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As primeiras iniciativas em direção à regularização: clientelismo e populismo

Evolução da Legislação e atuação do Poder Público

1.2. A irregularidade como elemento de diferenciação sócio-territorial no Brasil

1.2.3. As primeiras iniciativas em direção à regularização: clientelismo e populismo

Como vimos, esse período de expansão é simultâneo à compilação da legislação realizada pelo Código Artur Saboya, em 29. A realidade de expansão espontânea não fora, porém, considerada nas normas consolidadas no código, que não tratavam da autoconstrução e reiterava a condição rural de várias regiões periféricas para as quais a expansão já se direcionava. O código tratava a irregularidade com indiferença, como também não considerava a própria pobreza e a classe trabalhadora. A administração pública carecia de um estatuto urbanístico-legal para validar esse processo de expansão, permitir os investimentos públicos em urbanização e serviços, reconhecendo-a como parte integrante da cidade oficial. Contudo, como a política vigente até então primava por desconsiderar essa porção urbana, a cidade fática era um trecho à margem da legislação sem reconhecimento oficial. É a constatação oficial de que essa porção se tornara maior do que a cidade oficial pelo próprio Prefeito Inácio de Anhaia Melo, que obrigou o Poder Público a estudar medidas que revertessem o estado de irregularidade que tomara conta da malha urbana.

A solução só surgiu no Congresso Constitucional de 1934 e na consolidação do Código Artur Saboya no mesmo ano. Porém, não sem um impasse que se estabelece na forma de conduzir uma atuação efetiva e realizar investimentos numa região

extralegal. Antes disso, assim que assumiu o seu primeiro mandato7

, o Prefeito Anhaia Melo procurou impor uma visão cientificista para a Administração Pública e instituiu novas normas para o parcelamento do solo. Invertendo a lógica da legislação do Código Artur Saboya, que permitia a abertura de ruas particulares cuja responsabilidade de realização da infra-estrutura era do empreendedor, segundo o Ato No

25/30, proibiu a construção sem alvará em terreno que não desse frente para uma via oficial.

No entanto, o desinteresse dos legisladores em aprovar uma lei adequada e abrangente, o esvaziamento costumaz produzido pela revelia velada da população às normas estabelecidas, a relutância dos Agentes Públicos em fazer respeitar a legislação vigente, por pior que fosse, e sob a contestação de inconstitucionalidade por parte dos críticos aferindo o espírito da lei sob a ótica do Direito de Construir, se condensa mais uma camada juridicamente malemolente sobre a cultura da terra, agora revestindo os antigos elementos de subversão territorial e imobiliária com parâmetros de disfunção urbanísticas, construtivas e infra-estruturais; deste modo, o Ato No

129/31 abrandou as exigências anteriores, permitindo que se construísse em terrenos com acesso a vias irregulares sob determinadas condições. Apesar de menos rigorosa, essa legislação também sofreu diversas críticas e muita pressão social. O impasse técnico-político continuou.

Atender às necessidades infra-estruturais, principalmente concernentes ao abastecimento de água e coleta de esgotos que garantiriam melhores condições de saúde pública, exigia permissão da Administração Pública; o que não era objeto de ruas não reconhecidas oficialmente. Segundo Rolnik (1997:167), para incorporar a população periférica, a classe média, os pequenos investidores e trabalhadores nos rastros dos objetivos da Revolução de 30, era fundamental incorporá-los à cidade oficial. Contudo, para tanto, essa legislação imposta não surtia efeito.

O Primeiro Congresso de Habitação, realizado em 1931 pelo Instituto de Engenharia, aprovou uma moção para que os legisladores encontrassem uma solução adequada ao interesse da municipalidade e que considerasse os demais interesses sob uma perspectiva social. Essa moção foi a base para a instituição de uma estratégia mais

7 Luís Inácio de Anhaia Melo: de 6 de dezembro de 1930 a 25 de julho de 1931 e de 14 de novembro de

contextualizada da questão da moradia, através da promulgação do Ato No

304/32, pois permitia uma ação discricionária da Diretoria de Obras Municipais na análise das edificações em loteamentos à margem da legislação, tendo poder para, sugerindo alterações, realizar aprovações. Isso permitiu a primeira grande iniciativa por parte da Administração pública para proceder na regularização de grandes porções de áreas irregulares do Município de São Paulo, de modo a trazê-las para a égide das responsabilidades públicas.

No entanto, os critérios para reconhecimento das áreas irregulares não eram claros e normatizados, dependendo das considerações subjetivas dos técnicos. Inaugura-se daí uma era de concessões de legalidade urbana seletivas, incluindo largas faixas de áreas irregulares à malha oficial da cidade, mas de modo aleatório e cosmético, sem transformações na estrutura da cidade. Foi só com a consolidação do Código Artur Saboya, em 1934, que se conceituou então uma nova posição em relação à irregularidade.

