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A Constituição de 1988, a mobilização da população pela regularização, o Estatuto das Cidades e a função social da

alteração na Lei N o 6.766/

1.4. A Constituição de 1988, a mobilização da população pela regularização, o Estatuto das Cidades e a função social da

propriedade.

O período que vai da aprovação da Lei No6.766, em 19 de dezembro de

1979, ao da promulgação da Lei No

10.257, de 10 de julho de 2001, é um dos períodos mais transformadores da legislação urbana no Brasil; só comparável à Lei de Terras e ao estabelecimento das bases jurídicas do direito de propriedade pelo Código Civil, de 1916. Com uma diferença: enquanto essas legislações anteriores firmavam os costumes e as jurisprudências — ou seja, buscavam espelhar os mecanismos sociais praticados e consolidados, inclusive a Lei No6.766/79 — a Lei No10.257/01 buscou

alterar de modo incisivo o paradigma corrente redirecionando a cultura da terra e o padrão de produção do espaço excludente que se praticava até então.

E mais exemplar é essa transformação se contextualizarmo-na em relação a toda uma ordem de transformações que foram sendo impostas simultaneamente. Esse período compreende os movimentos pela redemocratização, o fim do Regime Militar, as eleições por diretas, a reorganização das representações sociais, a promulgação da Constituição de 1988 e os trabalhos para a regulamentação dos capítulos constitucionais específicos, como o de Política Urbana; e por fim a aprovação dos diversos Estatutos (do Idoso, da Criança, etc.), e entre eles o que nos interessa mais: o Estatuto da Cidade.

Ou seja, a transformação da política urbana pretendida veio no bojo de uma série de transformações, políticas e sociais, respaldadas por uma ampla consolidação jurídica. Não cabe aqui discorrer se o Regime Militar caiu, definhou ou fez a transferência equacionada do poder político de volta para a sociedade: tema bastante complexo e que tem merecido melhor atenção em estudos mais aprofundados. É fato, porém, que o fim do Regime Militar tem por raiz principal a crise econômica da década de 70 e a completa falência do modelo de planejamento adotado. A falência econômica expôs a falência moral do Estado e toda ordem de violências e transgressões vieram à tona. O esfriamento do conflito ideológico internacional e a perda paulatina de força do Regime Comunista Soviético também permitiu que se dissipasse o temor de que as forças sociais se tornassem uma ameaça ao status quo local e à ordem capitalista. Por si sós, a indignação ante a tortura e a violência que se praticara nos porões da ditadura não haviam gerado a energia contestatória suficiente para derrubar o Regime até a década de 80. Mas a crise econômica minou a resistência física dos governos militares, responsabilizados diretamente pela derrocada econômica; e ausentes de soluções e respaldo político para implementar qualquer novo modelo econômico, sucumbiram.

Nesse contexto, aquelas forças rurais e urbanas que vinham sendo reprimidas voltam a pressionar as estruturas sociais, ante os efeitos da crise, sofrendo as maiores conseqüências da inflação, do decrescimento da produção, do desemprego e da redução da renda per capita. A situação que já era grave devido à imensa concentração

de renda produzida no período do Milagre Econômico, agora se torna insustentável. O golpe, que veio justamente para estancar os movimentos sociais insurgentes e impor um mecanismo de controle sobre as massas urbanas e rurais marginalizadas, se vê incapaz de manter esse controle apenas pela força, e a classe média e as lideranças de direita já não os apóiam mais, como no princípio do regime. Nas cidades, as péssimas condições de vida permaneceram e a urbanização produzida artificialmente durante o período do milagre — sem controle ou acomodação da massa que se avoluma nas periferias — não só não foi equacionada, como havia acirrado a discrepância entre o centro ideal e a cidade marginalizada, tornando-se ilhas de prosperidade envoltas num oceano de subnormalidade. O populismo e planejamento megalomaníaco e ufanista não surtiram efeito e os 18 anos de Regime Militar só fizeram por agravar a crise social e urbana, que agora exigia mudanças.

Há controvérsia se o fim do Regime Militar foi uma decadência ou uma transição negociada entre os setores mais conservadores, por outro lado, pode-se afirmar a certeza da ampla participação popular. As manifestações foram um elemento simbólico necessário, mas o enfraquecimento do Regime ainda não havia minado as estruturas elitistas de poder o suficiente, a ponto de permitir a exigência de uma rendição incondicional. Os efeitos dessa transição nos termos bem nacionais — pouca violência e muita composição política — podemos perceber até o presente, pois deixou abertas feridas bastante amargas na discussão sobre anistias, condecorações, compensações e indenizações aos torturadores e terroristas — considerando os extremos, a depender de quem narra os fatos.

