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2 A estética da força no Sensacionismo de Fernando Pessoa

2.3. As sensações do abstrato e a consciência da sensação

No processo sensacionista, integração e desintegração se fundem, se esmiúçam e guardam as sensações para senti-las de todas as formas e, assim, propagar as sensações a partir do abstrato. Fernando Pessoa nos fala que o fim da arte é a organização das sensações do abstrato; explica:

A arte é uma tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquelas que as sensações aparentemente do exterior e as sensações aparentemente do interior nos sugerem. (PESSOA, 1966, p.191)

O poeta quer com isso experimentar sensorialmente na escrita, a “sensorização” do real, operá-lo aos pedaços. A sensação passa a ser um operador do real, é ela que vai fazer o processo de transpor o real em arte. A realidade que se recebe através da literatura é em palavras: realidade verbal.

Não se chega na realidade sem ser através de signos. A palavra não é abstrata, mas remete como mediadora desse ser abstrato, que são as forças. Seres descarnados utilizados de forma criadora.

Desse modo, podemos observar de que forma Pessoa trabalhava incansavelmente sua linguagem para atingir, a partir da analise das sensações, esse nível das forças: temos uma leitura dos significantes, despidos de (pré) conceitos, aptos a atingir outro nível de percepção, ou seja, criando novas percepções do real, como nos explica José Gil:

Espaço onde se forma a realidade abstracta, quer dizer: a realidade de estética, que não é nem imaginária (ilusória) nem simbólica, nem material (exterior), nem espiritual (interior). Espaço das equivalências entre sensações, provém da desestruturação do espaço perceptivo habitual. Mais exactamente: deriva de um processo que compreende dois momentos, um de desestruturação, outro de construção do plano de consciência. (GIL, s/d, p.64)

Considerando este pensamento, é importante nos atermos que para Fernando Pessoa o conceito abstrato não se opõe a concreto e não tem um caráter metafísico, as sensações do abstrato são sentidas no corpo, o que as torna concretas. No entanto, como vemos na fala de José Gil, para que novas percepções se criem é preciso desestruturar o espaço perceptivo habitual. Como ele destaca a “realidade de estética”, essa nova realidade criada no poema possui um caráter abstrato. É uma “realidade abstrata”. Fernando Pessoa vai nos dizer também que é importante não nos esquecermos de que é preciso obedecer as “condições de realidade” (1966, p.191). É preciso tentar criar o máximo possível uma sensação análoga, construindo o máximo de concretude possível na elaboração poética.

Assim, a arte tem por assunto, não a realidade (de resto, não há realidade, mas apenas sensações artificialmente coordenadas), não a emoção (de resto, não há propriamente emoção, mas apenas sensações de emoção), mas a abstração. (PESSOA, 1966, p.191)

Dessa forma, Pessoa nos coloca sua compreensão de que: a emoção precisa ser colocada como realidade, não como uma realidade concreta, mas como realidade abstrata. E está abstração é de ordem paradoxal, e concreta, pois ela é da ordem das forças, então ela diz respeito aos corpos que a sentem.

Esse ponto é fundamental para a compreensão do que Álvaro de Campos propõe em sua poética não-aristotélica. As sensações do abstrato fazem parte do trabalho poético de intelectualização da sensação, para que, dessa forma, nossos sentidos possam se misturar no campo do sentir: a visão deve ser capaz de apreender o objeto como se fosse o tato, o olfato, etc.; com isto, o autor cria o corpo da sensação, misturando todos os seus sentidos e indo para além da situação vivida empiricamente.

É a partir desse processo de abstração e intelectualização que a sensação deve virar um corpo de força, podendo tornar-se literatura, por exemplo: Fernando Pessoa nos mostrará como essa unificação funde sujeito e objeto de uma maneira que não se sabe mais qual é qual, pois tudo ocorrerá ao mesmo tempo, tornando-se um múltiplo que se unifica em um fluxo contínuo. O presente da força não se instaura a não ser como movimento, instante faiscante, tempo puro. Sua captação se dá através da linguagem, mas ela tem escolhas, fragmentação, corte, costura. O tempo é uma teia inconsútil:

Ergo-me da cadeira com em exforço monstruoso, mas tenho a impressão de que levo a cadeira commigo, e que é mais pesada, porque é a cadeira do subjectivismo.(PESSOA, 2013, p.248)

Podemos observar nessa passagem essa fusão entre sujeito e objeto, a cadeira deixou de ser cadeira para se transformar em força, sentida no “esforço monstruoso” de levantar-se. Uma ação que passa batido na realidade, e vira um campo de força na realidade verbal. Fazendo inclusive com que nós também, leitores, tenhamos a oportunidade de sentir no corpo esse peso.

Para Fernando Pessoa a sensação precisa ser intelectualizada para virar abstrata. Esse fluxo da sensação necessita de uma consciência que trabalha a sensação, misturando-se a ela para que, juntas, se fundam com a escrita. Nesse processo de consciência e intelectualização da sensação,

Fernando Pessoa nos aponta três passos do processo de análise da sensação comum para que se torne abstrata, que é a sensação estética:

(1) A sensação, puramente tal.

(2) A consciência da sensação, que dá a essa sensação um

valor, e, portanto, um cunho estético.

