• Nenhum resultado encontrado

Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas: origem alienígena

Evolução da Legislação e atuação do Poder Público

1.1. Evolução do sistema jurídico da questão da terra: das Ordenações à Lei de Terras – panorama histórico da propriedade

1.1.1. Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas: origem alienígena

O nosso regime de terras se deu através da ocupação em nome da Coroa Portuguesa, que, como num passe de mágica, transportou a propriedade do imenso continente para a minúscula península, ―para o alto senhorio do rei e para a jurisdição da Ordem de Cristo‖ (LIMA, 1954:11). Criada inicialmente como Ordo Militae Jesu Chisto no século XIV, pelo Papa João XXII, sob o reinado de D. Dinis, por sobre as bases da Ordem Templária, extinta por Clemente V, a Ordem de Cristo herdou daqueles a fortuna e a iniciativa, que muito serviram à Coroa Portuguesa na aventura ultramarina.

De fato, a história das expansões portuguesas está firmemente associada à força financiadora e especialização administrativa dos cavaleiros membros da Ordem. Tornou-se então a propriedade de um mundo de terras — incomensuráveis até os padrões de hoje — para Portugal, de maneira que deveria ser conservada, exercida e alienada, mas persistindo por condição de fato a posse a ser disputada com os nativos; o que foi feito a duras penas.

Conferida então ao senhorio português sob as leis portuguesas e suas instituições territoriais, foi do tronco das sesmarias que se ramificou a nossa concepção jurídica de propriedade imobiliária; entrelaçada, porém, com o regime de terras comunais do município medievo, desfrutadas ―uti singuli‖, ou seja, segundo o regime jurídico da assim chamada ―communalia‖. Este costume ditava que fossem as terras produtivas divididas segundo o número de munícipes e sorteadas para o cultivo, por tempo indeterminado, denominados ―sexmo‖ de modo a garantir a sua utilização para o plantio de alimentos e matérias-primas essenciais.

Desde o tempo de D. Afonso II (1185-1223), terceiro rei de Portugal e autor do primeiro conjunto de leis estabelecendo os princípios de direito civil e dando garantias à propriedade privada, já se realizava tal concessão. Similarmente, as Ordenações Filipinas — resultado da reforma do Código Manuelino, de 1521 —, sancionada por Felipe I (1527-1598) de Espanha e Rei de Portugal a partir de 1580, mas observada apenas no reinado de seu sucessor, Felipe II, também fazem menção desse modelo de ocupação de ―matos e maninhos‖ para o cultivo comunal.2

Rolnik (1997) acrescenta que, inspirado no modelo administrativo de cidades portuguesas e espanholas, o Código Afonsino, por sua vez, estabeleceu a representação popular através da eleição direta para vereadores. Além das demais cidades portuguesas, tal modelo foi incorporado ao processo de colonização além-mar, sendo introduzido em São Paulo em 1560. A linha de poder transitava da Coroa Portuguesa para o Governador Geral, para o donatário da capitania e daí para a Câmara

2 D. Afonso II (1432- Ř1438-1481), 3º rei de Portugal: Ordenações

Afonsinas, 1446; D. Manuel V (1469-Ř1495-1521) 10º rei de Portugal: Ordenações Manuelinas, 1521; Felipe II de Espanha (1527-Ř1556-1598) e I de Portugal (Ř1580), 14º rei português: Ordenações Filipinas, 1598.

Municipal, que efetivamente era o palco das principais definições com relação às questões urbanísticas.

No caso da Capitania de São Vicente, tal representação se fazia de modo ausente, possibilitando maior autonomia à Câmara dos Vereadores da Vila de São Paulo. Apesar de eleitos, os pleitos se davam apenas por e entre os chamados ―homens bons‖: indivíduos de posses, do sexo masculino, proprietários de terras e escravos. Tal modelo de sufrágio se perpetuou por séculos, transpondo o período das Capitanias como unidade administrativa, extintas pelo Marquês de Pombal em 1579.

Abrindo um parêntese temporal, vale ressaltar que a Constituição Imperial de 1824 deu mais autonomia às Câmaras Municipais, contudo suas resoluções deveriam ser subordinadas às assembléias provinciais. Por esse período, tanto os eleitores quanto os eleitos ainda se distinguiam do estrato de uma aristocracia de proprietários rurais, cuja ação foi regulamentada pela Lei de 1828; que além de traçar o funcionamento das câmaras, condicionava o candidato a ter domicilio na vila ou cidade por dois anos, mas mantinha a restrição quanto à obrigação de ter posses, o que perduraria até a República. A Constituição Republicana de 1891 transformou o modelo de escolha dos intendentes antes indicados pelo governo provincial para a eleição indireta pelos vereadores.

Até 1930, toda infra-estrutura era de responsabilidade das municipalidades, bem como a fiscalização das atividades econômicas e comerciais e pelo trânsito e transporte, todas e quaisquer atividades regulamentas pelo Código de Posturas. Além disso, ficava a critério do Código de Posturas a regulamentação do uso e ocupação do solo. Nesse período, denominado República Velha, os municípios possuíam autonomia administrativa, contudo eram dependentes do Governo do Estado, uma vez que não possuíam autonomia financeira; situação que só se alterou com a criação do IPTU na Constituição de 1932. Nessa ordem administrativa, a população não possuía representação nas decisões políticas e toda evolução urbana se dava à margem das necessidades da maioria, já que não havia representação social na formação das Câmaras. Tais condições principiaram depois da revolução de 30 e se explicitaram depois da redemocratização em 1945.

