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CAPÍTULO 3 – QUE FAZER?

3.3 O ritmo na prática

Em A poética do traduzir, Meschonnic dá um exemplo simples para mostrar a diferença entre uma tradução que considera a língua e uma tradução que considera o discurso.

Ele toma a frase de uma das sentinelas em Hamlet: “I think I hear them” (I, 1, 14). Mesmo aqueles que têm um conhecimento básico de inglês sabem, diz ele, que o that pode ser suprimido de tal frase e que sua tradução coloca, pois, aparentemente, um mero problema de língua, de estilística comparada.

Assim, François-Victor Hugo e Yves Bonnefoy reintroduzem o que em suas versões francesas, o primeiro escrevendo “„Je crois que je les entends‟ (Creio que os ouço)”, e o segundo acrescentando o modalizador oral bien: “„Je crois bien que je les entends‟ (Creio bem que os ouço)” (MESCHONNIC, 2010, p. 56).

A essas duas traduções semanticamente corretas, Meschonnic oporá a versão de Raymond Lepoutre, para a encenação de A. Vitez, que omite o “que” e o substitui por uma vírgula, “je crois, je l‟entends”, criando uma pausa que obriga a frase a ser entoada de um modo completamente diferente:

Ele substituiu o que por uma vírgula, a sintaxe pelo ritmo – uma pausa, um suspense. Esta não é mais a língua. É o discurso. O tradutor criou um problema novo. Note-se, antes de condenar o barbarismo segundo o francês escrito, que é uma sintaxe de teatro, de oralidade: a sintaxe está aí, mas sob uma outra forma. Oral. (MESCHONNIC, 2010, p. 56).

Meschonnic não alonga, aqui, seus argumentos, mas suas colocações dão margem a algumas reflexões. Os dois primeiros tradutores obedeceram à sintaxe usual do francês, Yves Bonnefoy tentando com o modalizador bien aproximar-se do modo como um “francês médio” diria tal frase. Dessa forma, poderíamos dizer que ambos tentam naturalizá-la, ao passo que Lepoutre, coordenando-as assindeticamente, desestrutura essa entoação costumeira, impõe uma suspensão

que obriga a uma leitura “antinatural”, quer essa leitura seja apenas silenciosa, quer passe pela enunciação concreta de um ator. Por isso ela não é “falada”, é oral, no sentido que Meschonnic precisa na mesma Poética do traduzir:

A partir do ritmo como organização subjetiva de uma historicidade, pode-se distinguir o falado e o oral. Não há, pois, mais o modelo binário do signo, o oral e o escrito, no padrão da voz e na escritura. Mas um modelo triplo, o falado, o escrito e o oral. O oral é compreendido como um primado do ritmo

e da prosódia na enunciação. Ele compõe uma semântica particular.

(MESCHONNIC, 2010, p. 62).

Esse exemplo ilustra de modo concreto por que Guimarães Rosa – e com ele, como vimos, muitos escritores do movimento da “língua falada” – insiste em distinguir sua escrita do “monstro morto” que é a língua comum. Novos sentidos se constroem com deslocamentos e não com mímese.

Para comentar mais detalhadamente a tradução de Lepoutre, temos de recorrer ao conceito de ritmo retomando mais uma vez as observações de H. Meschonnic, para quem o ritmo não é meramente a “batida” do verso, o retorno marcado pela metrificação de um tempo forte. Ele é uma distribuição singular de um conjunto de acentos que põe em jogo tanto a prosódia, quanto o semântico e o sintático (MESCHONNIC; DESSONS, 1998, p. 119-176).

“Je crois, je les entends”, recorrendo à parataxe, manifestada pela vírgula, impõe uma suspensão e o surgimento consequente de um acento forte em crois. Mais ainda, o je inaugurando a segunda oração coordenada assindética, em razão de sua posição após a pausa (note-se que ele fica átono na sequencia “je crois que je les”), ganha um “acento de ataque” criando assim um eco com o primeiro je. Desse modo, a frase “I think I hear them”, traduzida por François-Victor Hugo numa frase subordinada marcada por um só acento final dominante, encontra-se na versão de Lepoutre dotada de dois acentos principais, sem contar o reforço do jogo de acentos dos pronomes sujeitos: solução sem dúvida mais próxima do original inglês. A solução de Yves Bonnefoy parece intermediária: acrescentando um advérbio fortemente modalizador, bien, ele quebra a sequência sintática, atrasando o surgimento da conjunção que, permitindo assim uma acentuação secundária. Por isso, conclui Meschonnic, Bonnefoy “acrescenta a isto [à tradução de Hugo] um pouco” (MESCHONNIC, 2010, p. 56).

Não visamos retomar a notação da acentuação, bastante técnica, à qual recorre H. Meschonnic, mas o exemplo das traduções dessa fala de Hamlet permite apresentar três orientações de tradução: uma que se faz pela língua (respeito da gramática, explicitação das relações sintáticas, frase equilibrada sintática e semanticamente), outra que se faz pela introdução de um elemento naturalizador (a frase tal como ela poderia ser pronunciada num francês falado, com a introdução de

bien), e enfim outra que visa a conservação do ritmo da frase (apesar de ela não

facilitar a entoação e romper com a evidência do sentido).

