTULO 2 – E AGORA, JOÃO? A CORRESPONDÊNCIA COM OS TRADUTORES

2.3 Da referencialidade à poesia

2.3.2 Léxico

2.3.2.1 Plantas e animais

A abundância de nomes de plantas e animais, além de todo o vocabulário referente a estes últimos, presentes nos livros de Rosa, constitui um problema complexo para os tradutores. Sua simples identificação já não era uma tarefa simples na época em que Rosa se correspondia com seus tradutores, em que mesmo os dicionários eram escassos. O Pequeno dicionário brasileiro da língua

portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, era a peça básica de então25.

Assim, um dos grupos de questões dirigidas a Rosa refere-se à flora e à fauna sertanejas, e o autor preocupa-se em responder com precisão às consultas,

25

Cf., por exemplo, a carta em que Villard pede a Rosa uma nova edição desse dicionário: “Meu Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa começa, após longo uso, a se desagregar [...] Será que você poderia me enviar um exemplar por intermédio de Azeredo da Silveira, pois não o encontro por aqui” (JJV a JGR, 14/03/1963 – ROSA, [1961-1967]).

descrevendo minuciosamente a planta ou o animal – ou característica do animal – em questão e valendo-se da pesquisa em dicionários, enciclopédias26, livros de

botânica e zoologia27, ou de consultas a especialistas28, para descobrir seu nome científico ou, quando possível, o nome correspondente na língua do tradutor.

Esse cuidado já nos indica que ele não apreciava que a tradução dos espécimes animais ou vegetais fosse feita arbitrariamente. Prova dessa opinião pode ser encontrada na crítica que faz à tradução argentina de A hora e a vez de

Augusto Matraga, de Sagarana, em carta de 22 de fevereiro de 1959 a Harriet de

Onís (VERLANGIERI, 1993, p. 60-61). Nela, houve “incorrespondências, omissões de detalhes, erros na seriação dos fenômenos, perda de dinamismo, infidelidades semânticas, inexatidões, traição aos ritmos e contra o tom geral [...]”. O erro “mais sério, entretanto, foram as palavras traduzidas arbitrária e absurdamente”:

maranhão, “que é uma ave, o flamingo ou flamengo, (Phenicopterus ruber)”, foi traduzido por maraña, que significa tojal, espinhal; jia, “espécie de grande rã, gênero Leptodactylus”, virou flores; cupins transformou-se em hormigas; murundus (montículos) em pedazos de yerba roja29, entre outros exemplos.

Essa preocupação com a exatidão pode ser confirmada na carta de 2 de maio de 1959 de Guimarães Rosa à mesma tradutora, em que ele comenta sua segunda versão de Duelo. Uma de suas observações diz respeito à tradução de cigarras por

locusts:

Em vários dicionários a que pude recorrer, verifico que LOCUST é outro inseto, outro bichinho, não traduz a poética e personalíssima “cigarra”. Suponho que a Amiga a empregou por se tratar de uma acepção regional, do Oeste americano. Mas, por causa do étimo e da universalidade do

26 O autor se refere à enciclopédia alemã Brockhaus (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 251)

e ao dicionário da língua inglesa Webster’s (JGR a HO, 15/04/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 82).

27 Em carta a Bizzarri, de 19/12/1963, ele cita, por exemplo, o Dicionário das Plantas Úteis do Brasil,

de M. Pio Corrêa (ROSA, 1981, p. 73); e em 18/11/1963, ao mesmo tradutor, diz ter consultado, em vão, seis livros de botânica, procurando o nome científico da planta “bate-caixa”. (ROSA, 1981, Bizzarrip. 46). Rosa cita também, a respeito do Manoelzinho da Crôa, o explorador inglês Richard F. Burton, que descreve com detalhes o pássaro em seu livro Explorations of the Highlands of the

Brazil (JGR a CMC, 28/06/1963 – ROSA, 2003, p. 121; JGR a JJV, 17/08/1963 – ROSA, [1961- 1967]).

28 Em carta de 22 de janeiro de 1964, Curt Meyer-Clason diz ter feito uma lista de pássaros que

pretende enviar ao Dr. Helmut Sick, um naturalista alemão naturalizado brasileiro, conhecido ornitólogo, que morava no Rio de Janeiro. A partir daí, Guimarães Rosa entra em contato com ele, e passa a consultá-lo sobre a tradução de nomes de animais e plantas para o alemão. Sua contribuição pode ser vista no Anexo B da carta de Rosa a Meyer-Clason de 9 de fevereiro de 1965 (ROSA, 2003, p. 246-255).

