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As redes e a prevalência da perspectiva mercadológica sobre a de serviço de utilidade

Para além das profundas transformações que a base informática trouxe para as atividades produtivas e qualificação requerida à força de trabalho, a passagem do princípio eletromecânico para o da microeletrônica resultou em equipamentos digitais de comutação que modificaram o papel e o perfil operacional das empresas de telecomunicações como também a feição de seu consumo. A comutação digital permitiu transformar um simples telefone em um verdadeiro aparelho multimídia, aumentando significativamente o arsenal de serviços oferecidos pelas empresas de telecomunicações. Esta multifuncionalidade que a digitalização proporciona à telefonia aumenta tanto mais quando esta se associa com os modem dos microcomputadores, convertendo-a em Internet e Intranet. É por aí que transitam, desde as informações estratégicas, administrativas e burocráticas das grandes corporações, tanto internas como entre suas coligadas

e contratadas, até o atendimento e entretenimento do mercado (nada desprezível) de consumidores individuais.

As mudanças estruturais ocorridas nas empresas de teles, assim como aquelas decorrentes da ampliação e transformação da natureza de seus serviços e na forma de oferecê- los, advém da lógica mercantil que insurgiu no setor de telecomunicações depois das privatizações. Como verifica Larangeira (1998, p. 166), com as privatizações, o produto final das empresas de teles, a comunicação, deixa de ser um bem público e "torna-se mercadoria". Sendo assim, seu público-alvo passa a ser, primordialmente, a "comunidade de negócios internacionais e seus lucros devem satisfazer aos investidores, preocupados com o desempenho financeiro da empresa". Nas palavras de Larangeira, (1998, pp. 160-161):

Com a digitalização, computadores substituem as centrais de comutação e os

softwares substituem os hardwares como fonte de mudanças, possibilitando a

ampliação e diversificação do espectro de serviços oferecidos, sem a substituição de máquinas. [...] Por outro lado, as possibilidades por ela criadas impõem transformações na própria filosofia do setor de telecomunicações, que passa de uma concepção do serviço como de utilidade pública, para outra, estritamente comercial, associada ao processo de globalização44.

Prevalece, assim, a dimensão privada, quer dizer, o mercado, em prejuízo da dimensão pública do consumo de serviços de telecomunicações. Em outras palavras, delineia-se um novo perfil de empresa de telecomunicações, com vistas ao mercado, em que os chamados clientes corporativos preponderam sobre o usuário doméstico. Esta última fica relegada a segundo plano, no que concerne ao usufruto dos serviços dotados de valor adicionado, isto é, aqueles proporcionados pela digitalização da infra-estrutura de telecomunicações45.

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Processo aqui chamado de mundialização do capital, conforme conceituado no Capítulo I. 45

Este fato ficou bastante patente nos dados apresentados em um relatório conjunto realizado pela UNTACD (Conferência das Nações para o Comércio e o Desenvolvimento) e ITU (União Internacional das Telecomunicações). Neste, o Brasil fica em 11º lugar em "número de usuários da rede", o que significa um contingente de "14,3 milhões de internautas". No entanto, quando se considera, "não os números absolutos, mas o acesso digital, o país cai para a 65ª colocação", ficando atrás da "Jamaica, Argentina, Uruguai e Chile". O "acesso digital" foi avaliado a partir de diversas variáveis, tais como: "infra-estrutura, preço, nível de instrução, qualidade e número de usuários". De todas essas variáveis, a que mais prejudica a popularização da rede no país são os altos custos em telefonia e, logo, nos serviços de acesso à rede. Ao que tudo indica, "a rede imita a vida" por aqui. Apesar de o Brasil ter seguido à risca a lição de casa prescrita pela cartilha neoliberal no que se refere ao setor de telecomunicações. Com as privatizações, ter deixado o terreno devidamente preparado para garantir sua inserção na economia mundial através da