Voltando à questão originária, dois fatores, contudo, foram preponderantes na constituição da primeira lei de sesmaria.3

O primeiro foi a crise gerada pelo crescimento vegetativo da população portuguesa, que obrigou a tradição a ser tornada em lei, estendendo a sua aplicação a todas às terras de lavra, inclusive de nobres e da Igreja. Como desdobramento, a instituição comunal foi oficializada pela instituição régia, que por sua vez conduziu à concessão de domínio. Dessa maneira, possibilitou que: ―Os mesmos baldios e maninhos comunais, El Rei podia dá-los de sesmaria, pelo princípio genérico de que ‗proveito commum e geral he de todos haver na terra abastança de pão e dos outros frutos.‘‖ (LIMA, 1954:13)

O outro fator foi o instituto do colonato adscritício. Da prática régia de entregar a terra negligenciada pelos senhores e proprietários, e ―de fragmentos do instituto da adscrição‖, se conformou a Lei de D. Fernando I. Primordialmente, ditava tais fragmentos que, àqueles que possuíssem herdades, fossem obrigados a lavrá-las. Caberiam também aos proprietários que houvessem muitas ou em grandes extensões, que escolhessem a porção que mais lhe interessasse e arrendassem ou doassem as demais. Desse modo, todas deveriam ser produtivas, sendo assim pertinente que se estipulasse o tempo para começarem a cultivá-las, fossem por proprietários ou arrendatários, sob pena de multa ou desapropriação.

Interessante notar que o ditame ainda estabelecia que, quando transferidas compulsoriamente para semear por aqueles que para tanto se dispusessem, que o resultado econômico do arrendamento não fosse para os proprietários de tais herdades, mas sim reinvestido no próprio lugar para benefício comum. Essa noção de melhoria se firmou e atravessou todo o nosso histórico, sendo a base para alguns de nossos princípios legais atuais. De modo semelhante, estipulava que deveria ter para cada

3 Como nos esclarece ainda Lima (1954:15), o termo sesmaria não possui origem precisamente

definida. Seu ramo pode ter como raiz o termo sesma, uma medida de divisão de terras; ou de sesmo, que

indica a sexta parte. Poderia ser também do baixo latim, caesima, que significa corte ou porção. Compõem-se,

contudo, tais origens de modo a indicar que a instituição das sesmarias não se dava sem a divisão das terras incultas, mas coincide também o fato de que a renda cobrada consistia no montante da sexta parte da produção. Tal procedimento nem sempre era feito na sexta parte, mas do costume primevo difundiu-se a denominação, mesmo transformada a sua essência. Outra possibilidade, porém, seria o resultado da mútua tradução do latim para o gótico e, depois novamente para o latim, transformando o termo servir em sesmarius.

A evolução etimológica do seu significado, seja por confluência ou mutação a partir de um único radical, é de difícil determinação; mas o seu uso corrente e a ampla gama de possibilidades a que sua significância se submete pode aludir filologicamente a muitos dos âmbitos que a intenção das ordenações régias sobre a propriedade e a produção contemplam: a partição, a cobrança ou serventia. E deste modo, bem provável é que fossem mesmo sobre as três.

herdade ao menos dois homens bons de lavras a cultivá-las. Foi então que a ingerência real compôs a combinação de propriedade e uso, sentenciando àqueles que se recusassem em definitivo a cultivar suas herdades que fossem desapropriados em definitivo e tais propriedades fossem doadas às comunas; e determinando ―a vinculação hereditária do lavrador, não ao solo diretamente, mas à arte da lavoura, que a tanto o obriga‖.

(LIMA, 1954:14) Além dos lavradores, viam-se obrigados ao cultivo rural os vadios, mendigos e ociosos.

Contudo, deve-se admitir que a lei de sesmarias não foi executada como deveria; equilibradamente sobre as três intenções ou efetivamente sobre uma. Em primeira instância, considerou-se que o problema fosse relacionado à produtividade da população agrária, de tal modo que se procurou estabelecer a lei sem constranger a liberdade pessoal, mas apenas questionando os domínios da propriedade rural. Em segunda instância, o problema da desproporção entre a produção e o crescimento vegetativo da população se transfigurou para o abandono sistemático das propriedades, devido ao horizonte expandido das conquistas e navegações, que dispersaram a exígua população portuguesa pelos diversos continentes. Enquanto o reino enriquecia, as guerras, as viagens e a ocupação populacional de vários territórios escasseavam a população residente.

Quando das ordenações Manuelinas, já zarpava a colonização das Américas; e quando das Ordenações Filipinas já se ia a altas velas a ocupação do território brasileiro pelos homens — não as mulheres — da coroa. A descoberta das Américas transfere a propriedade de vasta porção territorial do mundo para um país exíguo, com forte impacto social e demográfico, e também produz, sobre esse, larga influência na cultura territorial do reino. Não só pela falta de braços, mas pela falta de proprietários também, pois todos os capitais fluíam para as aventuras e faltavam para o pão; mais lucrativas as primeiras. Não confere, porém, que haja tido grande transformação na legislação no período de 80 anos entre as Ordenações Manuelinas e Filipinas, e as últimas marcam o término evolutivo da instituição das sesmarias em Portugal.

Tanto nas Ordenações Manuelinas, como nas Filipinas, a definição de sesmarias é a seguinte: — ‗Sesmarias são propriamente as dadas de terras, casaes, ou pardieiros, que foram, ou são de alguns Senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são‘

Nesta definição, claramente se mostra a evolução do instituto, no sentido das novas bases do problema agrário. Visa-se principalmente repovoar.

(LIMA, 1954:21)

No entanto, ineficaz e desvanecido em Portugal, anacrônico como a escravidão, o instituto das sesmarias foi a solução ressuscitada para colonização brasileira.