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1 “Valor de marca” para quem?

4 Princípios para nossas investigações marcárias

4.2 Sobre o método nas investigações marcárias

Assim como o método fundado por Wittgenstein, é também com base em exemplos extraídos da vida cotidiana que nossas investigações marcárias acontecem. Se minha preocupação é entender como as marcas adquirem significado nas interações humanas, então nada mais adequado do que observar, vivenciar, as interações em que as marcas sejam o cerne da situação, para daí tirar os exemplos que possam elucidar tal processo.

Evidentemente, minha disposição não é a de replicar o método wittgensteiniano – ainda que isto fosse possível, o que não me parece o caso, pois, como ele mesmo afirma, não

existe um método em filosofia, mas diferentes deles, diferentes terapias (IF §133) –, mas o de nele me inspirar – até porque, pela natureza das nossas investigações, não estamos tratando de um método filosófico, mas de um (num sentido amplo) científico.

Se considerarmos a perspectiva antropológica da filosofia de Wittgenstein não é difícil imaginar que nossas observações seguem uma linha etnográfica. Evidentemente, não se trata aqui de uma etnografia acerca de uma ou mais culturas, mas das interações humanas na vida cotidiana. Interações das quais o observador compartilhe de suas regras. Para isso, que faça parte de suas formas de vida43. Esta prerrogativa, como medida única da possibilidade de sua compreensão.

Portanto, ao falarmos da análise de tais interações, é na compreensão que nos devemos focar. Trata-se, evidentemente, de um tipo lingüístico de análise, mas um que considera uma perspectiva ampla de uso dos signos de nossa linguagem, baseada, fundamentalmente, na competência do observador de, ao compartilhar das regras daquelas gramáticas, compreender de forma crítica (não enfeitiçada) o que os falantes têm em mente ao falarem das marcas e, assim, poder descrever seus processos de significação e seus significados.

Contudo, no momento em que opto por me guiar inspirado pelo método filosófico de Wittgenstein, fica-me claro que não tenho em mãos, evidentemente, um método científico. Assim, parece-me evidente, a princípio, a adoção de um método observacional próprio bem como de análise, no que uma abordagem mista da etnografia da comunicação com a sociolingüística interacional demonstrou-se a melhor opção44. Contudo, a experiência obtida em minhas primeiras observações, bem como nas primeiras análises realizadas – que

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Diferentemente de muitos interpretadores de Wittgenstein, que assumem a noção de forma de vida como relativa a uma sociedade como um todo, o faço em relação a como diferenças fundamentais do uso da linguagem, em nossas sociedades, ocorrem de acordo com os diferentes campos sociais, assumindo, assim, uma visão mais alinhada à noção de subculturas.

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ocorreram concomitantemente –, me fez sentir uma desconfortável sensação de que tal opção não me levaria a todos os aspectos possíveis de serem encontrados em meus dados.

Ao refletir sobre isto e reler aqueles mesmos textos que me levaram à primeira conclusão parece-me agora evidente a razão do meu incômodo. Tais métodos foram desenvolvidos para estudar aspectos diferentes daqueles com os quais estou lidando, ainda que semelhantes entre si. Que conseqüências isto poderia gerar? Parece-me evidente que adotar um método ou uma combinação de métodos científicos específicos me levaria a adaptar o método wittgensteiniano para além do que já estava eu fazendo por tê-lo apenas inspiradoramente – já que, evidentemente, minhas preocupações não são exatamente as mesmas daquele filósofo.

O mais coerente, portanto, parece-me ser operar inversamente. Para manter aquele método filosófico o menos violado quanto possível, não seria mais adequado, então, que eu simplesmente fizesse uso dos recursos observacionais e analíticos de métodos científicos que se mostrem coerentes e consistentes com o que me parece que Wittgenstein tivesse em mente com seu próprio método e às peculiaridades do meu caminho nesta inspiração?45

Compreendi que precisaria desenvolver, senão um método, um caminho metodológico específico para as investigações marcárias. Ele surge inicialmente de forma indutiva, na medida em que eu evoluo com minhas interpretações, até chegar num ponto mais sistemático, quando busco as possibilidades que me parecem aplicáveis a certos aspectos observacionais e, sobretudo, analíticos.