Esta perspectiva mercadológica – ou, na expressão utilizada pela administração de empresas, este "foco na satisfação dos clientes" – ficou bastante premente na empresa estudada. Inclusive, essa foi a primeira preocupação da administração da Sercomtel quando do início de sua reestruturação produtiva. Tanto que foi criado um módulo especialmente para se infundir esta nova visão de empresa entre seus funcionários, com vistas a preparar o terreno para as mudanças organizacionais e tecnológicas que estavam por vir. Denominado pela empresa de "aculturamento", este projeto teve como principal objetivo romper com a perspectiva paternalista que predominava nos seus quadros. Para a diretoria da época, o paternalismo, que se encontrava tão arraigado naquela empresa, era fruto de uma concepção tradicional de empresa pública, que além de propugnar estabilidade aos seus empregados, era estruturada de uma maneira extremamente hierarquizada.

Posto que, nos últimos dez anos, a despeito da drástica redução de seu pessoal, grande parte dos quadros da Sercomtel permanece o mesmo, até hoje a cultura paternalista ainda é a grande preocupação da área de gestão de pessoas. No entender da gerência de pessoal, a estabilidade inspirava um sentimento de segurança entre os empregados, que guarda reminiscência. Este sentimento gerava e, embora mais ameno, ainda gera:

[...] uma cultura de acomodação, sem medos, parecida com a cultura das empresas públicas, que é uma cultura bastante acomodada, muito paternalista, onde os funcionários acham que devem receber muito e dar, no entanto, muito pouco. (GESTOR DE PESSOAS)

Por outro lado, a excessiva hierarquia instaurava um ambiente extremamente escalonado, inerte e de favoritismo, em que a comunicação entre gerência e operários era uma prerrogativa, não um hábito. Ou seja, um ambiente completamente adverso ao florescimento da criatividade operária e, logo, a inovações; exatamente as duas qualidades mais fundamentais atualmente para as empresas manterem-se no mercado. Conforme depoimento dado por um dos mais antigos operadores de comutação, ainda em atividade, da Sercomtel, o "aculturamento" e as mudanças organizacionais que vieram na sua esteira:

modernização de suas plantas. No que concerne à distribuição da rede, reproduz-se a situação de extrema desigualdade que o Brasil já sofre com relação à distribuição de renda. (FOLHA DE S. PAULO, 23/11/2003, p. A2)

[...] quebrou um pouco daquela estrutura de quem mandava na empresa, então abriu outros canais de comunicação, então tem aquelas reivindicações e tal, você poderia estar conversando de repente com outras pessoas pra te dar alguma abertura maior porque aqueles gerentes antigos só olhavam 3 ou 4, então eles eram os medalhões da empresa e eles sempre tinham aquelas pessoas de confiança, então eles só olhavam aqueles 2 ou 3 de que cada um confiava e tudo que era decidido na empresa ficava restrito aquele grupo e aquelas 2 ou 3 pessoas de confiança, então eu acho que essas mudanças foram positivas

(FUNCIONÁRIO DE COMUTAÇÃO).

Para a empresa, urgia, pois, erradicar a mentalidade paternalista nela existente e introjetar, de forma geral e totalizante, a representação do mercado na percepção do seu pessoal, sob pena de tornar-se inoperante e estagnada frente aos novos delineamentos do setor de telecomunicações pós-privatização. Conforme será analisado nos próximos capítulos46, tal empreendimento surtiu um efeito eficaz e duradouro, como podemos notar nos depoimentos abaixo – realizados dez anos depois do referido "aculturamento":

Esse processo47 encontrou barreiras porque várias pessoas se mostraram bastante radicais a mudanças, sobretudo numa empresa pública que já tinha uma história de sucesso. Em contrapartida [a administração] tinha a consciência de que nenhum sucesso do passado garante o do presente. Dessa forma, a Sercomtel, apesar de ser ainda pública, é administrada como se fosse privada, preparada para mudanças. A partir daí começou-se a falar em lucratividade [...] Antes a mentalidade era de empresa pública voltada para a prestação de serviço com qualidade, sempre na vanguarda. Porém o lado lucrativo era um pouco desprezado, já que se trata de empresa pública. Hoje, o lucro é evidente [...] O objetivo anterior da empresa era prestar serviço de qualidade e de ponta, hoje é gerar lucro [...] O objetivo de prestar serviço de qualidade continua sendo uma meta da empresa, mas acrescentamos a busca do lucro. (EX-GESTOR E ATUAL CONSULTOR DA QUALIDADE TOTAL DA