Mas, o que nos interessa especificamente é que podemos também afirmar que o fim do Regime, ao retirarem-se os militares, abriu-se espaço para uma nova reordenação social. A hesitação da direita populista no momento das incertezas da transição e a sua incapacidade de resolver os problemas sociais e econômicos simultaneamente abriram espaço para a ação dos setores à esquerda se infiltrarem nos rincões desassistidos, seja no campo como nas periferias, para promover uma verdadeira arregimentação de organizações de classe e representações. Enquanto a direita procurava limpar a sua imagem e se organizar em novas frentes para garantir os caminhos de permanência no poder, a esquerda firmou suas bases na sociedade

organizada. Nenhum tipo de instituição social comunitária, fossem as associações pró- moradia ou os sem-terra rurais, fossem os sindicatos de trabalhadores ou as entidades de classe, nenhuma escapou à sua atenção.

Ainda sustentados pelo poder econômico e disseminando o medo do radicalismo — mas, não sem sofrer revezes, como a vitória de Luíza Erundina em 1989 —, a direita permaneceu em algumas cidades e capitais e voltou em outras ao principal eixo da Administração Pública. Jânio, pausa, Maluf, Pitta foi uma seqüência representativa desse cenário pós Regime. Mas a inversão de valores já estava em curso. Enquanto os postos chaves eram retomados temporariamente pela direita, no subsolo a esquerda ganha força e firma resistência. As tropas urbanas e rurais assumem um papel mais representativo nas Câmaras e Assembléias, no Congresso e no Senado; e a ação mais participativa da população já se faz sentir nos trabalhos da Constituição de 1988. Que não seja uma Constituição revolucionária, ao menos fez uma menção às questões prementes dessa sociedade mais organizada.

Digo uma menção, porque o Capítulo sobre Política Urbana que nos interessa, por exemplo, cujo tema é muito mais complexo e amplo, além de atingir de modo mais dramático à população — hoje de larga maioria urbana —, somado ao fato de que as cidades se tornaram um problema social muito mais grave do que a questão no campo, só recebeu atenção de dois artigos, enquanto o capítulo sobre a Política Agrícola é bem mais extenso e detalhado. Não pretendendo avaliar a legislação pelo peso, mas sim pela eficácia, e nem considerando o Capítulo sobre a Política Agrícola eficaz, então podemos pelo menos admitir que a vantagem de detalhar mais uma lei na própria Carta seria a de permitir que a aura de constitucionalidade a regesse de um modo simbolicamente mais universalizante. Portanto, como a Carta trata da desapropriação e da usucapião, ou seja, ações repreensivas sobre o uso disfuncional da propriedade urbana, deveria também tratar pelo menos da regularização e de uma política habitacional de acesso à moradia, como uma ação afirmativa. Ainda assim, o capítulo trouxe ganhos incontestes, que permitiram o embasamento de uma nova era na produção do espaço urbano.

Não podemos deixar de mencionar os termos do artigo 182, com a exigência do Plano Diretor, a instituição do princípio da função social da cidade e da

propriedade urbana e a criação de instrumentos específicos para o ordenamento do espaço pelo Poder Público, como o parcelamento ou a edificação compulsórios; o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; e a desapropriação com pagamento mediante a emissão de títulos da dívida pública. Por fim, o artigo 183 ainda estabeleceu o direito à concessão de uso para as áreas urbanas. Entretanto, foi nos trabalhos do Estatuto da Cidade que essa sociedade organizada se fez mesmo ouvir. E nesse sentido, como a comunicação nas cidades é bastante efetiva, o Estatuto da Cidade se mostrou uma peça exemplar para a visibilidade das ações de desenvolvimento social. Os parlamentares ligados ao tema da habitação representaram suas bases eleitorais, bem como procederam na interlocução das associações pró-moradia e ONG´s. Esse esforço culminou com a vinculação da garantia do direito de propriedade vinculado ao cumprimento da sua função social, com a integração do direito de moradia aos direitos sociais constitucionalmente assegurados e com o tratamento constitucional da política urbana nos artigos 182 e 183.