29 As passagens entre aspas pertencem à carta citada. Os termos correspondentes à tradução

radical (locusta: gafanhoto, langosta, locust, grass-hoper, Heuschrecke, cavalletta, etc.), permito-me insistir, no caso, que se mude para CICADAS ou para CICALAS (e não são palavras tão claras, tão belas?) – de mais amplo e universal alcance. (JGR a HO, 02/05/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 101, grifo do autor).

Harriet de Onís argumenta que, nos Estados Unidos, locusts é a tradução comum de cigarras, cicadas tendo uso exclusivamente literário (HO a JGR, 15/05/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 109), mas que aceitará a sugestão dele, o que conferirá um tom exótico ao texto (HO a JGR, 15/05/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 115). Ao agradecê-la pela concessão, o autor esclarece a razão de sua “teimosia”: não gostaria de modo algum que seus poéticos insetos cantores pudessem ser confundidos com gafanhotos:

Sei que elas, aí nos EE.UU., são também chamadas de “locusts”; mas, em mim, permanecia sempre uma resistência, o receio de, fora dos EE.UU., virem a confundir as minhas “cicadas” Cicadidae, hemípteros, poeticamente cantadas por Anacreonte, com os verdadeiros “locusts”, que são os “grasshoppers”, ortópteros, Acridiidae, que eram os das pragas da Bíblia. (JGR a HO, 13/06/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 118, grifo do autor).

Esse seu comentário nos permite abrir nosso ângulo de visão sobre essa discussão. A cigarra em questão interessava não apenas por ser, do ponto de vista da zoologia, um hemíptero, mas por ter a capacidade de cantar e por sua música já ter sido evocada anteriormente por outros poetas. As cigarras associam-se à paisagem de certa região e à poesia que Rosa pretende criar. Daí o seu temor de que ela possa ser confundida com o gafanhoto, animal com conotações completamente diferentes. A frase em que ela aparece integra a passagem que descreve o povoado desolado em que Cassiano, um dos protagonistas da estória, caíra doente, e no qual sabia que iria morrer: “A paisagem era triste, e as cigarras tristíssimas, à tarde”. (ROSA, 1983, p. 160).

Entende-se, assim, que Rosa não queira correr o risco de vê-las confundidas com gafanhotos.

Em outros momentos, por outro lado, ele sugere termos genéricos para a tradução. Sobre as frutas silvestres regionais grão-de-galo, murici e gabiroba, que Harriet de Onís deixara no original (VERLANGIERI, 1993, p. 79, nota 13), ele diz que “talvez se pudesse simplificar em: „wild fruit and berries‟” (JGR a HO, 10/04/1959 – VERLANGIERI, 1993, p. 77); e laranja-de-abril, que “é uma variedade de laranja”,

explica Rosa, poderia ser traduzida, “à falta de termo correspondente, por tangerine” (JGR a HO, 21/03/1964 – VERLANGIERI, 1993, p. 249)30.

E, mesmo, permite cortes e adaptações, particularmente no caso do Cara-de-

Bronze, com suas notas que reproduzem o falar dos vaqueiros, ou em que plantas

confundem-se com pessoas, ou em que dezenas de pássaros, além de outros animais, são arrolados:

[...] no “Cara-de-Bronze” [...] é onde Você pode ter mais liberdade. Para acentuar mais, o que achar necessário. Para omitir o que, numa tradução, venha a se mostrar inútil excrescência. Para deixar de lado o que for intraduzível, ou resumir, depurar, concentrar. (JGR a EB, 25/11/1963 – ROSA, 1981, p. 61)31.

Essa flexibilidade pode ser ainda atestada no Anexo B da carta a Meyer- Clason de 9 de fevereiro de 1965 (ROSA, 2003, p. 247-255), referente ao Corpo de

baile, onde Rosa, escudado pelo Dr. Sick, oferece diferentes soluções para a

tradução dos nomes de plantas e animais.

Aqueles que têm nomes em alemão podem ser simplesmente traduzidos por seus correspondentes, casos de Guaxe do Rabo Amarelo, Nhambu, Coruja- Batuqueira, Alma-de-Gato, Gaturamo, Irara, Gambá, Sofrê, entre outros. Ilustraremos com apenas dois exemplos:

GUAXE DO RABO AMARELO: der Kamik (Ave, das Icteridae:

Cacicus haemorrhous, Lin) (O nome “der Kasik” – não estou bem certo da ortografia, verifique, é o mesmo que designa os “caciques”, chefe dos índios – já está consagrado na literatura científica alemã.)