Quanto às minhas observações, entendi que precisaria considerar algumas peculiaridades que me orientassem no campo: 1) precisariam ser dados coletados diretamente em situações de interação social, evidentemente; 2) a conversa em pauta precisaria circundar certas (quaisquer que fossem) marcas; mas 3) os dados precisariam ser coletados em situações

em que os interactantes estivessem agindo espontaneamente; para isto, 4) precisaríamos de uma situação natural ou, pelo menos, que se criasse uma situação em que os interactantes não percebessem a finalidade por trás da interação; neste último caso 5) o pesquisador precisaria estar fazendo parte da conversa, para que ele fosse aquele responsável por manter as marcas “em pauta”.

Mas o aspecto mais importante seria a decisão sobre que interações considerar. Para que eu possa inferir qualquer tipo de interpretação sobre as interações é condição sine qua non que eu compartilhe das regras de uso da linguagem do grupo, ou seja, que se refiram a formas de vida das quais eu, de alguma forma, faço parte. Assim, minhas observações ocorreram em interações com pessoas participantes da minha vida cotidiana: familiares, amigos, colegas da academia, vizinhos, alunos, colegas de trabalho e outros envolvidos em relações profissionais, profissionais de saúde, taxistas, estranhos na rua, desconhecidos no supermercado, no cabeleireiro ou na fila do teatro, ou, ainda, entrevistas e diálogos espontâneos na tv e no rádio.

Esta opção fez com que minha observação fosse ainda mais do que participante, chegando, muitas vezes a ser participativa, uma vez que me deparei como sujeito da ação significativa por várias vezes. Em termos mais específicos, eu poderia classificar minhas observações de três formas: 1) situações em que eu observei as interações de longe, ou seja, em que os interactantes dialogavam e eu fingia não prestar atenção, mas me colocava numa posição de acesso ao que ocorria; 2) situações em que eu atuei como um ator falso – estas, as mais típicas –, em que eu estimulava a continuidade de um diálogo que houvesse surgido acerca de uma marca ou mesmo lançando o nome de uma marca no diálogo quando a situação se mostrasse propícia; e 3) situações em que, a princípio, eu não estava envolvido como

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Vale salientar que muitos dos aspectos da etnografia da comunicação e da sociolingüística interacional mantiveram-se no meu caminho metodológico, contudo, de maneira livre, apenas referencial em relação a aspectos seus constituintes.

pesquisador e, só depois de alguns instantes ou mesmo na decupação das gravações, me apercebia que uma marca estava em jogo – estas, as situações menos comuns.

A documentação das observações foi feita, na medida do possível, por meio de gravações. Contudo, isto só ocorreu em situações em que eu pude antecipar a possibilidade de ocorrências de interações – festas em família, algumas aulas de debate, por exemplo. Desta forma, a maioria delas foi documentada textualmente em um bloco de notas. Desde o início do meu trabalho de campo, bloco e caneta foram artefatos de mim inseparáveis. Nas interações em que situações marcárias surgiam, eu dava uma desculpa e me ausentava num local reservado para tomar nota do ocorrido. Nos dois casos, a transcrição, feita pelo próprio pesquisador, ocorreu num prazo de poucas horas depois da interação. Evidentemente, não se tratou de uma transcrição extensa – mesmo nos casos de decupação das gravações –, mas de uma que fosse representativa dos aspectos a serem considerados46.

Como critério fundamental de validação está o próprio princípio de exemplos do método wittgensteiniano. Todo o processo analítico e os resultados a que chegamos são, como não poderia deixar de ser, exemplificados pelas situações interacionais. A forma como estes exemplos são descritos devem trazer ao leitor a forma como o investigador gerou sentido de suas observações em relação a cada um dos aspectos apresentados47. Além deste, outros critérios de validade utilizados foram uma auditoria na transcrição dos dados e na interpretação dos mesmos por um outro pesquisador (CRESWELL, 2002; MERRIAN, 1998)48.

Ao todo, o levantamento etnográfico durou um ano e nos propiciou 139 observações. Indícios de saturação dos dados já surgiam a partir da centésima observação, pouco mais de seis meses após o início de trabalho de campo.

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Neste sentido, Ochs (1979) sugere que a transcrição é já uma forma de teorizar acerca da observação, uma vez que apenas o fundamental para o problema em questão é efetivamente considerado.

