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1 “Valor de marca” para quem?

3 A “teoria” da significação na segunda filosofia de Ludwig Wittgenstein

3.3 As regras do jogo: limites de um relativismo gramatical

Todos os aspectos que temos discutido até o momento apontam para uma visão relativista do significado, alguém pode dizer. É verdade, a visão de Wittgenstein sobre o significado é relativista. Ela se baseia na noção de que a linguagem seja autônoma, ou seja, de que as regras lingüísticas são arbitrárias (IF §372), não levam consigo a essência de algo, não sendo passíveis de serem julgadas como corretas ou incorretas a priori (IF §56).

A base disto está em sua concepção de gramática. Como chegamos a antecipar, Wittgenstein sugere que exista uma gramática profunda, para além daquela normativa que rege cada língua, e que ele chama de “superficial”. Esta gramática a que ele se refere encontra-se imbricada nos jogos de linguagem, ou seja, não se trata de uma gramática geral, mas de uma visão geral de gramática relativa a cada jogo de linguagem em que a mesma venha a ser utilizada.

Evidentemente Wittgenstein não se preocupa em elaborar um conceito de gramática, mas sua articulação nos leva a compreendê-la pela noção de uso. A gramática “correta” de um signo refere-se ao significado a este atribuído em seu uso.

“(...) No uso de uma palavra, o que se fixa em nós, imediatamente, é o modo de sua aplicação na construção da frase, a partir de seu uso-poder-se-ia dizer-que se pode apreender com o ouvido. (...)” (IF §664). [Grifos do autor]

É neste aspecto que voltamos à questão da regra nos jogos de linguagem. Aliás, sequer seria possível compreender o que Wittgenstein tem em mente com gramática sem entender sua noção de regra. Apesar do relativismo a que me referi, longe de sugerir um caos, o filósofo prevê que se sigam regras para o uso da linguagem, pois, ainda que o significado seja advindo de cada forma de vida, precisa fazer sentido dentro de cada uma delas. Isto quer dizer que as regras gramaticais encontram-se justamente delimitadas em e definidas por cada forma de vida.

Para que esta noção seja mais bem compreendida, precisamos assumir como regra uma prática social. São os hábitos, costumes, instituições de uma dada comunidade que determinam a regra a ser seguida pelos seus integrantes. Não se tratam de regras formais, mas tácitas; regras constituídas histórica e intersubjetivamente.

“Por isso, ‘seguir a regra’ é uma prática. E acreditar seguir a regra não é: seguir a regra. E por isso não se pode seguir a regra ‘privatim’, porque, do contrário, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra” (IF §202). [Grifo do autor]

Com a noção de regra Wittgenstein assume que, apesar de autônoma e arbitrária, a linguagem seja coagida por princípios. Não princípios gerais, universais, mas localizados, contextuais. Isto quer dizer que quando falamos de relativismo em sua filosofia, não estamos lidando com um relativismo do tipo “vale-tudo”. Trata-se, outrossim, de uma noção cultural de relativismo. Uma vez que as regras de uso de uma linguagem encontram-se imersas em uma dada cultura, serão aos seus constrangimentos que ela estará submetida.

Assim, o filósofo aponta para um relativismo delimitado justamente aos contextos de uso da linguagem, ou seja, de uma dada forma de vida. Nelas, existe uma dependência de como um falante se utiliza das combinações das palavras – e também de sinais prosódicos, de atividades proxêmicas etc. –, como explica o que quer dizer e quais sejam as reações de seu interlocutor.

Portanto, apesar de não podermos falar da corretude ou da incorretude absoluta da significação sob uma perspectiva universal, podemos deduzir que esta tenha uma própria razão dentro de cada jogo de linguagem. Desta forma, por exemplo, um discurso científico não pode ser considerado mais correto ou superior ao de uma crença religiosa qualquer, pois a racionalidade de cada um encontra-se interno a cada contexto38.

Esta abordagem aponta para a noção de visão sinóptica39. Para Wittgenstein, uma das razões por que não dominamos as regras de nossa linguagem seja o fato de faltar à nossa gramática uma disposição clara. A compreensão carece de uma visão sinóptica que consiste em se “ver conexões” (IF §122).

Mas, do contrário, também não estamos falando de ordem num sentido restrito. Se for possível termos alguma expectativa acerca de algum tipo de “organização”, então o máximo que podemos esperar das regras é que elas sigam a gramática, o que já as colocariam, ou melhor, as manteriam, numa situação de ambivalência.

“Queremos construir uma ordem do nosso conhecimento do uso da linguagem: uma ordem para uma finalidade determinada; uma das muitas ordens possíveis; não a ordem. Para esta finalidade, iremos sempre de novo realçar diferenciações que as nossas formas habituais de linguagem facilmente deixam passar” (IF §241). [Grifos do autor]

É da forma como Wittgenstein define a gramática e as regras de uso da linguagem que podemos deduzir sua visão funcionalista. O pressuposto aqui é justamente de que não seja apenas, ou, mais precisamente, que não seja necessariamente se baseando em regras gerais que possamos combinar palavras para gerar sentido. Do contrário, estas regras só advêm da forma como elas são usadas para tal.

38

Comparação desta natureza é feita por Pinto (1999). 39

Uso o termo “visão sinóptica” aqui com base em Glock (1998), que considera a melhor forma de expressar tal conceito de Wittgenstein, em detrimento de diferentes traduções que o denominou de “visão geral” ou “visão global” (ou ainda “visão panorâmica” ou “visão de conjunto”, conforme as edições brasileiras das Investigações