Essa oposição entre modos de tradução, um que privilegia o semântico em detrimento do rítmico, outro que se pauta pela preservação do ritmo, pode ser ilustrada por outro exemplo, citado por Meschonnic, de duas passagens também de

Hamlet, nas traduções de Lepoutre e Bonnefoy respectivamente:

“Semble, Madame! Non: est. Je ne connais pas semble.” (Parece, Senhora! Não: é. Eu não conheço parece).

“Je ne sais pas ce que sembler signifie.” (Eu não sei o que parecer significa) (MESCHONNIC, 2010, p. 100-101).

Esses dois casos desvelam como a pontuação significa, e como a prosódia de um texto não é algo abstrato, mas algo que se faz pelos acentos e deslocamentos sintáticos que criam sentido sem envolver qualquer mímese. Quando não criam sentido, essas operações passam a ser simples “formas” no texto.

É interessante, igualmente, observar como o conceito de ritmo abre uma nova perspectiva de tradução, chamando a atenção para a construção de prosódias que não podem ser assimiladas nem à métrica nem à fala comum.

O ritmo, contudo, não se resume à acentuação nem à sintaxe. Meschonnic analisa outras passagens da peça de Shakespeare, desta vez do ponto de vista, poderíamos dizer, só para usar uma classificação, do léxico. Mas sempre destacando o que faz a oralidade do texto original e o modo como as traduções a levaram ou não em conta.

Ele desenvolve seu exame no âmbito de uma reflexão sobre a crítica de imprensa referente à tradução de Raymond Lepoutre.

De um modo geral, a versão de Lepoutre foi criticada por não ser “distinta” como a de Gide. Não, diz Meschonnic, que a tradução de Gide possa ser assim

qualificada, mas ela é considerada canônica pela imprensa, sobretudo por ser “a edição da Pléiade” (MESCHONNIC, 2010, p. 92).

Assim, com uma ironia “segura de si mesma”, que se alimenta unicamente de seu “tom” (MESCHONNIC, 2010, p. 92), a crítica do jornal Libération declara, sobre a tradução de Lepoutre da famosa frase “Something is rotten in the State of Denmark”:

“[A] célebre réplica de Marcellus da cena 5 do 1º Ato foi traduzida pelo saudoso Gide „il y a quelque chose de pourri dans le royaume de

Dannemark‟ (há alguma coisa de podre no reino da Dinamarca). Com o lamentável Lepoutre ela se torna: „Quelque chose est pourri dans l’État de

Danemark‟ (Alguma coisa está podre no Estado da Dinamarca). Good idea, ol‟chap! (Boa idéia, velho!). Substituir „reino‟ por „Estado‟, isso realmente produz um efeito furiosamente moderno!” (Libération apud MESCHONNIC, 1999, p. 231).

Porém, esclarece Meschonnic, além de se enganar de cena – trata-se da cena 4 e não da cena 5 – o crítico do Libération não foi buscar a frase de Shakespeare, “Something is rotten in the State of Denmark”. (MESCHONNIC, 1999, p. 231), em que se lê “Estado” e não “reino”. Desse modo, a escolha de Lepoutre não é um modernismo, como diz o jornal, mas uma retomada do texto original, e deve ser avaliada em termos da oralidade do texto, ao invés de ser rejeitada simplesmente porque se opôs a uma tradução canônica.

O termo state, com ou sem maiúscula, explica Meschonnic, é recorrente nessa peça, percorrendo desde o “estado do país até o transtorno do Estado, passando pelo estado de Hamlet” (MESCHONNIC, 2010, p. 94). Trata-se, pois, de uma palavra fundamental na constituição de seu ritmo.

Ela é, porém, vertida, nas nove edições francesas arroladas por Meschonnic (2010, p. 92-93, notas 11 a 19), dos mais diferentes modos, entre os quais

gouvernement (governo), royaume (reino), époque (época), heure (hora), temps

(tempo), jours (dias) e até mesmo, às vezes, état (estado), a ponto de se acreditar “que cada tradutor tivesse traduzido um texto diferente” (MESCHONNIC, 2010, p. 94). O que se perde com isso, continua ele, não é “nem tanto o sentido das palavras”, mas “o ritmo do sentido” (MESCHONNIC, 2010, p. 95).

Ele nota, ainda, que não se pode julgar a tradução de um verso, ainda mais de um verso célebre, de forma isolada, pois a tendência será considerar melhor a versão consagrada, à qual já se habituou. Ao contrário, deve-se julgar como tal

verso ecoa – para retomar o termo de Augusto de Campos para se referir aos “dês” de Grande sertão: veredas – no restante do texto. Só assim se resgata, na tradução, o poético. A tradução de state por estado não é, pois, “frescura” ou, nos termos de Meschonnic, “distinção”: “A contratradição, pode-se vê-la como distinção. Mas ela tem antes um efeito poético: procurar os valores do original, mais fortes que a edulcoração costumeira” (MESCHONNIC, 2010, p. 95).