(3) A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão. (PESSOA, s/d, p.192)

Ter a consciência da sensação vai atribuir a ela um valor artístico, todos podem observar as mesmas coisas, o por do sol, um raio, uma forte tempestade, mas, para dar a elas um “cunho estético” é preciso ter consciência da sensação, daquilo que se está vendo. É graças à ação da consciência, desse processo de intelectualização, que o fora se mistura com o dentro que é possível sentir a chuva em seu corpo, tornando possível, assim, fazer uma análise das sensações. A consciência direciona e orienta essa sensação, desta forma é possível fazer um trabalho literário que não seria nem “subjetivista” e nem “objetivista”, ou seja, nem mera expressão, como no romantismo, nem mero trabalho intelectual e construtivo como em algumas vanguardas inclusive contemporâneas a Pessoa.

José Gil nos aponta imagens para percebemos esse processo de consciência da sensação que nos faz pegar as sensações externas e juntá-las com interior.

Imaginemos um pôr-do-sol. Posso percepcioná-lo sem experimentar a menor emoção estética. Para que o contrário aconteça é preciso que eu o veja, que o perspective – em resumo, que dele tome consciência – de acordo com uma certa direção. É preciso que a consciência dessa sensação a oriente,

segundo um modo específico, para outras imagens, outras

sensações. (GIL, 2007, p.32)

Vemos que é preciso que a consciência oriente a sensação para gerarmos outras imagens e sensações. Quando direcionamos a sensação podemos misturá-la com outras, podemos abrir a sensação para imagens guardadas dentro de nós e combiná-la com o que sentimos a nossa volta.

Fazendo nesse instante com que ela se multiplique e saia de um âmbito privado, subjetivo, para o lugar da arte.

Quando se entra nesse processo de se ter consciência de suas sensações, o mundo irá se multiplicar, pois tudo é sempre uma sensação nossa, e este pode acabar sendo um processo doloroso. Abaixo podemos observar um trecho do Livro do Desassossego que nos ajuda a compreender a consequência dessa análise consciente das sensações, Bernardo Soares nos revela toda a angústia presente nesse processo:

Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência d’ellas. Sofri sempre mais com a consciencia de estar soffrendo que com o soffrimento de que havia consciencia. A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para a séde do pensamento, e alli vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida. E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ella, o regime de consciencia em que passei a viver o que sentia, tornava-me mais quotidiana, mais epidermica, mais titilante a maneira como sentia. (PESSOA, 2013, p.195)

É importante que se faça uma análise profunda da importância da consciência na obra de Fernando Pessoa. Além de ela ter o papel de trazer o fora para dentro e levar o dentro para fora, há uma valorização da consciência sensitiva, para que a sensação deixe de ser simplesmente subjetiva e possa se transformar em material poético. Imaginemos a situação de uma dor na perna, por exemplo: não é somente a sensação da perna que deverá ser experienciada. Uma vez obtida a consciência da dor, esta espalha-se por todo o corpo e, logo depois, converte-se em dor do mundo. Tudo é elevado a sua máxima instância. É a consciência da consciência da dor que tem esse papel transformador da sensação. Temos consciência da dor a partir do momento em que ela é formada, fazendo com que a dor não faça mais parte de um ponto específico do corpo e sim de seu todo, dentro e fora. A dor torna-se, assim, abstrata.

Abaixo veremos um trecho de José Gil, que se encontra em seu livro

Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, que nos ajuda a

Ao atingir a consciência, a dor perde um pouco do seu enraizamento local, deixando de ser dor unicamente de certo ponto do meu corpo, para se estender a tudo o que percebo e sinto. Como se se tivesse desligado e flutuasse, torna-se dor

de consciência, não já dor de carne, mas dor abstrata ou forma

abstrata da dor; pois, ao invadir o campo da consciência, grava nela o seu ritmo próprio, a sua pulsação, a sua densidade, a sua acuidade ou a sua tenuidade, que são como que o diagrama da sua qualidade singular e inimitável (GIL, s/d, p.35)

Como se vê, Gil refere-se aqui ao que Pessoa define por sensação abstrata. Aquela sensação que resulta desse processo de desenraizamento, que advém justamente da “consciência da consciência da sensação”, conforme formulava Pessoa. É deste modo que a própria sensação se torna um corpo: como bem explica Gil: com seu próprio ritmo, pulsação, densidade, singularidade.

Com base em tais reflexões vemos, portanto, que, primeiramente, temos a sensação, seguida de consciência dessa mesma sensação. Depois, há a consciência da consciência dessa sensação que, se tornará uma sensação da consciência destinada a intensificar essa sensação. Podemos observar aqui um trecho em que Fernando Pessoa nos fala dessa consciência, e de como deve ser o nosso “estado” ao pensar na poesia:

É que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atônito com as coisas. Como alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas de nada mais se recordando.” (PESSOA, 1966, p.15)

O estado “atônito” de consciência nos faz recordar o famoso trecho de Caeiro, em que ele nos diz: “Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer, /Reparasse que nascera deveras...”. (PESSOA, 2006, p.177). É desse olhar consciente e pasmo, do mundo que nos cerca, que é feita a poesia, do olhar sob as coisas mínimas.

Após passar pelo o processo de consciência, e de sensação, que deve ser esmiuçada repetidas vezes, o poeta deve mostrar-se capaz de intelectualizar e conscientizar a sensações de forma automática. A consciência converte-se, então, em um dos órgãos do sentido do corpo, capaz de multiplicar a sensação logo após sua manifestação.