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1 “Valor de marca” para quem?

4 Princípios para nossas investigações marcárias

4.3 Notas complementares à compreensão do método nas investigações marcárias

No desenvolvimento do meu caminho metodológico, a escolha por uma combinação entre a etnografia da comunicação e a sociolingüística interacional manteve-se como orientação tanto de coleta quanto de análise dos dados. As considerações sobre um protocolo próprio – apresentado à seguir –, mais alinhado aos princípios wittgensteinianos, devem ser considerados como aspectos complementares e, a partir de então, indissociáveis, do uso de tais perspectivas metodológicas.

A decisão pelo método observacional não foi o mais difícil. Como as investigações se tratariam de uma etnografia das interações sociais, por assim dizer, a etnografia da comunicação se demonstrou como um bom norte.

Tal método tem base tanto lingüística quanto antropológica, assumindo a comunicação como um meio de se fazer sentido do mundo, sendo ela parte integrante da cultura. Nela, a linguagem é vista como estando simultaneamente constrangida pela cultura bem como a revelando e sustentando.

Assim como a etnografia tradicional, a etnografia da comunicação é feita pela observação participante. A diferença é de que, enquanto o objetivo do antropólogo é aprender sobre uma cultura nativa a partir de seus membros e de como estes fazem sentido de suas experiências, o etnógrafo da comunicação tem por objetivo fundamental compreender a competência comunicativa desses membros – nos termos de Wittgenstein, como seguem as

regras da gramática profunda – e, assim, como as interações fazem sentido no nível micro da cultura.

A criação e o desenvolvimento da etnografia da comunicação é creditada a Dell Hymes. Foi ele quem definiu suas unidades sociais de análise, a partir da noção de “comunidade de fala”, que podemos abstrair, do ponto de vista wittgensteiniano, que se refira àquelas pessoas que compartilham as regras de uso da linguagem dentro de uma mesma forma de vida.

Para Hymes (1986) a fala é perspectiva fundamental da interação social, assumida em uma perspectiva verbal. Assim, dentro das comunidades de fala, podem ocorrer diferentes situações, eventos e atos de fala. Como no exemplo do autor, temos uma festa como uma situação de fala, certa conversa durante a festa como um evento de fala e, finalmente, uma piada contada dentro da conversa como um ato de fala. Tais níveis são mais ou menos importantes em nossas observações na medida em que identifiquemos o ponto da interação em que uma marca está envolvida.

Além destes, o autor aponta outros aspectos da fala que também devem ser considerados pelo observador: seu estilo, relativo às escolhas lingüísticas feitas, como questões sintáticas e fonológicas, por exemplo; sua maneira, relativo às restrições que uma comunidade impõe ao comportamento lingüístico; e seus componentes, relativo ao que faz parte de tais atos, como os interactantes e o assunto sobre o qual estão tratando, por exemplo.

Ambas as abordagens são tipos funcionais de análise do discurso e, longe de estarem totalmente dissociadas, mantém aspectos comuns entre si – o que faz com que não haja problemas em serem utilizadas conjuntamente, o que não é pouco comum. A diferença fundamental entre as duas está no fato de a etnografia da comunicação preocupar-se fundamentalmente com os aspectos culturais de uma comunidade do ponto de vista da interação verbal, enquanto a sociolingüística interacional preocupa-se no que está

acontecendo quando pessoas interagem, ou seja, em como elas definem o contexto interacional e significam-no – ambos aspectos, como podemos ver, fundamentais para as nossas investigações.

A sociolingüística interacional tem suas raízes, como o nome sugere, na lingüística e na sociologia, mas também trás consigo aspectos da antropologia e da psicologia social. Fundamentalmente, ela enfatiza a importância da linguagem como um processo de geração de significado situado contextualmente. Seu objetivo é, portanto, focar-se nos significados criados durante uma interação; em como um “eu” interage com um outro num contexto interacional; em como a fala assume um aspecto central na criação da realidade social.

A base da sociolingüística interacional está nos trabalhos de John Gumperz e Erving Goffman, advindos da antropologia lingüística e da sociologia, respectivamente. Goffman (2001) propõe que as identidades e os relacionamentos não são pré-existentes, claramente delineados ou fixos, mas sim complexos, dinâmicos e negociados localmente através de gestos simbólicos, lingüísticos ou extralingüísticos.

Uma importante contribuição sua é a noção de “eu” como uma construção social e interativa. Neste aspecto, ele aponta a preservação da face – como em “eu” aparece para o outro – como uma forma de gerenciar a representação do “eu” (GOFFMAN, 1982).

Para a análise sociolingüística propriamente dita, Goffman desenvolveu outros dois importantes conceitos: enquadre e footing. Os enquadres (GOFFMAN, 1974) são a organização e os princípios interacionais pelos quais situações são definidas e sustentadas como experiências. Goffman adotou o termo enquadre (frame) de Bateson (2002), para descrever o sistema em que interactantes ajustam possíveis significados de um dado ato lingüístico ou extralingüístico. Esses enquadres são conhecimentos compartilhados por membros de uma mesma cultura e são invocados pelo reconhecimento não deliberado das

diferenças entre tipos de comportamento e da consideração dos fatores contextuais – no que podemos ver aspectos do desenvolvimento de Hymes.

Footing (Goffman, 1981), por sua vez, refere-se ao alinhamento que tomamos numa interação, ou seja, o porte, o posicionamento, a postura, a projeção pessoal de um participante numa interação de fala. Uma mudança de footing refere-se a uma mudança no alinhamento que alguém assume para si e para os outros, o que impacta também numa mudança de enquadre em uma interação.