Rolnik (1997:168) nos mostra que, com a alteração do conceito de ―lotes situados em sítios longínquos‖ para ―lotes situados ao longo de ruas ou passagens sem melhoria pública‖ ditou a diferença entre aqueles que receberiam investimentos e aqueles que não receberiam, não dependendo mais da localização, mas apenas de uma decisão subjetiva por parte do Poder Público. Os procedimentos de regularização, desse modo, tornaram-se ―favores‖ oferecidos pela Administração Municipal, obviamente atrelada a interesses políticos. Nessa consolidação, foi retirado também o artigo 51, que impedia a aprovação de edificações em terrenos não arruados, e outras regras sobre construção em zona rural ou o empreendimento de vilas operárias se tornaram mais brandas e menos burocráticas; substituindo-se inclusive a necessidade de solicitar alvarás por uma simples comunicação à Diretoria de Obras.

Especificamente sobre as construções irregulares, no artigo 121, a consolidação determinou a identificação das obras construídas sem permissão, mas que houvessem condições de serem regularizadas, procedendo na medição e desenho pelos técnicos da Diretoria de Obras. Exigia-se como critério mínimo o recuo frontal de 4,00m e 2,00m de fundos, além da ocupação máxima de um terço do lote, entre outras normas. Já no caso das vias irregulares, o Código trouxe uma lista de condições que

serviram como criterização das áreas regularizáveis. Entre elas a largura mínima de 8,00m para as ruas e a instalação de sistema de drenagem. A autora define da seguinte forma essa doação do Estado ao povo, nos moldes populistas, que ela denomina como a ―ideologia da outorga‖, com forte similaridade com a legislação trabalhista populista:

A leitura das modificações introduzidas em 1934 permite-nos uma análise do novo pacto territorial que se estabeleceu entre as classes dominantes e os grupos sociais emergentes. A velha ordem não se transformava para incorporar diferentes formas de ocupação do espaço; ela apenas seletivamente tolerava exceções à regra. Ao serem reconhecidas as exceções, ―ganhavam‖ o direito de receber investimentos públicos, infra- estrutura e serviços urbanos. As maiorias clandestinas entravam então na política urbana, devendo um favor para aqueles que julgaram admissíveis.

(ROLNIK, 1997:169)

Cria-se assim, através do atendimento das necessidades imediatas da população, uma contabilidade para amealhar obrigações políticas. O Poder Público age como se doasse aquilo que seria moralmente uma responsabilidade sua, criando uma teatralidade em torno dessas benesses como se fora uma dádiva do Estado e não uma obrigação, de modo a fazer a população crer que possuía uma dívida de gratidão com aquela Administração. Essa dívida poderia assumir formas variadas de retribuição, sem prazo de carência, representando o reconhecimento do benefício recebido, cujo compromisso atrelava em cadeia também àqueles atendidos de modo indireto, como parentes e amigos. O principal instrumento de demonstração de reconhecimento dessa gratidão seria — claro! — o voto; que deveria ser colhido de todas as formas possíveis, com a arregimentação familiar, da comunidade ou da associação dos moradores atendidos.

Com a crise econômica de final dos anos 20, com o conseqüente deslocamento da oligarquia do café do centro do poder político, e por não haver ainda uma estreita conexão do empresariado emergente com as instâncias de poder político, a nova base de legitimidade política do Estado passa a ser essa massa popular urbana, fielmente arregimentada e estreitamente comprometida com a sua sustentação, por laços de gratidão clientelistas e populistas.

Essa estratégia política que estava sendo conduzida por Getúlio Vargas no nível federal foi implementada no nível municipal pelo Prefeito Fabio da Silva Prado8. No

nível federal, essa se resumia à instituição de um sistema sindical atrelado ao Estado e à obrigatoriedade da afiliação dos trabalhadores aos sindicatos, como condição para usufruir dos direitos trabalhistas oferecidos pelo Poder Beneficiador. No caso municipal, o Prefeito Fabio Prado criou uma legislação em benefício do funcionalismo municipal, com plano de carreira e estabilidade por tempo de serviço, incrementado por um plano de aquisição de casas próprias.

Do ponto de vista dos trabalhadores do setor privado, a Prefeitura investiu num estudo para identificação da realidade de consumo e do modo de vida, com o intuito de instituir um salário mínimo condizente com as necessidades básicas da população. O resultado dessa política foi um redirecionamento do destino dos investimentos públicos, por onde a Administração Fabio Prado direcionou-os de modo inédito para a solução de problemas sociais e urbanos. Assim, implantou-se uma rede de creches nos setores mais carentes e iniciou-se um estudo sobre o transporte coletivo, de modo a adequá-lo às necessidades dos trabalhadores.

