• Nenhum resultado encontrado

1 “Valor de marca” para quem?

2 Para uma crítica à crítica da economia política do signo

2.3 Dois mundos ou bidimensionalidade mundana?

Habermas (2002) propõe, em sua teoria social, uma dialética entre dois grandes mundos: o do sistema e o da vida. O mundo do sistema pode ser considerado o mundo formal,

das regras, normas e leis constituídas, das ações planejadas etc., ou seja, um mundo criado pelo próprio homem, visando seu êxito como ser supremo e ao seu domínio sobre a natureza. Em contrapartida, existe o mundo da vida, que é o lugar das relações sociais espontâneas, das certezas pré-reflexivas, dos vínculos que nunca foram postos em dúvida, das necessidades reais dos sujeitos, seus sentimentos e percepções. O mundo do sistema tenta controlar o mundo da vida. Isto gera muitas vezes um distanciamento entre estes mundos, levando problemas tais como a miséria, a submissão, a violência, para citar apenas alguns. Esta intervenção é o que Habermas chama de colonização do mundo da vida (o [inter]subjetivo e o cultural) pelo mundo do sistema (o econômico e o racional). Trata-se de um processo histórico. Antes da modernidade, da racionalização do mundo vivido, a integração do sistema foi subordinada à integração social. Com o advento da sociedade de classes, a relação foi invertida: a sobrevivência tornou-se a preservação do sistema, não da vida. Os vários mecanismos desenvolvidos pelo sistema pouco a pouco reduziram, a fragmentos, a unidade entre o sistema e a vida. O primeiro passo para a separação se deu quando o Estado precisou de uma justificação ideológica para o monopólio do poder. O segundo, quando se tornou inevitável a vida sob um regime da lei formalizada. O definitivo, quando a liberdade econômica do ganho privado elevou o mercado à categoria de sistema auto-regulado e hegemônico sobre o mundo da vida.

Fica claro agora o que temos chamado de “sistema”. E fica também evidente que a sociedade de consumo advém justamente da necessidade deste sistema em priorizar o consumo em relação à produção. Mas que sociedade é esta, se estamos falando de sistema? Podemos concluir que se trata da sociedade cuja vida foi subsumida ao sistema. Uma visão crítica e apurada desta sociedade nos foi apresentada por Debord (1997), que a nomeou de “sociedade do espetáculo”. Mas que espetáculo é este? Debord define que “o espetáculo é o

capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (SE §34) 30. Para tal, Debord busca inspiração em Marx, o que fica evidente quando o parafraseia logo na abertura de sua obra. Marx (1998) inicia O Capital propondo que “a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como imensa acumulação de mercadorias” (p. 43). Debord, por sua fez, propõe que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação” (SE §1).

Uma questão curiosa aqui é que Debord não limita ao sistema capitalista denunciado por Marx a responsabilidade do espetáculo, mas ao próprio projeto moderno, em que ele inclui as ditaduras socialistas de sua época, como sendo nada mais que uma forma subdesenvolvida de capitalismo de Estado.

Contudo, podemos interpretar como fio condutor de seu pensamento a dedução de que a mercadoria foi substituída pela imagem. Não fica difícil perceber que vem daí a constatação baudrillardiana de que o objeto só se faz objeto de consumo quando se torna signo. Portanto, o mesmo fetichismo alienante que Marx apontou para a mercadoria e que Baudrillard redirecionou para o signo está aqui no que Debord chama de imagem. Esta imagem, presente em todas as vitrines do mundo e veiculada unidirecionalmente pelos meios de comunicação de massa, penetrou de tal forma na vida que a práxis social se cindiu em realidade e em imagem (SE §1).

Sua conclusão, neste aspecto, está alinhada também à divisão de mundos da vida e do sistema, quando aponta que o vivido vira representação das imagens. Para ele, “o espetáculo é uma inversão da vida e, enquanto tal, é o movimento autônomo do não-vivo” (SE §2). Assim, ele aponta que a primeira fase da dominação da economia sobre a vida social

30

Todas as citações de Guy Debord são extraídas de sua obra “Sociedade do Espetáculo”. A mesma foi toda escrita por meio de aforismos. As referências, portanto, referem-se à numeração dos mesmos na supra citada obra.

acarretou uma degradação do ser para o ter no modo de definir a realização humana e que, em seu estágio avançado, este ter torna-se apenas um parecer (SE §17).

Mas ora, podemos aqui nos fazer pelo menos uma pergunta fundamental: ainda que aceitemos o argumento de que o mundo do sistema tenha subsumido o da vida, podemos entender que isto tenha acarretado no aniquilamento deste último? Parece-me que, ainda que possamos constatar a soberania do parecer sobre o ser, aceitar a tese debordeana do movimento do não-vivo na sociedade do espetáculo implique na aceitação de que o sistema tenha finalmente conseguido submeter o homem a máquina. Mas esta parece se configurar como uma visão estrutural, que o próprio Debord não compartilha.

Por outro lado, Debord reconhece que não seja possível se fazer uma oposição entre o espetáculo e a atividade social efetiva, pois que este desdobramento é também, por si só, desdobrado (SE §8) e que o espetáculo não seja em si um conjunto de imagens, mas uma relação entre pessoas, mediada pelas imagens (SE §4).