SERCOMTEL)

Até 1998, que foi quando ocorreram as privatizações, o que acontecia, só existia uma empresa, o monopólio e as grandes demandas em termos de tempo eram: "vai abrir uma central telefônica", eram mais da parte técnica, a parte de engenharia. Então, o foco era a engenharia, não era clientes, não era a empresa

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Saliente-se que o enredo desse processo será objeto de análise específica do capítulo subseqüente. 47

O processo a que o entrevistado se refere diz respeito ao processo de implementação dos Programas de Qualidade Total, que marcaram o início da reestruturação produtiva da Sercomtel e cujo carro-chefe foi o citado projeto de "aculturamento".

estar preocupada com clientes48. Com a entrada de novas empresas, e com a abertura do mercado, os clientes passaram a ser muito cobiçados, então o foco agora é a prestação de serviços diferenciados. O cliente da Sercomtel quer ir para Santa Catarina e não pagar deslocamento, que é que a Sercomtel vai fazer? Um plano onde a cada três telefonemas para lá, o cliente recebe um desconto. (GESTOR DA ÁREA DE TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO – TI, DA

SERCOMTEL)

Portanto, para que a produtividade das empresas de teles possa orientar-se cada vez mais para a lucratividade, é necessário cultivar o consumidor – ou, nas palavras do gestor de TI, "para a prestação de serviços diferenciados" – o que implica em incessantes inovações nos seus processos produtivos. Daí sua conformação em empresa-rede ser imprescindível, já que as redes otimizam excepcionalmente o feedback das informações relativas às variações de consumo. Igualmente, permite efetuar mais rapidamente as contínuas alterações que se fazem necessárias promover em seus processos para suprir um mercado tão variável.

Além de propulsar a otimização do processo produtivo desenvolvido no interior da empresa, o modelo-rede serve também ao atendimento dos grandes clientes corporativos, e às suas próprias relações inter-empresas, isto é, com seus fornecedores, terceirizadas, e mesmo pequenos e médios consumidores. Como explica um teórico representativo da chamada ciência da administração, a estrutura em rede, sobretudo quando em aliança com a telemática, favorece sobremaneira a "administração estratégica da informação" dentro das empresas. Até a pouco tempo desprezada por estas, a informação hoje é decisiva para assegurar sua competitividade, tornando urgente fundamentar um tipo de gestão que tenha como finalidade específica a "utilização da informação para fins estratégicos, visando à obtenção da vantagem competitiva" (LESCA & ALMEIDA, 1994, p. 67).

A instalação das redes telemáticas otimizam os diversos fluxos de informação das empresas e garantem a eficácia de seu funcionamento ao permitir integração metódica entre

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Por foco nos clientes podemos entender foco no mercado e no lucro, uma vez que melhorias na área de engenharia são sempre realizadas em prol dos consumidores e, como tal, obviamente acarreta satisfação; tanto mais se puderem ser consumidas como um benefício público, ou seja, sem tem de se pagar a mais por isso.

as chamadas "informações de atividades"49 – voltadas para o funcionamento e encadeamento dos processos da empresa – as "informações de convívio", responsáveis pelo enquadramento dos comportamentos e relações de trabalho de seu pessoal em prol do bom resultado desses processos em sua totalidade (LESCA & ALMEIDA, 1994, p.72). Ademais, as conexões telemáticas

também servem como um poderoso "fator de sinergia" ao facilitarem as relações externas das empresas, isto é, com seus clientes e, principalmente, fornecedores tecnológicos e de equipamentos – cujas matrizes, no caso das telecomunicações, são transnacionais – bem como para a formação de alianças estratégicas, parcerias e consórcios.

