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Vimos, nesse breve percurso do pensamento de Fernando Pessoa, suas posições frente às questões sociais e artísticas de seu tempo. Sabemos que o poeta possui uma obra extremamente vasta, mas aqui nos ocuparemos somente em observar seu poema sensacionista “Na Floresta do Alheamento”.

Em carta a João Lebre Lima, escrita em maio de 1914 (e que não chegou a ser enviada), Fernando Pessoa explica que o texto de “Na Floresta do Alheamento” deveria ser inserido no Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, mas, no período, só havia saído uma parte na revista A Águia, 2.ª série, vol. IV (julho-dez. de 1913).

A propósito de tédios, lembra-me perguntar-lhe uma coisa... Viu, num número do ano passado, de A Águia um trecho meu chamado Na Floresta do Alheamento? Se não viu, diga-me. Mandar-lho-ei. Tenho imenso interesse que você conheça esse trecho. É o único trecho meu publicado em que eu faço do tédio, e do sonho estéril e cansado de si próprio mesmo ao ir começar a sonhar-se, um motivo e o assunto.

Não sei se lhe agradará o estilo em que o trecho está escrito; é um estilo especialmente meu, e a aqui vários rapazes amigos, brincando, chamam «o estilo alheio», por ser naquele trecho que apareceu. E referem-se a «falarem alheio», «escrever em alheio», etc.

Aquele trecho pertence a um livro meu, de que há muitos trechos escritos mas inéditos, mas que falta ainda muito para

acabar; esse livro chama-se Livro do Desassossego, por causa da inquietação e incerteza que é a sua nota predominante. No trecho publicado isso nota-se. O que é em aparência um mero sonho, ou entresonho, narrado, e — sente-se logo que se lê, e deve, se realizei bem, sentir-se através de toda a leitura — uma confissão sonhada da inutilidade e dolorosa fúria estéril de sonhar. (PESSOA, 1990, p.59)

Fernando Pessoa nos revela nesta carta que mesmo o sonho que lhe é estéril está repleto de sensações, e se expressa num estilo exclusivo dele, embora possa ser encontrado também nos escritos de Álvaro de Campos e Bernardo Soares. Sabemos também que o poeta nos conta que, dentre todos os seus heterônimos, o único que o conheceu foi Álvaro de Campos “Alguns conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Álvaro de Campos” (PESSOA, 1966, p.99). Fernando Pessoa também nos fala entre as semelhanças de Álvaro de Campos e Bernardo Soares, e de Bernardo Soares com o próprio Fernando Pessoa.

Há notáveis semelhanças, por outra, entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos. Mas, desde logo, surge em Álvaro de Campos o desleixo do português, o desatado das imagens, mais íntimo e menos propositado que o de Soares.

Há acidentes no meu distinguir uns de outros que pesam como grandes fardos no meu discernimento espiritual. Distinguir tal composição musicante de Bernardo Soares de uma composição de igual teor que é a minha. (PESSOA, 1966, p.104)

Com isso, é possível aproximar o poema dramático “Na Floresta do Alheamento” do delírio de sensações que Álvaro de Campos nos oferece em seus poemas, sempre envolto por uma angústia e um pessimismo arrebatador, que nos faz perder o chão e os sentidos, impondo-nos uma espécie de entrega completa ao poeta e seus versos.

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu côrpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cêdo ainda... Sinto-me febril de longe. Péso-me, não sei porquê...

N’um torpôr lucido, pesadamente incorpóreo,estagno, entre o somno e a vigília, n’um sonho que é uma sombra de sonhar. Minha attenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.

(PESSOA, 2013, p.75)

Ao entrar no texto, a primeira coisa com que nos deparamos é um sujeito consciente: “Sei que despertei e ainda durmo”; a consciência para Fernando Pessoa não é a consciência moral, que é determinada pela sociedade, e, sim, a consciência da sensação, do processo vivenciar a sensação no corpo como um todo, e de sentir o que foi pensado e refletido em cada parte do corpo.

O corpo antigo do eu-lírico já está flagelado pelo viver, já passou por muitas épocas, mas sabe que ainda é cedo. É possível relacionar esse “cedo” com o tempo em que o poeta vivia, pois ele sabia que sua poesia era para as gerações futuras, que só seria compreendido por alguém de outro tempo.

No parágrafo seguinte o poeta está estagnado entre o sono e a vigília, entrando num mundo outro, que não é nem o da realidade, nem o do sonho, mas o da sensação.