Ao separar o mundo da vida do mundo do sistema, Habermas subverte as unidades de contradição dialética propostas por Marx, as forças produtivas e as relações de produção, culminante da luta de classes, para assumir que esta esteja entre o nível do saber e do agir técnico-estratégico e o nível do saber e do agir prático, moral e comunicativo, presentes no trabalho e na interação, respectivamente. Assim, ele articula a lógica do desenvolvimento do “eu” com a do desenvolvimento das sociedades.

É na filosofia de George H. Mead, que ulteriormente veio a se tornar a base do interacionismo simbólico, através de Blumer (1969), que Habermas busca a compreensão do mútuo desenvolvimento do “eu” e da sociedade. Para Mead (1934), a sociedade é concebida como um tecido de comunicação em que as pessoas, através da interação, influenciam-se reciprocamente e, na medida em que atuam, levam em consideração as características dos outros. Essa interação é o que possibilita que o “eu” e a sociedade, por meio da simbolização,

se gerem mutuamente, mantenham-se ou mudem permanentemente, o que só é possível graças à linguagem. Desta forma, é ao responder às expectativas dos outros e ao experimentar papéis no processo de interação que a pessoa é socializada, o que ocorre através de um processo contínuo, ao longo de toda a vida. Nesta perspectiva, a interação é simbólica porque é humana, o que necessariamente implica a abordagem dos significados, que são tanto produto das interações quanto modelam o curso destas. Portanto, os símbolos são significantes e têm o papel de ajudar a organizar o comportamento e a permitir que os atos se completem no curso da interação, num contexto social específico.

Podemos levantar, com isto, o questionamento sobre se não seria este princípio necessário e bastante para deduzirmos que haja uma mútua dependência entre o mundo da vida e o mundo do sistema. Aceitar que aquele tenha sido subsumido, mas não aniquilado, pelo sistema, e assim que o homem não tenha se reduzido a máquina, não pressuporia que a interação social, ainda que possa ser constrangida pelo sistema – e mesmo por isso –, também não o redimencionaria de forma dinâmica?

Ainda que fosse o caso de analisarmos este aspecto do ponto de vista estrutural, podemos concluir que o pensamento de Mead antecipou em meio século o que viria a ser proposto por Giddens em sua teoria da estruturação. Ali, Giddens (2003) propõe que a vida social é mais do que ações individuais arbitrárias, mas não é meramente determinada pelas forças sociais. Em outras palavras, não é meramente uma massa de atividade de nível micro, mas, por outro lado, não se pode observá-la apenas considerando as explicações do nível macro. Em vez disto, sugere que a agência humana e a estrutura social estão num relacionamento entre si e que é a repetição das ações dos agentes individuais que reproduzem a estrutura.

Quem se preocupa em compreender a microestrutura social justamente através da interação é Erving Goffman. Goffman (2001) analisa as interações sociais a partir da metáfora

teatral, tendo em vista que todos somos atores sociais, em que rituais e jogos são vividos – ou representados, como queiram. Assim como no pensamento de Mead, a formação do “eu” aparece em seu pensamento de maneira crítica – e, aliás, ainda que seu pensamento se desenvolva de forma diferente ao de Mead, chega fundamentalmente à mesma idéia.

Goffman sugere que o ator precisa ser compreendido sob dois papéis distintos: o de ator propriamente dito, em que fabrica impressões; e o de personagem, cujo espírito, força e outras qualidades, a representação tem por finalidade evocar. Esses dois papéis expressam a contradição do “eu”. Enquanto o ator propriamente dito não é inteiramente coagido por pressões sociais e daí poder manipular as impressões que deseja, a personagem será, em última instância, determinada socialmente. Entretanto, vemos aí que o argumento central do forjamento social do “eu” se mantém quando Goffman apresenta que mesmo o ator propriamente dito estará coagido por imagens sociais em sua manipulação de impressões.

Esta perspectiva – tanto em Goffman quanto em Mead, diga-se de passagem –, tem a ver com o uso da comunicação. A tendência humana a usar sinais e símbolos significa que coisas insignificantes transmitirão evidências de valor social e de avaliações mútuas e estas coisas serão testemunhadas. Assim, a interação face a face ocupa uma importância ímpar na própria estrutura do “eu”, uma vez que convenções são mantidas como guias para a ação. A relação entre o “eu” e a interação face a face se revela mais claramente quando do intercâmbio ritual, uma vez que uma mensagem formulada e emitida por um participante obriga que um outro demonstre seu recebimento e aceitação, sob pena de ameaça ao equilíbrio ritual.

Tudo isso nos leva à possibilidade de que não estejamos falando de dois mundos, mas de uma bidimensionalidade entre estes mundos, de uma vida mundana que não se separa, e, assim, que haja mútua influência. Um argumento forte quanto a isto, dentro da própria base na qual tenho me apoiado até agora, seria que mesmo em se aceitando tal perspectiva, a

interação social poderia já ser por si alienada e ao retornar para o sistema apenas o alimentasse e fortalecesse.

2.4 Uma crítica à crítica da economia política do signo