Cada vez mais as empresas de teles tendem a constituir-se em holdings na tentativa de ampliarem suas oportunidades no mercado, minimizarem suas incertezas e protegerem-se dos riscos provenientes dos altos custos com inovação. Essa realidade é tanto mais categórica na Sercomtel, como vimos, uma empresa que, por ser local, tem um mercado extremamente reduzido em relação às transnacionais que tomaram conta do setor no país. Como nos esclarece um funcionário do "Comitê de Gestão Empresarial":

O mercado hoje está muito competitivo, as margens de lucro que as empresas estão tendo são ínfimas, quando não negativas, e o que a gente vê é que as empresas de teles só vão sobreviver nesse cenário se elas aumentarem sua carteira de clientes. Como faço para aumentar minha carteira de clientes se meu mercado já está quase todo atendido? É comprando outras empresas. É por isso que acontecem as fusões e outras aquisições. Isso já aconteceu no setor financeiro, com os Bancos, e isso já está acontecendo, e acredito que vai se intensificar, com as telecomunicações. Se você fazer um investimento para desenvolver um sistema de informática, de gestão de pessoas ou criar grupos de trabalho, o que você gasta para se fazer em uma empresa que tem 150 mil clientes, as outras grandes empresas gastam para atender milhões. Então é uma questão de escala, por isso que a tendência é mesmo estar caminhando para as grandes fusões, onde você tem grandes e poucas empresas.

As redes potencializam ainda, em alto grau, a capacidade de previsão das empresas, pois permitem que valiosas informações referentes às inovações e variações dos mercados de consumo e financeiro, cheguem às suas matrizes praticamente em tempo real. A

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Designadas como aquelas que incorporam "todo tipo de informação necessária para iniciar, realizar e controlar as operações relacionadas ao funcionamento da empresa: processamento do pedido do cliente, ordem de fabricação, fatura, contabilidade etc.", as "informações de atividade" são aquelas entendidas como "fator de produção" (LESCA & ALMEIDA, 1994, p. 72).

informação, assim otimizada, contribui para elaboração de um planejamento estratégico seguro, pois possibilita "reduzir a incerteza na tomada de decisão" (LESCA & ALMEIDA, 1994, p.67). No que se refere às empresas de teles, e à especificidade da Sercomtel nesse contexto, o funcionário em questão novamente nos explica:

Bom, a gente tem um ambiente muito dinâmico, né? Cada vez mais dinâmico. O que precisamos é ter pessoas voltadas às informações que temos nesses ambientes: sejam informações de governo, finanças, campo econômico, sejam no campo tecnológico (a respeito do surgimento de novas tecnologias ou aplicações de novas tecnologias), de fornecedores, dos nossos concorrentes,

informações estratégicas. Sem dúvida, a estrutura de redes possibilitada pela

informática é fundamental para que a empresa possa obter essas informações, de forma rápida e ordenada.

As redes telemáticas, portanto, potencializam uma devida "administração estratégica da informação" nas empresas por aprimorarem sua capacidade de "apoio à decisão", bem como de realizar-se como "fator de produção" e "fator de sinergia" (LESCA & ALMEIDA,

1994, p.67). Sendo assim, passaram a ser um componente fundamental da reestruturação que as empresas tiveram de realizar para se garantirem diante de um mercado privatizado. Posto que as privatizações levaram as empresas de teles a se orientarem para o mercado, objetivando lucro. Também nestas, a plena realização da lógica das redes tornou-se essencial. Tanto para efetuar a conexão dos novos e diversos mercados que estão se abrindo – uma vez que conferem e otimizam a mobilidade do capital por intermédio das suas teias – como para a otimização de seu processo produtivo nos moldes determinados pela mundialização e acumulação flexível do capital.

3. A influência do modelo rede sobre a atual reestruturação das empresas de