Gumperz (2002), por sua vez, identificou certos aspectos de uso da linguagem como sinais potenciais para interpretação, o que ele chamou de convenções de contextualização. Estas convenções referem-se aos aspectos da linguagem e do comportamento lingüístico, presentes num contexto interacional, que utilizamos para sinalizar nossos propósitos comunicativos, bem como para inferir os propósitos dos outros.

Tais convenções podem ser lingüísticas – como escolhas lexicais ou sintáticas, por exemplo, mas também de alternância de código, como mudanças dialetais ou de estilo de fala –; extralingüísticas – como pausas, hesitações, o tempo da fala –; ou ainda, estabelecidas por sinais prosódicos – como entonação, sotaque ou tonalidade da fala, por exemplo.

Assim, as convenções de contextualização são partes da competência comunicativa dos interactantes. De fato, trata-se de uma reformulação do conceito de competência comunicativa proposto por Hymes em termos mais específicos, dentro de cada contexto interacional.

Quanto ao esquema analítico da etnografia da comunicação, Hymes (1986) também desenvolveu uma base, um modelo heurístico chamado “SPEAKING”. Este modelo serve como um guia na identificação de importantes aspectos da fala (cada letra refere-se a um desses aspectos, em nomes em inglês). Assim, temos o cenário, que se refere ao tempo e ao espaço de um ato de fala e às circunstâncias físicas em que este se dá e a cena que, por sua

vez, refere-se ao “cenário psicológico”, ou seja, à definição de uma situação, que ocorre por meio de uma base cultural; os participantes, que, como o próprio termo sugere, referem-se àqueles engajados numa interação, os interactantes; os fins, que estão relacionados aos objetivos ou resultados esperados do ponto de vista da comunidade, ou seja, o que os interactantes envolvidos numa interação têm como propósito nela; a seqüência do ato, que tem a ver com o conteúdo e com a forma com que as mensagens são apresentadas na interação; o que o autor chama de “chave”, que se refere à maneira, ao tom ou ao espírito em que os atos são realizados; as instrumentalidades, que se referem ao canal – oral, escrito, não- verbal etc. – e às formas – dialetos, códigos, variedades lingüísticas etc. – sob os quais a interação se encontra submetida; as normas, que aqui se referem àquelas que regem uma interação – polidez, interrupções – e também a interpretação – códigos compartilhados, crenças coletivas etc.; e o gênero, que é relativo às categorias textuais, como poema, contos, orações, provérbios etc., que contribuem para a identificação de características formais reconhecidas tradicionalmente por uma comunidade.

Especificamente em relação ao meu protocolo original de análise, de cada nível (interacional, paralingüístico e extralingüístico) temos diversos tipos de signos. Dentre os aspectos paralingüísticos, encontramos a ortoépia e a prosódia. A primeira trata da pronúncia, enquanto a segunda da sonoridade. É bem verdade que, efetivamente, não se trata de uma tarefa fácil a distinção entre as mesmas e, de fato, não raramente vemos uma ser usada por outra. Isto porque, enquanto, por um lado, a sonoridade influencia a pronúncia, por outro, a pronúncia trás implicações sonoras.

Hoje a prosódia pode ser definida por meio do entendimento do funcionamento do que chamamos de traços prosódicos, que são as variações, na fala, de tom, intensidade, altura, duração e ritmo da voz. Do ponto de vista da pragmática da linguagem, interessa-nos saber como tais variações definem a significação das palavras.

A ortoépia, por sua vez, preocupa-se com o estabelecimento da norma culta de pronúncia das palavras. Desta forma, desconsidera a variabilidade lingüística, que pode ocorrer, do ponto de vista da pronúncia, sobretudo por questões geográficas – tendo em vista a diversidade de formas com que a fala assume em diferentes regiões – e sociais – numa íntima relação entre linguagem e poder, nível sócio-econômico, de instrução etc., no que podemos incluir aspectos como variações dialetais (sotaque) e os chamados barbarismos fonéticos, os quais chamaremos de variações fonéticas – ainda que isto possa dizer muito ou nada –, para evitar o termo pejorativo. Partindo do pressuposto pragmático de que a corretude no uso dos signos da linguagem está em seu devido entendimento e aceitação – ou seja, sem geração de constrangimentos ou gafes, por exemplo – podemos ampliar o princípio ortoépico se o aceitarmos como cabíveis a cada forma de vida.

Dentre os aspectos extralingüísticos, temos os movimentos cinésicos e as atividades proxêmicas. A cinésica preocupa-se com os aspectos comunicativos do movimento corporal. Exemplos são os gestos, os movimentos dêiticos, as expressões faciais, o contato visual, os movimentos com a cabeça e a postura corporal. A proxêmica, por sua vez, preocupa-se com os aspectos espaciais da interação humana. Estes podem ser movimentos corpóreos (contatos físicos intrusivos, como empurrar, agarrar, segurar), interações corpóreas (contato pessoal afetuoso, como um aperto de mão, um toque, um abraço) e distância corporal (espaço em que duas ou mais pessoas estabelecem entre si).

Finalmente, o que aqui chamo de aspectos interacionais são aqueles que se dão na interação social e são de fundamental importância para se compreender o que ocorre na mesma. Eles servem como o que dá sentido aos demais aspectos. Dentre várias possibilidades consideradas podemos citar: alternâncias de código, cenário da interação, conhecimento de mundo, contexto, face, footing etc.