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Uma maior explicação desta demonstração faz-se na introdução à apresentação das próprias investigações marcárias, na segunda parte desta tese.

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Em relação ao procedimento analítico, desde o início eu tenho claramente a noção de que nossa análise deva levar aos significados das marcas e que, para tal, precisamos compreender o processo de significação. O contato inicial com as interações observadas e a compreensão da necessidade de trilhar um caminho metodológico levou-me ao desenvolvimento de um protocolo de análise. Vale salientar que, antes de se confundir com um molde, tal protocolo abriu uma variedade de perspectivas sobre minhas interpretações do corpus, levando-me a diferentes níveis de análise que propiciaram uma visão holista da significação das marcas.

Para tal procedimento, pareceu-me adequado diferenciar o uso da linguagem pela sua natureza. Na gramática profunda, as variações de significação que os signos de uma língua podem ter em diferentes formas de vida, ou mesmo em diferentes contextos ou situações ou momentos da interação numa mesma forma de vida, estão intrinsecamente vinculados a questões “fora” da língua, como o tom de nossa voz, nossos gestos ou expressões faciais, dentre tantos outros. É assim que as regras da língua (gramática superficial) subsumem-se à gramática profunda e os signos de nossa linguagem são significados.

Assim, temos que os aspectos lingüísticos – aqueles identificáveis na própria língua – sejam necessários, mas não bastantes para compreendermos a significação. Aqueles que chamaremos de paralingüísticos e extralingüísticos são fundamentais. Sobre estes, queremos nos referir, respectivamente, aos aspectos fonéticos e corporais da linguagem, muitas vezes condensados sob o termo de “não-verbais”. Em paralelo a estes – no sentido de ser uma dimensão complementar e não alternativa às anteriores – temos os aspectos interacionais, relativos a como os interactantes se representam e tomam a si e aos outros numa interação.

Com isto em mente, cheguei a esses três níveis de análise. A forma como os assumo é, como já antecipei, sempre numa perspectiva pragmática. É bem verdade, no

entanto, que isto trás consigo algumas implicações que, acredito, mereçam ser discutidas com certo cuidado. Se, por um lado, temos os aspectos interacionais e extralingüísticos como sendo aqueles mais obviamente identificáveis com a pragmática da linguagem, pois que, em circunstância alguma eles circunscrevem-se na língua e, portanto, não são regidos por sua gramática, o mesmo não ocorre com os aspectos paralingüísticos.

Não me parece que seja difícil, com um pouco mais de esforço, compreender os aspectos fonéticos – apesar de participarem da língua – em sua pragmática, posto não ser difícil se evidenciar como suas variações ocorram no uso da linguagem.

Assim, não há que estranharmos a ausência dos aspectos propriamente lingüísticos. De fato, eles estão sempre presentes. Numa perspectiva pragmática, a questão é como compreendê-los para além da superfície. Não é o conteúdo semântico que deixa de ser de tal domínio, mas como assumimos que um signo chegue a um significado. Seguindo esta linha, então, os níveis aqui definidos dão a profundidade necessária aos signos lingüísticos de uma dada língua, por ter um papel diferente: o de apontar como tais aspectos fazem sentido em cada jogo de linguagem.

Como estamos tratando aqui de uma análise funcional, evidentemente há que se identificar a função de tais aspectos no discurso (sugerir, desvelar, demonstrar etc.). Assim, um segundo nível de análise se refere justamente à função que os aspectos citados assumem na significação das marcas. O curioso é que tal função, apesar de se referir ao significado, não aponta, em nossas investigações, para os significados em si, mas para o que optei por chamar de “atividades relativas às marcas” (e.g.: juízo, sentimento, opinião etc.). Estas atividades se apresentam como um novo nível de análise e, de fato, as funções, juntamente com as atividades formam um corpo que não se alinha às dimensões originalmente concebidas, pois que a primeira já não se trata mais de um processo de significação propriamente dito, enquanto que a segunda não se refere ainda a significados. Assim, este se configura como um

bloco intermediário, entre a significação e o significado, mas indispensável para a compreensão da primeira, a que chamamos de significância.

4.3 Notas complementares à compreensão do método nas