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3 – O corpo das sensações

3.2. O corpo plasmático, espaço-tempo da sensação

Como vemos, ao pensarmos o poema pessoano, não podemos deixar de abordar a questão da sinestesia como um dos seus aspectos centrais, bem como ocorre na dinâmica do conceito de corpo sem órgãos. É essa relação sinestésica entre sujeito/objeto que cria o corpo sem órgãos, que ativa a cada instante os diferentes corpos sem órgãos que podem constituir o corpo. E, ainda, sem a sinestesia não seria possível criar uma poética das sensações, uma vez que as sensações, tal como tentamos trabalhar aqui a partir de Pessoa, estão para além dos órgãos dos sentidos, implicando necessariamente em uma fusão desses e em imagens que sugerem sensações não necessariamente vivíveis na realidade orgânica.

Em Mil platôs Deleuze e Guattari nos dizem que devemos compreender o corpo sem órgãos como:

o ovo pleno anterior à extensão do organismo e à organização dos órgãos, antes da formação dos estratos, o ovo intenso que se define por eixos e vetores, gradientes e limiares, tendências dinâmicas com mutação de energia, movimentos cinemáticos, com deslocamentos de grupos, migrações, tudo isso independentemente das formas acessórias, pois os órgãos somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras.(DELEUZE E GUATTARI, 2012, p.16)

Podemos pensar esse “ovo pleno anterior” como o princípio de todos os órgãos, como o óvulo fecundado em que a maioria de suas células ainda não tem um lugar certo no corpo, elas são mórficas, se moldam as necessidades do corpo. O corpo sem órgãos seria este ovo, que tem a possibilidade de se transmutar, de se multiplicar de acordo com a força da sensação.

Esse “ovo” pode, assim, ser concebido como as células primeiras de um corpo humano. Quando estão se formando no útero, a maioria das células do feto ainda não sabem ao que serão destinadas, somente uma pequena parcela dessas células existem com destino certo, todas as outras podem se tornar qualquer parte do corpo. O “ovo pleno anterior” nos dá a mesma possibilidade,

sem estar preso ao organismo, o corpo sem órgãos é livre, ele passeia por intensidades, se alimenta de forças. Com isso, os olhos, que antes só detinham a capacidade de ver, ganham a possibilidade de ouvir e de sentir aromas e os ouvidos ganham a capacidade de ver. Segundo os filósofos, “Ele [o corpo sem órgãos] não é espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau – grau que corresponde às intensidades produzidas.” (IDEM, p.16)

Observemos estas relações neste trecho do poema:

Alli vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medil-o. Um decorrer fóra do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade no espaço... (PESSOA, 2013, p.78)

Temos acima um lugar perfeito para o corpo sem órgãos ser explorado de todas as formas, o lugar onde o “ovo pleno anterior”, que se encontra anterior às estruturas do tempo e do espaço, pode surgir. Pessoa fala em um tempo anterior à sua própria medição, “um decorrer fora do tempo”. Se não é possível medir o espaço, estamos em um lugar anterior às formas e funções determinadas pela realidade. Toda a sinestesia pode fluir livremente pelo poema.

Ao se referir ao heterônimo Álvaro de Campos, José Gil nos ajuda a compreender este lugar em que se dá o corpo sem órgãos, lugar em que interior e exterior não se separam nitidamente:

Foi, portanto, necessário não apenas criar um outro espaço, mas que a coisa exterior e a emoção correlativa fossem substituídas por qualquer coisa diferente: são os órgãos e é, como já vimos, o espaço do corpo que substitui os dois espaços originais, o interior e o exterior. (GIL, s/d, p.67)

Esse interior e exterior que se fundem são também a fusão sujeito e objeto. Essa coexistência é a que cria o espaço do corpo sem órgãos, esse corpo de intensidades, de forças ou de sensação que não ocupa um espaço- tempo empírico.

José Gil também nos aponta que Álvaro de Campos, em sua “Ode Marítima”, explora esse corpo de sensação ao máximo, transmutando-se naquilo que quiser, fazendo com que a força externa se funda com o interior, multiplicando todas as possibilidades de sentido, clamando por essa multiplicidade, vejamos alguns trechos do poema:

A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade Deste impossível universo

A cada hora marítima mais na própria pele sentido! (...)

Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas, Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas, Caí por mim dentro em montão, em monte,

Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão! (...)