NHAMBUZINHA: das Inambulein (o “nhambu”) é uma ave pequena. Nada tem a ver com nandu, etc.) Família dos Tinamidae ou Grypturidae, aves sem cauda. Gênero Crypturellus. Nome: o NHAMBU. Em alemão: der Inambu. (Mas, quando usado “NHAMBUZINHA”, deve ser traduzido por: das Inambulein.) (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 241, grifo do autor).

Outros podem ser adaptados, adotando-se o nome genérico do animal, existente em alemão, e acrescentando-se sua principal característica, casos do Tatú-Peba – que é um tatu peludo, com seis cintas na carapaça, para o qual Rosa sugeriu das behaarte (peludo) Guerteltier (tatu) ou das Sechsbinden (seis cintas)

30 Trata-se do anexo desta carta, que discute a tradução de A volta do marido pródigo, de Sagarana. 31 Cf., também, a carta de Rosa ao mesmo Edoardo Bizzarri, de 4 de dezembro de 1963 (ROSA,

1981, p. 64) em que o escritor concorda com a supressão de muitas das notas de pé-de-página do

Guerteltier (tatu) – e do Tatu-Galinha – conhecido pelas nove cintas de placas móveis em sua carapaça: das Neunbinden (nove cintas) Guerteltier (tatu).

TATÚ-PEBA: das behaarte Guerteltier; das Sechsbindenguerteltier. Ambos são bons. Pode alternar. É o mesmo “tatú peludo”, porque tem os escudos da couraça orlados de pelos (“Peba” – chato, platt, flach, em tupi, língua dos índios; mas “das platte Guerteltier” podia dar impressão errada de chato demais.) é Euphractus sexcintus.

TATÚ-GALINHA: das Neunbindenguerteltier. O Dasypus novemcintus. Seu focinho é pontudo. Também se chama TATÚ-ETÊ – tatu verdadeiro. “Galinha” é por causa do gosto da carne. Mas ficava esquisito chamá-lo “das Huehnartigschmeckendguerteltier” [tatu com sutil gosto de galinha], diz o Dr. Sick. (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 247)

Outra possibilidade é deixar o nome em português, acrescentando-lhe uma denominação de gênero. Curió poderia ficar der Kurió-Fink [tentilhão]; Tico-Tico, der

Tico-Tico Morgenfick [tentilhão da manhã]; Jenipapeiro, der Genipapo-Baum

[árvore]; Maitaca, das Maitaka-Papageichen [papagaio]; Surubim, der Surubin-Wels [siluro]; Urutau-Pequeno, der kleine Urutau-Tagsschlaefer [que dorme de dia, pois é uma ave noturna]. Ou, mesmo, usar um de seus nomes científicos, como no caso da “faveira” ou da “chegadinha”, que podem, também, ser deixadas como no original:

CHEGADINHA: É uma planta medicinal da família das Luabiadas:

Aeolanthus suavis, M. Pode usar: der Aeolanthus. Mas talvez melhor deixar

chegadinha. (JGR a CMC , p. 250, grifo do autor).

FAVEIRA: Deixar Faveira (Árvore, grande, Dinisia excelsa, Ducke) Ou:

Dinisia (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 252, grifo do autor).

Os nomes que trazem em si um significado, como Maria Faceira, Garça- Morena, Mata-Barata, Maria-Branca, Bate-Caixa, Mosca-Verde, devem ser, como os apelidos, traduzidos, acrescentando-se, se for o caso, uma pequena explicação entre parênteses, ou junto com o próprio nome, para que o leitor possa identificar a que bicho ou planta se referem. Assim, Garça-Morena, também conhecida como Garça-Azul, Mata-Barata, Maria-Branca, Mosca-Verde, Bate-Caixa podem ser vertidas literalmente sem qualquer explicação adicional:

GARÇA-MORENA: der kleine blauer Reiher (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 253).

MATA-BARATA: É uma planta, um arbusto do campo, não identificado. Pode traduzir, de: mata (de matar) – barata (Kakralocke(?)) (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 251).

MARIA-BRANCA: das Weisse-Marienchen (Ave. Tyrannidae. Xolmis cinerea Vieill.) (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 249).

MOSCA-VERDE: Grüne Fliege (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 251).