Ele mostra, também, que uma ruptura sintática pode ser válida no âmbito do discurso quando ela serve para compor o sentido do texto, e não, consequentemente, quando é simples “estilo”, forma separada de conteúdo. Quando Lepoutre, em vez de traduzir “I have seen nothing” por “Je n‟ai rien vu”, escolhe “Je n‟ai vu rien” (MESCHONNIC, 2010, p. 98), ele faz com que – a explicação é nossa – se crie uma pausa entre je n’ai vu e rien. Assim, vu e rien serão acentuados e n’ai

receberá um contra-acento: Je n‟ai vu // rien. Isso muda sutilmente o sentido da frase, pois se afirma que alguma coisa foi vista mas que essa coisa é... nada. A ordem gramatical corriqueira, por não ter acentos que se destaquem desse modo e, portanto, por não surpreender, não deslocar o sentido a que se está acostumado, faz com que não se preste nenhuma atenção especial a ela.

Esse exemplo lembra, tanto pela temática do “ver nada” como pelo deslocamento, o trecho de Grande sertão: veredas que Guimarães Rosa discute com seu tradutor alemão e que citamos no Capítulo 2: “E qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa de se ver” (GS:V, p. 421).

Meschonnic comenta ainda a tendência de “poetizar” o texto verificada em algumas das versões de Hamlet para o francês. Ele ilustra com a seguinte imagem: “No, nor the fruitfull river in the eye”, que se torna, em Bonnefoy, “„ni les fleuves intarissables nés des yeux seuls‟ (nem os rios inexauríveis nascidos dos olhos sós)”, em François-Victor Hugo, “„Le ruisseau intarissable qui inonde les yeux‟ (o ribeirão inexaurível que inunda os olhos)”, em Gide, “„le ruissellement des pleurs‟ (o jorrar dos prantos)” e, em Jean-Michel Déprats, “„la prodigue rivière dans l‟oeil‟ (o pródigo rio nos olhos)” (MESCHONNIC, 2010, p. 104).

A “poetização” se faz a partir da escolha de palavras consideradas “literárias”, como o adjetivo intarissable, e das combinações comumente associadas à ideia corrente de poesia, como inonde les yeux. Além disso, há uma forte tendência de se explicar a imagem recorrendo-se a uma representação poeticamente banal, como no caso de Gide, le ruissellement des pleurs. Por essa razão Meschonnic louva a

versão de Lepoutre, que não apelou para esse vocabulário “erudito” e sustentou sua estranheza escrevendo: “„non, ni la rivière fertile dans l‟oeil‟ (Não, nem o rio fértil nos olhos)” (MESCHONNIC, 2010, p. 104).

As mesmas considerações podem ser feitas com relação às diferentes traduções de outra imagem de Hamlet citada por Meschonnic. “When chuchyards yawn” (III, 2, 367) é ou “poetizada”, quando se escolhem palavras mais “literárias” para traduzi-la, ou explicada, quando o tradutor tenta lhe dar uma “lógica”. Assim, Hugo troca chuchyards (cemitérios) por tombes (tumbas), escrevendo: “„où les tombes bâillent‟ (onde as tumbas bocejam)”, e Bonnefoy, adotando sua solução, ainda explica: “„l‟heure des tombes qui s‟ouvrent‟ (a hora das tumbas que se abrem)”. Gide também acrescenta uma explicação quando fala das tampas que bocejam: “„où bâillent les couvercles des cimetières‟ (onde bocejam as tampas dos cemitérios)”. E é mais uma vez Lepoutre, declara Meschonnic, que mantém a concretude da metáfora, sem explicação e sem poetização: “„quand les cimetières bâillent‟ (quando os cemitérios bocejam)” (MESCHONNIC, 2010, p. 98). Essa “poetização às custas da poesia” (MESCHONNIC, 2010, p. 104), como tão bem sintetiza Meschonnic, é um dos pontos em que mais se pode constatar a confusão entre ritmo, tal como definido por ele, e ritmo no sentido tradicional, ligado a imagens e palavras convencionalmente literárias.

Poderíamos multiplicar os exemplos dados por esse crítico, mas acreditamos que isso já basta para ilustrar o modo como o ritmo pode ser pensado fora dos moldes da “teoria do signo”, que restringe a poesia a métrica, rima e imagens.

Cabe-nos, agora, pensar as traduções de Grande sertão: veredas com base nesses princípios, o que faremos em duas etapas, nos Capítulos 4 e 5. No Capítulo 4, vamos situar as duas versões francesas de Grande sertão: veredas nas suas respectivas épocas históricas e, finalmente, no Capítulo 5, passaremos à sua análise comparativa, com o objetivo de verificar que ritmo cada um dos tradutores conseguiu imprimir à sua versão.