Hoje, após o firmamento da Carta Magna, já não está clara a dicotomia entre esquerda e direita, e a falência moral assola tanto as alas que gritavam contra a corrupção quanto àqueles que nunca negaram o fisiologismo como forma de atuação política. Os projetos sociais da esquerda, antes bastante objetivos na atenção social, se misturaram a um projeto de poder pragmático quanto aos conchavos necessários buscando alcançar maior governabilidade e para amealhar votos, e pouco autocríticos quanto aos meios para atingir seus objetivos. As práticas antes tão combatidas, agora são difundidas como justificáveis, simplesmente porque os personagens foram trocados, mas em essência parecem apenas transmutar paulatinamente — ou nem tanto — uns nos outros.

Nesse universo, ações positivas ainda firmam uma face da nossa cultura bastante adversa. A compensação social ainda é uma dádiva oferecida de cima para baixo, num benefício desassociado de qualquer contrapartida contributiva, de voluntarismo ou afirmação dos valores comunitários, a não ser quando submetidas ao partidarismo, não firmando nenhum juízo de valores senão a própria condição financeira, premiando assim também a inapetência individual, como se fosse essa uma única condição do meio. Por conta disso, firmam-se os padrões da cultura da terra em

paralelo aos padrões da cultura social, de que a solução para os males históricos que unem as condições sociais às espaciais deve ser resolvida exclusivamente com doações, sendo o Estado o agente doador, criando os mesmos elos historicamente consolidados: a dívida de gratidão política. Só que agora, potencializada por diversos mecanismos.

A tão almejada transferência de renda para a redução do Índice de Gini14

, ao invés de se firmar numa economia em cujos salários possuam real poder de compra, de modo a burlar os gastos públicos com as aposentadorias da Previdência, são suplementados com ―bolsas‖ variadas que firmam o veio benevolente do Estado. Para a classe média, essa estratégia keynesiana também se fez presente — se tornando também um elemento de marketing político — com o aumento do financiamento pessoal de modo a aumentar o nível de consumo, cujo foco econômico são os duráveis, porém, sem uma precaução com a poupança. O endividamento pessoal e público estão na base dos desequilíbrios como os juros altos, a moeda valorizada e um déficit nas contas externas. Essa benesse midiática tanto serve para garantir os altos índices de popularidade como fazem parecer irrelevantes o fisiologismo e a corrupção, tornando o projeto de poder de amplas bases políticas e assistencialistas de longo prazo — um neopopulismo.

Mas, não só pelo financiamento social se define esse neopopulismo, mas, em concomitância com o financiamento político e eleitoral, no qual se arregimenta boa parte das bases governistas — seja essa destinação de recursos oficial, através dos direcionamentos orçamentários, seja extra-oficial, através da corrupção ativa e da partilha do butim eleitoral — firmam-se também as bases de um novo clientelismo. Do ponto de vista político, as forças tradicionais de poder, antes associadas à direita, se transmutam em alianças cheias de nuances e nenhum aforismo, regidas por combinações as mais inusitadas; validas, porém, apenas para um momento eleitoral específico, e que acabam por financiar a manutenção das oligarquias no poder. A compra de votos parlamentares para a aprovação de um segundo mandato presidencial ou a compra de apoio contínuo por uma ―bolsa‖ mensal partidária ou individual são os

14 O Índice de Gini mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos segundo a renda

domiciliar per capita. Seu valor varia de 0, quando não há desigualdade (a renda de todos os indivíduos tem o mesmo valor), a 1, quando a desigualdade é máxima (apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e a renda de todos os outros indivíduos é nula.

aperfeiçoamentos que o fisiologismo sofreu de modo a garantir essa transmutação. Enquanto o Governo FHC trouxe a reboque o coronelismo baiano de Antônio Carlos Magalhães, o Governo Lula alinhou-se com os Sarney no Maranhão, e possibilitou a recolocação dos Collor de Mello no Alagoas e realiza uma aliança ao PMDB, partido de Orestes Quércia, de modo que a esquerda transmutada possa permanecer nas instâncias federais. A representação política, na tarefa de equacionar as disparidades de tantos agentes oblíquos convergindo para uma mesma base de sustentação, encena uma mensagem de conciliação, mas que na verdade apenas esvazia o conceito de governabilidade, que pode oscilar do financiamento para captar o apoio do PTB de Roberto Jefferson, no caso do primeiro mandato, à ação destrutiva e predatória da extrema esquerda; e a desmesura dessa ambigüidade, no limite em alguns casos e completamente fora da legalidade em outros, transforma a tarefa de presidir, que se constitui menos como um governo de coalizão e mais como um Poder Moderador.