Já Maria Faceira e Bate-Caixa são acompanhadas de uma explicação:

MARIA FACEIRA: die Kokette-marie; das Kock-Marienchem. Ambos bons. É ave da família das Ardeideae? Syrigma Sibilatrix: Temm. O Dr. Sick aprova os dois nomes. Diz, também, que, da primeira vez que se use, talvez seja mais interessante pôr: die Kokette-Marie, kleiner Reiher (ou das Keck-Marie, etc.) (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 247)

BATE-CAIXA: É uma planta do campo, cujas folhas fazem muito barulho, especial, com o vento. Não consegui identificá-la. Pode usar: der Trommelschlseger (?) [tambor] Strauch [arbusto]. (JGR a CMC, 09/02/1965 – ROSA, 2003, p. 250)

A decisão de se traduzir determinado termo de um modo ou de outro dependerá de sua significância na trama textual, e não da palavra considerada de um modo isolado. Existem trechos da obra de Rosa, que ele comenta com seus tradutores, em que as plantas e animais não só representam um objeto externo como também criam, pela correlação particular entre as palavras, sua sonoridade, seu aspecto gráfico, algo completamente novo.

Uma dessas passagens pertence ao Cara-de-Bronze e é comentada com Edoardo Bizzarri; a outra é de O burrinho pedrês e é discutida com Harriet de Onís. Examinaremos, primeiro, a do Cara-de-Bronze, em seguida, a do Burrinho Pedrês.

No Cara-de-Bronze, trata-se de uma longa nota em que, dos nomes das plantas, todas elas “rigorosamente da região”, despontam tipos humanos, “pessoas de árvores”. Na enorme lista vegetal, só constam “as que „contêm poesia‟ em seus nomes: seja pelo significado, absurdo, estranho, pela antropomorfização, etc., seja pelo picante, poetizante, do termo tupi, etc.” (JGR a EB, 25/11/63 – ROSA, 1981, p. 60). Rosa cita especialmente o seguinte parágrafo, o mesmo analisado por Pedro Xisto em À busca da poesia (XISTO, 1970, p. 13), em que se conta uma pequena estória, o desenrolar de um namoro, “através de nomes exatos de arbustos”:

– A damiana, a angélica-do-sertão, a douradinha-do-campo. O joão- venâncio, o chapéu-de-couro, o bom-homem. O boa-tarde. O cabelo-de- anjo, o balança-cachos, o bilo-bilo. O alfinete de noiva. O peito-de-moça. O braço-de-preguiça. O aperta-joão. O são-gonçalino. A ata-brava, a brada- mundo, a gritadeira-do-campo... (ROSA, 1978, p. 109)

E explica a Bizzarri:

Conta o parágrafo com 10 períodos. O 1º é a apresentação de uma moça, no campo. O 2º é a vinda de um rapaz, um vaqueiro. O 3º é o rapaz cumprimentando a moça. O 4º é a atitude da moça; e (o bilo-bilo) o rapaz tentando acariciá-la. O 5º é óbvio. Assim o 6º. E o 7º (mão boba...) e o 8º (o rapaz “apertando” a mocinha). Quanto ao 9º: “são gonçalo” é sinônimo do membro viril... O 10º: a reação da moça, alarmada, brava, aos gritos. (JGR a EB, 25/11/1963 – ROSA, 1981, p. 60-61).

Encontramos aqui, de modo mais amplo, uma problemática comum da tradução, mas que se apresenta de modo extremo em certas passagens das obras de Rosa. Como traduzir tal amálgama de vegetação “rigorosamente da região”, “de nomes exatos de arbustos”, de poesia e de brincadeira? Se o tradutor optar por traduzir literalmente os nomes das plantas, para manter a estória, a coisa perderá o sentido, pois a graça está justamente no fato dessas plantas realmente existirem. Se traduzir os nomes das plantas, pura e simplesmente, pelos seus correspondentes na língua de chegada, perderá a estória. Não à toa Guimarães Rosa autorizou e mesmo aconselhou Edoardo Bizzarri, como já comentamos, a adaptar, reduzir, cortar, essa e outras notas da mesma natureza do Cara-de-Bronze:

concordo, inteiramente com Você, a respeito de eliminarmos as notas de pé-de-página. PRINCIPALMENTE, acho que devem ser eliminadas as das páginas 610, 617 e 618! O que você diz, a respeito, eu já tinha pensado, ou, pelo menos, começado a pensar. Também, penso que será ótimo eliminarmos as das páginas 559, 560, 593. As sobre árvores e plantas, e animais (598, 599, 600, 601, 602, 604, 605), deixo inteiramente à sua decisão – sobre se devem ser omitidas, em todo ou em parte. Apenas a da página 613 é que poderia ser conservada: mas, mesmo assim, se Você achar vantagem. (JGR a EB, 04/12/1963 – ROSA, 1981, p. 64).

