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1 “Valor de marca” para quem?

4 Princípios para nossas investigações marcárias

4.4 Mas por que fazer as investigações, afinal?

Acredito que os questionamentos e as reflexões que ora proponho sejam de crucial relevância para o marketing. Afinal de contas, o marketing, enquanto disciplina social, cujo objeto próprio tende a ser admitido como a troca, deveria observar os dois lados relacionados às marcas, nomeadamente, os produtores e os consumidores, e ainda suas relações e mediações. Contudo, o que vemos é uma atenção voltada aos primeiros. Sim, porque apesar da produção acadêmica ter se focado sobremaneira sobre os últimos, o fez quase que totalmente tomando-os como ponto de investigação para ações gerenciais dos produtores. Mesmo nos últimos anos, em que as relações entre as partes têm sido um dos focos de análise da disciplina, mais uma vez tende a cumprir o mesmo papel.

Quando reflito sobre a importância das marcas para as pessoas, portanto, não estou fazendo isto do ponto de vista sobre como este conhecimento venha a ser utilizado gerencialmente pelas organizações. Entendo que isto possa parecer estranho, uma vez que a atividade de marketing seja quase que indiscutivelmente atrelada ao sistema capitalista e a um suposto objetivo fim de gerar lucratividade às organizações, que, afinal, têm nisto seu objetivo.

Provavelmente isto ocorra devido ao nome de nossa disciplina sugerir sua aplicação apenas para economias de mercado. Estou certo de que se trata de mais um feitiço da linguagem – feitiço este no qual, a bem da verdade, não apenas o senso comum, mas também a maioria dos práticos e até parte da própria academia de marketing, parecem cair. De fato, o marketing extrapola em muito as possibilidades de economias de mercado. Quando, há quarenta anos, o escopo do marketing foi discutido e ampliado como relativo à oferta de qualquer coisa por alguém a outrem, e a troca – ou, como prefiro tratar, a relação entre produção e consumo – passou a ser assumida como o objeto próprio da disciplina, a noção do que venha a ser esta “oferta” deixou de ser relativa apenas a produtos de consumo e passou a

incluir serviços, experiências, ideologias e até mesmo pessoas quando de seu cumprimento de algum papel (e.g., políticos, artistas, esportistas etc.).

Desta forma, podemos separar o marketing do sistema capitalista, já que o mesmo é aplicado a outras formas de economia, bem como a questões políticas, sociais, ambientais e outras. Vejamos alguns exemplos. Nas economias planificadas do regime socialista, as prioridades (normalmente definidas a cada cinco anos) estabelecidas pelos planos governamentais não eram apenas informadas à população. Todo um trabalho de “conscientização” sobre a importância das escolhas era realizado, em que meios de comunicação de massa eram amplamente utilizados. Outro exemplo pode ser observado na forma como ONGs, que desenvolvem atividades sem fins lucrativos, se utilizam de marketing para levantar verbas, tanto públicas quanto privadas. Podemos citar ainda as campanhas políticas, que chegam ao ponto de produzirem políticos que não necessariamente devem ser coerentes com ideologias, mas sim apresentados na forma de objetos de consumo. Neste aspecto, para que tal fenômeno não pareça apenas uma adaptação da política liberal aos moldes do capitalismo, podemos citar também outros exemplos, como o stalinismo e o hitlerismo.

Se trouxermos estas questões para a noção de marca, o efeito será o mesmo. Os exemplos não faltam. Afinal, como não ver na sobreposição da foice com o martelo uma marca? E como não ver também como uma marca a suástica? Ou ainda o logotipo do Greenpeace ou mesmo a bandeira americana...

O que quero argumentar com tudo isso é que não precisamos estar inseridos numa economia de mercado para que haja produção e consumo e muito menos para que esta relação seja nefasta. Portanto, ainda que o marketing seja usado nas relações de mercado – e, portanto, para o capitalismo – esta não é ou não tem de ser sua função própria. Além disto, mesmo neste contexto, não acredito que possamos considerar a busca das organizações

capitalistas pelo objetivo de lucro máximo, através do consumo desenfreado, como uma regra. Como sabemos, esta é apenas uma das visões possíveis do liberalismo e não a única – vide o liberalismo social de Stuart Mill. Neste sentido, acredito que as organizações – mesmo as capitalistas – tenham um importante papel social a cumprir, ainda que, evidentemente, um possível questionamento possa advir em relação a quantas e quais delas estariam dispostas a tal.

Contudo, assumindo-se a perspectiva de um consumidor ativo como realidade, as organizações teriam que se adaptar. E, por incrível que pareça, é bem possível que as primeiras a se adaptarem fossem exatamente aquelas capitalistas, cujo objetivo é obter o lucro máximo através do consumo. Por quê? Ora, a história tem nos mostrado que o capitalismo é isento de uma ideologia coerente e adepto às mudanças necessárias para manter sua hegemonia. Neste sentido, tornarem-se signos abertos parece-me algo perfeitamente aceitável para marcas que não desejem se tornarem descartáveis ou virarem genéricas.

Meu argumento é de que as pessoas já significam as marcas em suas interações interpessoais com o intuito de terem desempenhos que satisfaçam ao seu contexto interacional imediato e aos seus propósitos nessas situações sociais. O meu interesse, portanto, não é o de indicar práticas administrativas para os detentores das marcas, mas compreender como se dá este processo de significar as marcas em situações de interação social como recurso de desempenho dos atores. E neste ponto acredito que há de se fazer uma importante consideração. Há várias décadas separamos a administração de marketing do marketing enquanto atividade social. Enquanto o ensino e a extensão tendem a focarem-se na primeira, transferindo tecnologia gerencial para futuros profissionais, a pesquisa e a produção de conhecimento na área alinham-se – ou deveriam se alinhar – à segunda. Isto não quer dizer que não devamos olhar para os produtores, mas que olhemos também para os consumidores. Mas que não façamos isto como meio de dominação de um pelo outro. Portanto, minha

reflexão e as investigações marcárias apresentadas à seguir não estão comprometidas com a geração de “ferramentas gerenciais” a serem utilizados pelas organizações em sua manipulação dos consumidores. Ao contrário, têm o papel de compreender a relação entre produtores e consumidores e sua contribuição deve ser vista como a de, quiçá, apontar meios para que esta relação não seja nefasta.

Neste sentido – e agora já voltando à segunda filosofia de Wittgenstein como inspiração –, devo admitir que seja bem verdade que as marcas podem ser um sintoma da doença espiritual dos nossos tempos. Contudo, vejo que elas também podem ser assumidas – e assim o faço – como recursos simbólicos de interação social e, neste sentido, arriscaria dizer que tal tipo de recurso faz parte da própria história natural da humanidade. Se os objetos de tais interações serão marcas, totens sagrados ou fenômenos naturais, isto depende da sociedade com que estivermos lidando. E a sociedade que me propus investigar é a sociedade de consumo. Por outro lado, também é verdade que esta sociedade pode ser tida como outro sintoma da doença espiritual dos nossos tempos. Contudo, esta é a sociedade dos nossos dias e não é meu objetivo – pelo menos na presente reflexão – elaborar sobre como transformá-la – afinal, minha tese não se trata de uma teoria crítica –, mas de como, mesmo nela, o ser humano possa voltar a ocupar um espaço que se tornou do sistema; como as formas de vidas e seus jogos de linguagem podem resgatar o ser humano da sua função de máquina do sistema.

Parte II