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A privatização das telecomunicações como expressão de uma nova hierarquia político-

Além de preconizar uma dinâmica de acumulação claramente privada, é possível notar que a desestatização do setor de telecomunicações está relacionada, igualmente e de forma vinculativa, com aquilo que Hills (1997) aponta como o objetivo maior do projeto neoliberal: restituir aos EUA a posição de país hegemônico no cenário político e econômico mundial. Hegemonia que se abalou junto com as crises políticas que levaram à derrubada do modelo econômico embasado no welfare-state. Como se sabe, a conjugação do welfare-state com uma política internacional que os transformou nos grandes financiadores da reconstrução dos países envolvidos na Segunda Grande Guerra – representados pelo Plano Marshall e o acordo de Bretton Woods – levou a ascensão dos EUA à maior potência econômica mundial em meados do século passado (Cf. HARVEY, 1992; HELOANI, 2003).

Durante os mais de trinta anos que os EUA desfrutaram dessa condição, desenhou-se uma estrutura econômica internacional na qual sua economia era determinante na regulação econômica dos países periféricos; sobretudo da América Latina. Essa situação aprofundou sobremaneira o grau de dependência desses países com relação aos Estados Unidos, conferindo a este último um tipo de "poder estrutural" nas relações internacionais. Isto é, "baseado em uma dominação sobre a distribuição de recursos e no poder de estabelecer uma agenda e determinar os parâmetros do discurso internacional" (HILLS, 1997, p. 16).

Essa forma de poder era amplamente respaldada pela intervenção estatal dos países dependentes, o que, de uma certa maneira, respeitava sua soberania nacional ao conceder aos governos algum poder de decisão sobre suas instituições. De acordo com Hills, (1997, p. 21), com a procedência do neoliberalismo, o "poder estrutural" estadunidense aprofunda-se e as relações internacionais entre os EUA e os países da periferia assentaram-se desde uma "interdependência assimétrica" em detrimento de uma dependência subordinada.

A assimetria é fundada sobre a conformação de uma relação hierárquica entre os países ricos e pobres através da centralização do controle político-econômico em Washington. Esse domínio é exercido por meio de instituições financeiras que negociam com as várias nações, sempre de acordo com as regras ditadas por Washington, sua forma de participação no mercado mundial, bem como a maneira pela qual suas economias têm de se reestruturar para continuar garantindo os investimentos externos.

Esses investimentos são fundamentais para a inserção destes países no mercado mundializado, pois são eles que afiançam a manutenção do padrão tecnológico necessário para torná-los competitivos e, assim, atraentes ao grande capital transnacional. Considerando que agora é mediante este capital que se dá o desenvolvimento econômico e social dos países industrialmente atrasados – como ficará bastante claro na discussão de Bernardo (2000) não lhes resta outra opção a não ser aceitarem fazer a reestruturação de suas economias segundo as determinações destas instituições.

Tal reestruturação freqüentemente requer uma desvalorização monetária, uma indústria e/ou agricultura orientada(s) para exportação, cortes nos gastos públicos em educação, saúde etc., e uma subordinação geral às exigências de retomada do pagamento da dívida externa. (HILLS, 1997, p. 20)

Nesse quadro, a preocupação já não gira mais em torno da questão da distribuição de recursos, mas sim da subjugação dos países subdesenvolvidos à uma reestruturação econômica cujas diretrizes deliberam "não para satisfazerem as necessidades de seu povo, mas para atenderem às necessidades dos que regulam a economia internacional" (HILLS, 1997, p. 20). No caso, os próprios EUA e as instituições multilaterais a eles vinculadas:

FMI, BID, Banco Mundial etc. Com isso, e com a assinalada ênfase na inovação que marca a produção e economia mundial contemporâneas, o capital passa a produzir cada vez mais para seu próprio consumo, apostando, de resto, na famosa fórmula schumpteriana de destruição produtiva, cuja máxima é o primado do descartável, para poder se reproduzir. (CF. MÉSZÁROS, 1996) Por conta disto que no espaço das políticas de investimentos externos, do centro com relação à periferia:

[...] os incentivos são para que os países em desenvolvimento possam competir e não estabelecer uma mútua cooperação. [...] Sob a pressão dos Estados Unidos o investimento direto estrangeiro pode tornar-se uma prerrogativa de qualquer companhia, em termos equivalentes aos que se aplicam às companhias nacionais. [...] Com tais procedimentos, é claro, reforçar-se-ia o poder das multinacionais em detrimento das companhias nacionais desses países. (HILLS, 1997, p. 24)

Essas reflexões vêm ao encontro das ilações de Bernardo (2000) sobre o profundo nexo existente entre o movimento de transnacionalização do capital e o das privatizações das estatais de serviços públicos. No entender deste autor, o capital transnacional não poderia atuar plenamente, principalmente naquele aspecto atual que mais o traduz – qual seja, a ênfase no capital financeiro – sem uma devida extrapolação dos limites do "Estado Restrito" para o "Estado Amplo". O "Estado Restrito" é aquele que se reduz às normas do aparelho estatal, isto é, que se circunscreve nas raias dos poderes executivo, legislativo e judiciário; em contraposição ao "Estado Amplo" definido como o campo de ação por excelência das grandes empresas. Ou seja, o "Estado Amplo" é aquele que organiza as "infra-estruturas materiais e sociais" de que as empresas necessitam para operar em um dado espaço nacional.