A sequência de O burrinho pedrês comentada com Harriet de Onís descreve o momento em que a boiada acaba de sair da fazenda e se põe em marcha, na estrada:

Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão... (ROSA, 1983, p. 23-24).

Harriet de Onís pede explicação sobre os adjetivos “combuco”, “cubeto”, “lompardo”, “caldeiro” e a expressão “as armas antigas do boi cornalão” (HO a JGR, 25/11/1963, anexo – VERLANGIERI, 1993, p. 174). Rosa remete-a ao glossário da edição portuguesa que lhe enviara, mas lhe explica todos os adjetivos constantes desse parágrafo, que reproduzimos integralmente abaixo como ilustração da dedicação ilimitada de Rosa:

Galhudo = que tem chifres grandes e retorcidos; gaiolo = que tem os chifres em forma de meia-lua e muito aproximados um do outro, nas pontas; estrelo = com uma pinta na testa; espácio = que tem os chifres muito abertos, afastados um do outro; combuco = que tem os chifres curvos para baixo; cubeto = que possui chifres muito caídos e quase juntos nas pontas; lobuno = que tem o pelo escuro e um tanto acinzentado como o do lobo; lompardo = negro, com o lombo acastanhado; caldeiro = que apresenta os chifres um tanto baixos e menos unidos que os do gaiolo; cambraia = inteiramente branco; chamurro = boi mal castrado; churriado = com o pêlo em que, sobre o pelame vermelho ou preto, notam-se extensas listas brancas; corombo = de chifres pequenos ou quebrados; corneto = que tem falta de um dos chifres ou que possui um deles quebrado; bocalvo = de focinho branco e cabeça escura; borralho = cor de cinza; chumbado = de qualquer cor (geralmente branco, vermelho ou castanho) mas com muitas pequeninas pintas pretas; chitado = pintadinho (todo com pequeninas pintas) de branco ou vermelho; vareiro = que tem o corpo mais comprido do que é comum; silveiro = que tem uma malha branca na testa, sendo escura a cabeça; mocho = sem chifres; macheado = a que cortaram os chifres, mas restando os cotos; cornalão = de chifres enormes. (JGR a HO, 11/12/1963, anexo – VERLANGIERI, 1993, p. 189-190, grifo do autor).

Chama, porém, a atenção da tradutora para o fato de ter escolhido propositalmente um vocabulário referente ao gado desconhecido do leitor, para que esse se impressionasse acima de tudo com a plasticidade e a sonoridade dos adjetivos – “que se enfileiram, dois a dois ou aliterados, aos pares de consoantes, idênticas, iniciais, ou rimando” – e imaginasse o ritmo da boiada em marcha:

Esses adjetivos, referentes a formas ou cores dos bovinos, são, no texto original, qualificativos rebuscados, que o leitor não conhece, não sabe o que significam. Servem, no texto, só como “substância plástica”, para, enfileirados, darem idéia, obrigatoriamente, do ritmo sonoro de uma boiada em marcha. Por isso, mesmo, escolheram-se, de preferência, termos desconhecidos do leitor; mas referentes aos bois. Tanto seria, com o mesmo efeito, escrever, só: la-lala-la... lá, rá, lá, rá... lá-lá-lá... etc., como quando se solfeja, sem palavras, um trecho de música. (JGR a HO, 11/12/1963, anexo – VERLANGIERI, 1993, p. 190, grifo do autor).

Explica ainda como se poderia proceder para obter, em inglês, uma tradução análoga, que conservasse o ritmo do original:

Penso que, o melhor, numa tradução, seria fazer-se, em inglês, coisa análoga. A senhora faria uma grande lista de palavras, isto é, de adjetivos qualificativos, referentes a formas e cores dos bois. Depois, selecionaria os mais sugestivos, para, agrupando-os aos pares, também aliterados (corombos, cornetos) ou rimados (vareiros, silveiros), reproduzir aquele ritmo do período, que a Sra. fixará bem, lendo-o umas três vezes em voz alta. Todo o período é, pois, de função plástico-onomatopáica. (JGR a HO, 11/12/1963, anexo – VERLANGIERI, 1993, p. 190, grifo do autor).

Nesse caso específico importa, pois, não os termos exatos, mas seu campo semântico, e o efeito de “marcha de boiada” que produzem.

Em suas observações sobre a fauna e a flora, Rosa fornece assim pistas para a tradução. Mas constatamos, sobretudo, que a única coisa a ser imperativamente obedecida, e que permite uma decisão sobre a tradução, é o papel que determinado termo exerce em um texto particular.

O que será reiterado também a seguir, na Miscelânea.