Do ponto de vista habitacional, interessa-nos especialmente nesse período a transformação da legislação urbana como expressão de uma política populista. No caso municipal, essa expressão foi delineada pelo Ato No1.123/36 — como nos esclarece

Rolnik (1997:172) —, considerada a primeira grande Lei de Anistia voltada para a cidade extra-legal, e cujos critérios para aprovação no Departamento de Obras e Serviços Municipais eram apenas ―uma razoável condição de higiene e segurança‖. Nesse caso, especificamente — devemos esclarecer —, não cabe o termo regularização, pois não há nenhuma ação do Poder Público em adequar ou fazer alterar as condições urbanas ou das edificações, mas apenas em proceder a uma anistia irrestrita. Obviamente, essa generalidade se dava com o intuito de firmar o poder discricionário dos agentes públicos, de maneira a anistiar apenas aquilo que os interessava politicamente, atribuindo ao Estado o papel de árbitro absoluto, beneficiador benevolente e tornando seu poder imensamente maior.

8 Fábio da Silva Prado: de 7 de setembro de 1934 a 31 de janeiro de 1938, Prefeito nomeado pelo

Em contrapartida, enquanto os bairros populares eram anistiados, os bairros de alta renda eram protegidos com a instituição do zoneamento. Esse ato serviu essencialmente para proteger o valor agregado no espaço público, o capital particular investido no setor imobiliário e evitar a descaracterização precoce produzida pela especulação imobiliária, o que poderia prejudicar a vizinhança e o valor estético das áreas nobres.

A imposição dos mecanismos de controle do espaço na cidade se deu com a atuação de grupos da aristocracia paulistana e técnicos urbanistas, organizados pela Sociedade dos Amigos da Cidade, fundada em 1934. Paralelamente, as massas são atendidas em alguns setores essenciais e ganham direitos, porém subordinadas a um Estado populista e paternalista, e as elites cederam espaço, sem perder privilégios e poder político: nova estrutura para uma velha ordem. Com as fronteiras urbanas e regras claramente estipuladas ao seu favor, esses grupos defendiam essencialmente o seu espaço e, por conseguinte, o seu capital. Assim, a anistia e o zoneamento compunham uma dualidade urbanística tão arraigada, que suas estruturas sócio- políticas permaneceram como base da estratégia de plano de ação urbanística até 1972, com a Lei Municipal No

7.805, delineando novo zoneamento.

Jogando uma pá de cal sobre qualquer aspiração por transformação, as pressões políticas urbanas foram enterradas com o golpe militar de 1964, que também sufocou todas as reivindicações e manifestações sociais que se avolumaram nos vinte anos seguintes nos demais setores. A legislação urbana então vai assumir a estratégia do grande planejamento e o modelo desenvolvimentista do regime autoritário. As especificidades são deixadas de lado por um parâmetro modernizador na perspectiva dos grandes investimentos, grandes empreendimentos e solução de amplo espectro. As questões urbanas são tratadas com o financiamento de grandes projetos de habitação e infra-estrutura, que nem sempre se mostraram eficientes, como comprovam a evolução da irregularidade, da subnormalidade e da própria disfuncionalidade urbana no transporte, abastecimento e saneamento; ineficazes.

A política urbana não contava até esse momento com o respaldo de uma legislação que estabelecesse diretrizes gerais, sendo todos os instrumentos legais e normativos basicamente municipais. Quando muito contava com alguma legislação

estadual, principalmente referente ao meio ambiente. É já no último ato, quase no fechar das cortinas da tragédia do regime militar — cuja autoridade minguara ante a incompetência administrativa e sufocada pela crise econômica mundial e resultante de uma política econômica interna catastrófica — que é aprovada a Lei No

6.766/79. Em que pese seu caráter revolucionário e a cobertura de muitas lacunas quanto à legislação urbana, ela ainda é muito inspirada no princípio norteador das generalidades desenvolvimentistas.

Como veremos, ela não trata de questões já manifestas no conflito sobre o espaço urbano, como mecanismos para a solução da subnormalidade, e muito menos das latentes, como a questão da irregularidade. Traz sim definições e traça princípios norteadores para a produção futura do espaço e pouco oferece sobre soluções para a situação consolidada. Mesmo assim, por privilegiar o Poder Público sobre o interesse privado, abre as portas para um aprimoramento das relações urbanas e ainda traz princípios bastante necessários para a época. Se a analisarmos como o gênesis de um novo enfoque sobre parcelamento do solo ela é uma revolução; se a analisarmos ante os problemas que as cidades já enfrentavam quando da sua promulgação, ela é tímida e insuficiente. Este é o assunto que abordaremos doravante.