Conforme Bernardo (2000, pp. 12-13), o Estado capitalista constitui-se através de uma combinação entre as demandas do "Estado Restrito", que contempla os interesses sociais da coletividade em que está ancorado e as do "Estado Amplo", que visa a criar um ambiente econômico propício para a implementação das grandes empresas. Claro que, dentro dos padrões capitalistas de desenvolvimento, existe uma estreita interdependência entre ambos, uma vez que o desenvolvimento de um tem relação direta com o outro. Ou seja, para aquecer suas economias, bem como para não alargar ainda mais seu descompasso tecnológico e competitivo em relação aos países avançados, os países subdesenvolvidos precisam do dinheiro que as grandes empresas trazem, tanto quanto estas empresas precisam explorar seus mercados de consumo, trabalho e matérias-primas para medrar sua riqueza. Contudo, isto não quer dizer que exista um equilíbrio harmônico nessa relação. Antes, esta se dá mediante um jogo de forças e interesses que sempre pende para a prevalência de um em detrimento de outro.

Ao longo de sua história, os Estados capitalistas foram palco de vários embates nesse sentido. Até o welfare-state, o "Estado Restrito" prevaleceu sobre o "Estado Amplo", situação em que as grandes companhias tinham de submeter-se às "condições gerais de produção" determinadas pelos governos nacionais. Era através dos encargos públicos que estas condições eram criadas, inclusive aquelas relativas à qualificação da força de trabalho. Assim, ficava a cargo do "Estado Restrito" promover o desenvolvimento social e econômico nos moldes capitalistas, o que significa, entre outras coisas, diligenciar a criação e a administração da infra- estrutura produtiva necessária para alojar as grandes empresas. Conforme Bernardo, com a reestruturação econômica assistida pelo neoliberalismo, essa situação se inverteu o que significa, antes de mais nada, que as empresas privadas voltaram a conquistar grande autonomia diante das esferas nacionais, inclusive no tocante à produção e gestão das tais "condições gerais de produção" dos países ditos tecnologicamente atrasados.

Sendo assim, as transações econômicas e, conseqüentemente, políticas que preponderam no ambiente global, passam a ser definidas pelas transnacionais – cujas principais matrizes, via de regra, são originárias dos EUA – fazendo predominar uma visão eminentemente mercadológica dos serviços públicos. É assim que estes passam a ser entendidos como um meio de angariar investimentos estrangeiros e não mais como um recurso de desenvolvimento do bem-estar social das nações. Em outras palavras: os serviços públicos deixam de ser percebidos como portadores de desenvolvimento social/nacional – isto é, como promotores de melhoria da

qualidade de vida da população – para figurarem meramente como um instrumento de desenvolvimento econômico. Obviamente, que esse desenvolvimento é para a economia das grandes empresas e de seus países de origem. Por isso que, segundo as acepções neoliberais, as grandes companhias privadas são as verdadeiras portadoras do desenvolvimento social, porquanto aquecem o comércio, e trazem emprego e novas tecnologias nas localidades onde se instalam11.

Compreende-se, assim, as privatizações:

Trata-se da passagem de grandes empresas, por vezes de setores econômicos inteiros, do âmbito do Estado Restrito, onde a internacionalização é mais difícil de prosseguir, para o âmbito do Estado Amplo, que está já fundamentalmente transnacionalizado. Se as empresas permanecessem diretamente dependentes do Estado Restrito, sem se associarem com o capital transnacional, ficariam excluídas do acesso às inovações tecnológicas e estariam, por conseguinte, condenadas ao declínio e à inoperância. Na época da transnacionalização, a adoção da tecnologia mais avançada não pode se realizar em quadros nacionais. (BERNARDO, 2000, p. 44).

Daí a tendência das empresas privadas em agregar, cada vez mais, serviços até então reservados à esfera pública, levando-as a estabelecer não só um novo tipo de relação com o mercado, mas igualmente impingindo-lhes o estatuto de uma instituição interventora das sociedades onde aportam. Nesse contexto, os governos, devidamente comutados em um facilitador dessa nova ordem, funcionam como meros gerenciadores do processo de transnacionalização e, logo, de mundialização do capital. De acordo com o discurso neoliberal, essa mudança no perfil das empresas privadas viria a preencher a lacuna deixada pelo desmantelamento do Estado do Bem-Estar Social (Cf. ANTUNES et alii, 2002; TEIXEIRA et alii, 1996).

Como vimos, potencializado pelo uso das novas TICs, e diferenciando-se do antigo modelo centro-periferia vigente sob o fordismo, o modelo de rede configura a estrutura organizacional ideal para assegurar e fixar este novo papel interventor das empresas nas políticas

11

Conforme ficará muito evidente no momento da análise empírica da empresa selecionada, as novas tecnologias aumentam grandemente o desemprego, posto que são altamente substitutivas do trabalho humano. Ou seja, o que se verifica é que, na verdade, este quadro faz crescer tão-somente os lucros das empresas.

nacionais. Com efeito, os processos relativos às políticas públicas tais como educação, saúde, previdência etc., passam, cada vez mais, pela organização de uma rede privada de empresas auto-sustentáveis e auto-gerenciáveis em detrimento da soberania dos governos nacionais. Para essas empresas este é, além disso, mais um meio poderoso de aumentar seus lucros, posto que amplia, em grande medida, seu leque de negócios. Um processo que, no limite, leva a uma diluição das barreiras entre as funções públicas e as privadas, tal como se assiste hoje, sobretudo nos países que participam do processo de mundialização em uma condição subordinada, como é o caso do Brasil12.