A alcôva vaga é um vidro escuro atravez do qual, consciente d’elle, vejo essa paysagem,... e a essa paysagem conheço-a ha muito, e ha muito que com essa mulher que desconheço érro, outra realidade, através da irrealidade d’ella. Sinto em mim seculos de conhecer aquellas arvores e aquellas flôres e aquellas vias em desvios e aquelle sêr meu que alli vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou n’esta alcova veste de penumbras de vêr...

(PESSOA, 2013, p.75-76)

Neste trecho, temos a presença da consciência, que revela a paisagem, mesmo tendo diante de si um “vidro escuro” que não lhe permite enxerga-lá. Aqui vemos o processo ao qual as sensações foram submetidas. Fernando Pessoa nos fala que as sensações trabalhadas, que passaram por um

processo alquímico, ficam guardadas e podem ser regatadas, quando preciso, pelo poeta. Ele não tem acesso à paisagem, mas a conhece de outros tempos, assim como a personagem que aparece junto a ele, e ambas se fundem enquanto realidade e também irrealidade, numa outra realidade que só aparece na sua irrealidade irreal. O eu-lírico não só conhece as árvores, ele sente séculos de conhecer aquelas árvores. Temos, assim, a consciência sensitiva do poeta.

A nossa vida não tinha dentro. Eramos fóra e outros. Desconheciamo’-nos, como se houvessemos aparecido ás nossas almas depois de uma viagem atravez de sonhos... (PESSOA, 2013, p.77)

Como é possível uma vida sem dentro? Para o eu-lírico só sendo outros. Eis aqui o projeto heteronímico de Pessoa: multiplicar-se em outros e ser desconhecido de si mesmo, “não sei quem sou nem que alma tenho”:

E que fresco e feliz horror o de não haver alli ninguem! Nem nós, que por alli iamos, alli estavamos... Porque nós não eramos ninguem. Nem mesmo eramos cousa alguma... Não tinhamos vida que a Morte precisasse para matar. Eramos tão tenues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixára inuteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo d’uma palmeira. (PESSOA, 2013, p.81)

Aqui observamos sua proposta sensacionista, o sujeito se dissolve, não é nem sujeito e nem objeto, e o tempo não existe. Tudo vira sensação, sensação da “brisa pelo cimo de uma palmeira”. Ao mesmo tempo, notamos o quanto essa proposta nos coloca diante de um poeta moderno, no qual a consciência aguda da crise do sujeito não pode ser ignorada.

Para pensar a escrita de Fernando Pessoa, vale retomarmos os pensamentos (conceitos) barthesianos em relação ao escritor da modernidade. Ele nos fala que:

o escriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que procedesse ou excedesse a sua escritura, não é em nada o sujeito de que seu livro fosse o predicado; outro tempo não há senão o

da enunciação, e todo texto escrito é eternamente aqui e

agora (BARTHES, 2012, p.61)

O texto pessoano não tem outra origem senão a sua própria linguagem, é ela que tece os sentidos, que forma as imagens do delírio verbal que abrem- se em vastas dimensões fazendo da linguagem um corpo pulsante de sensações.

Jerónimo Pizarro, pesquisador de Pessoa, e um dos editores recentes do Livro do Desassossego (2013), nos aponta para um texto escrito por Pessoa, que ele reflete sua escrita em prosa.

Meditei hoje, num intervallo de sentir, na fórma de prosa de que uso. Em verdade, como escrevo? [...]

Supponhamos que vejo deante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá d’ella, “Aquella rapariga parece um rapaz”. Um outro ente humano vulgar, já mais proximo da consciencia de que fallar é dizer, dirá d’ella, “Aquella rapariga é um rapaz”. (...) Eu direi, “Aquella rapaz”, violando a mais elementar das regras da grammatica, que manda que haja concordancia de genero, como de numero, entre a voz substantiva e a adjectiva. [...]

A grammatica, definindo o uso, faz divisões legitimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo, transitivo em intransitivo para photographar o que sente, e não para, como o commum dos animaes homens, o ver ás escuras. (...)

Obedeça à grammatica quem não sabe pensar o que sente. [...] (PESSOA, 2013, p.16,17)

Fernando Pessoa segue fiel ao seu Sensacionismo em todos os aspectos da sua criação. Vemos, por esse trecho, que a linguagem deve expressar aquilo que é sentido e não o que a norma vigente propõe. É preciso saber trabalhar, moldar a linguagem, transformando, dessa forma a escrita em sensação.

O poeta tinha consciência da autoria na modernidade, sabia de sua fragmentação, da fragilidade de um eu uno que não cabe mais na construção da escrita, ou, no caso de Pessoa, na carne do sujeito.

Não sei quem sou, que alma tenho.

Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).

Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. (PESSOA, 1966, p.93)

Com esse pensamento o poeta mostra-se múltiplo, fragmentado, sua escrita não poderia ser diferente. Ao pensarmos no que o poeta nos propõe acima, percebemos que não existe um sujeito que se poderia chamar verdadeiro, que comanda os outros “eus” que o constituem. Cada um desle constitui um fragmento, e seu conjunto uma multiplicidade sem hierarquia, em que a realidade anterior não está em nenhuma e está em todas. Dessa forma, Pessoa rompe com a ilusão de que um dia esse sujeito retomará sua unidade, pois ele nunca existiu.

Fernando Pessoa desenvolve sua escrita, que não busca uma unidade, mas um movimento ininterrupto que só se conclui na leitura. Não há um sujeito empírico do poeta que determine a unidade do sentido, ao contrário, o únco sujeito possível aqui é aquele que se cria junto com a criação do texto:

Pelo contrário, o escriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que precedesse ou excedesse sua escritura, não é em nada o sujeito de que seu livro fosse o predicado:outro tempo não há senão o da enunciação, e todo texto escrito é eternamente aqui e agora (BARTHES, 2012, p.61)

Essas questões de fragmentação e inacabamento são imprescindíveis para adentramos no estudo do poema “Na Floresta do Alheamento”. Para conseguirmos penetrar em sua densa névoa, em suas antigas raízes nodosas, precisamos compreender que a fragmentação não visa uma unificação, temos uma heterogeneidade sem síntese. Para isso faremos recorreremos algumas vezes ao Livro do Desassossego nos capítulos que seguem.

O poema, como já dissemos, teve somente uma publicação, incompleta, na revista A Águia, em nota Fernando Pessoa escreve que o poema pertenceria ao Livro do Desassossego.

Este livro poderá, aliás, formar parte de um definitivo de refugos, e ser o armazem publicado do impublicável que pode sobreviver como exemplo triste.

(PESSOA, 2013, p.527)

Adentrar no Livro é permitir-se a perda, é entrar em uma obra que não pode ser unificada, seu conteúdo é um todo-resultante como uma parte ao lado das partes, uma tentativa de junção sem um todo, preservando a singularidade de cada um dos pedaços, modulando-se sem deixar de existir separadamente. Não temos um catalisador de unidade, essa é transcendente, as relações não estão mais pré-supostas. Nem mesmo sua autoria conseguiu ser exatamente definida, Jerónimo Pizarro em sua “Apresentação” do Livro do Desassossego nos apresenta a seguinte imagem do Livro:

O que é então o Desassossego? Ao meu ver, é uma obra em que há pelo menos três autores à procura de um livro – como as seis personagens que procuram autor na peça de Pirandello - ; uma obra a que faltam (e tal não é necessariamente um demérito) um unidade psicológica e um universo estilístico fechado. (PIZARRO, 2013, p.15)

Jerónimo Pizarro nos apresenta essa visão, pois o Livro do

Desassossego pertenceria a três autores, a princípio. Primeiro temos o próprio

Pessoa como autor do Livro, depois os textos foram colocados como sendo de Vicente Guedes, depois novamente Pessoa, mais tarde temos Bernardo Soares e, mais uma possibilidade de Pessoa. Abaixo segue uma nota de Pessoa, que aparentemente deveria ser algo como um “prefácio” do Livro.

Este livro poderá, aliás, formar parte de um definitivo de refugos, e ser o armazém publicado do impublicavel que pode sobreviver como exemplo triste. (...)

A organização do livro deve basear-se numa escolha, rigida quanto possivvel, dos trechos variadamente existentes, adaptando, porém, os mais antigos, que falhem à psychologia de B[ernardo] S[oares], tal como agora surge, a essa vera psychologia. (PESSOA, 2013, p.527)

O autor, ou autores do Livro nos deixam com fragmentos de notas, que passam pelos anos sempre a espera de alguém com a audácia de organizá-los e publicá-los. Com certeza Jerónimo Pizarro se encaixa nessa categoria, junto a outros editores – como Richard Zenith, Jacinto do Prado Coelho, Teresa Sobral Cunha – que se esforçaram por dar uma ordem, certamente provisória, a esses que eram escritos ainda dispersos, ainda não organizados por Pessoa. No próximo capítulo, adentraremos em “Na Floresta do alheamento”, a partir da porta de entrada que escolhemos, a saber: a estética das forças, formulada por Álvaro de Campos. Será o nosso passo necessário para irmos, pouco a pouco, compreendendo essa escrita das sensações criada e praticada por Pessoa.