A esquerda — antes a oposição histórica — toma para sim as coligações tradicionais da direita e assume o poder, deixando a novidade de um papel nunca encenando para uma nova oposição que, ante a mistura promíscua que se realiza no poder, não pode ser considerada menos de esquerda, mas que não se tornara menos de direita — sendo apenas um outro grupo. E esse grupo, só tendo vivido até então como protagonistas, não sabendo lidar com a nova condição de antagonistas, apenas pode se perguntar o que lhe resta. Hoje, sem o poder contestatório ou fiscalizador de uma oposição de fato — a oposição corrente, no novo papel, como mencionamos, em crise de identidade —, ante o silêncio dos intelectuais e a conivência dos mais veementes críticos da corrupção, do clientelismo, da ditadura, do populismo, essa nova combinação configura de fato uma estranheza ainda maior: a miscigenação política e ideológica que aproximou direita e esquerda; economicamente bastante produtiva, moralmente tão deteriorada e ambígua quanto a tradição política brasileira.

A diferença é que essa nova ordem quer fazer acreditar que os avanços econômicos e sociais justificam os métodos; contudo, uma visão histórica nos mostrará que, no longo prazo, são os métodos indefensáveis que deturpam e esvaziam os resultados. O maior anseio da redemocratização era, na verdade, uma transformação política. Essa que sim traria avanços sociais perenes, pois realinharia culturalmente a

sociedade num ideal de nação; essa ainda não houve. Até o momento, houve tão somente uma transformação econômica e uma emanação dos seus efeitos sociais; o que já serviu para a manutenção das estruturas de poder.

Entretanto, se o cenário político no qual se firmou a nova ordem constitucional a partir de 1988 ainda está contaminado, há nos fundamentos constitucionais novas bases que se firmaram sobre o foco social do debate nacional. Até tentativas frustradas e ineficientes, como o Programa Fome Zero demonstram uma nova focalização, em muito viabilizada pelo equilíbrio econômico e a estabilidade da moeda, que permitiram quantificar com mais precisão o tamanho e o custo dessa dívida social. E E o que há de mais inovador no seio dessa legislação é que os seus princípios permitem traçar um plano de ação de longo prazo e sugerem um processo contínuo de transformações das condições fáticas, embasado na consolidação dos direitos adquiridos e da consideração das reais necessidades da sociedade. Em que pese ainda parecer longo o processo de amadurecimento político a que as instituição precisam se submeter, já há perspectivas e material o suficiente para se trabalhar as transformações sociais necessárias; como veremos a seguir.

1.5. Considerações

A cultura da terra historicamente afirmada no Brasil consolidou uma situação bastante controversa do ponto de vista sócio-espacial. A urbanização das cidades, principalmente aquelas de médio e grande porte hoje, intensificou essa cultura e ainda promoveu um imenso processo de segregação espacial. A legislação a partir do final do Regime Militar vem buscando criar instrumentos e transformar paradigmas para a transformação do espaço. A questão da regularização está apenas engatinhando nesse histórico.

A regularização fundiária nas ocupações de baixa renda é a proteção do direito à moradia e é uma questão de justiça social, que estão entre os pressupostos para uma nova ordem legal urbana que se procura implantar, garantindo o direito a cidades sustentáveis, ao desenvolvimento urbano respeitando o meio ambiente, à gestão

democrática da cidade e a garantia do cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade.

Os instrumentos da política de regularização fundiária urbana, a CDRU, recontextualizada, as ZEIS e a CUEM, instituídas pelo Estatuto da Cidade, formam um compêndio que imprime versatilidade na análise das condições fáticas, oferecendo várias possibilidades para as diversas situações. Já a Usucapião Especial de Imóvel Urbano complementa esse instrumental com uma ação jurídica em rito processual sumário, que agiliza a transferência de propriedade, garantindo a efetivação do conceito de função social da propriedade. Apesar da diversificação e especialização do instrumental, ainda faz-se necessária a inclusão de uma legislação faça a correlação regularização-meio ambiente.

A revisão da Lei No

6.766/79 ainda se faz necessária. A legislação vigente já aborda diretamente a questão, mas ainda não dá conta de toda a sua diversidade e as revisões pretendidas não chegaram a consenso e nem surtiram o efeito necessário. A questão da regularização foi abordada na Lei No11.977/09, mas muito da discussão

produzida pelo Projeto de Lei No

3.057/00 foi abandonado e não há divulgação de nenhuma iniciativa de retomada do debate. Isso permite que esses processos sejam utilizados de modo paternalista, populista e clientelista, firmando a pior face da nossa tradição política.

Capítulo II

Classificação das irregularidades do parcelamento