Salgar de espuma arremessada pelos ventos Meu paladar das grandes viagens.

Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura, Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência, Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis, Meu ser ciclônico e atlântico,

Meus nervos postos como enxárcias, (...) (CAMPOS, 2006, p.264, 266, 272)

A imagem que nos deparamos é a sensação do tempo na pele: “A cada hora marítima mais na própria pele sentido!”. O maior órgão do corpo humano, a pele envolve todo o corpo, ela é o portal por onde o poeta se abre para as sensações. Adentrando pelo poema, somos bombardeados por uma série de imagens, são elas que vão fornecer para o poeta as sensações. As imagens incluem não só a pele, a carne, mas os nervos. Toda uma corporeidade evocada por Campos, e que, para José Gil, teria como resultado a construção de um plano de composição do poema que é, antes de qualquer coisa, um corpo de sensação, corpo sem órgãos, nos mesmos termos de Deleuze e Guattari.

Devemos nos lembrar de que Pessoa nos fala das sensações das coisas mínimas e é nelas que devemos nos focar para trabalhar e intelectualizar as

sensações. O poeta nos mostra esse processo, de escolha das imagens, que caem sobre ele aos montes e é esse conteúdo confuso que deve ser trabalhado para virar sensação. Podemos nos recordar do exemplo da velocidade, visto anteriormente, e também recordado por José Gil em seu estudo, tal como descrita por Bernardo Soares. A velocidade esmiuçada e tomada em sua força, tornada, assim, sensação abstrata, como vimos:

Para sentir a delicia e o terror da velocidade não preciso de automoveis velozes nem de comboios expressos. Basta-me um carro electrico, e a espantosa faculdade de abstracção que eu tenho e cultivo.

N’um carro electrico em marcha eu sei, por uma attitude instinctivae instantanea de analyse, separar a idea de carro da idea de velocidade, separal-as de todo, até serem cousas-reais diversas. Depois posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da Mera-Velocidade d’elle. (PESSOA, 2013, p.169)

Outro exemplo que nos é dado no Livro de como trabalhar a sensação é a operação de criar um outro corpo para ela, um outro sujeito para senti-la. Um outro corpo para habitar o corpo daquele que sente, como criar um corpo sem órgãos:

Outro methodo, mais subtil esse e mais difficil, é habituar-se a encarnar a dor n’uma determinada figura ideal. Crear outro Eu que seja o encarregado de soffrer em nós, de soffrer o que soffremos. Crear depois um sadismo interior, masochista todo, que gose o seu soffrimento como se fosse d’outrem. (PESSOA, 2013, p.160-161)

Com esse aparato intelectual de analisar as sensações, tornando-as abstratas, Pessoa nos mostra de que forma separamos a sensação do objeto pré-determinado e a deslocamos para qualquer lugar que se queira. Com isso, vemos o corpo sendo pulverizado pelo corpo sem órgãos, o corpo de sensação, seu paladar, sua carne, seus ossos, seus nervos, todos eles se multiplicam e se desdobram para as possibilidades de sensação.

Toda essa sensação que percorre o poema, todo esse corpo sem órgãos gerado por forças, intensidades é um corpo vivo, ele pulsa e Deleuze nos ajuda a pensar esse corpo:

o corpo sem órgãos é carne e nervo; uma onda o percorre delineando níveis; a sensação é como o encontro da onda com Forças que agem sobre o corpo, “atletismo afetivo”, grito-sopro; quando é assim referida ao corpo, a sensação deixa de ser representativa e se torna real (DELEUZE, 2007, p.52)

Como vimos, o corpo sem órgãos desfaz o organismo, ele atua em qualquer lugar do corpo, lugar onde a força externa encontra-se com esses níveis de sensação que percorrem o corpo, dentro disso, podemos observar como esse corpo sem órgãos surge nas intensidades do instante. Zumthor também nos diz que a forma é uma concretização das forças, é uma forma- força que só existe na performance. Ou seja, ela também só existe no instante e tal instante só existe a partir de um encontro de forças. Assim, podemos inferir que não seria difícil atribuir a Zumthor a ideia de que a sensação disparada na performance é sempre resultado de um encontro de forças – dando-se a cada instante.

Dessa forma, na leitura, cada sensação dispara em seu instante uma singularidade: cada sensação é sempre inédita. O corpo deve então tornar-se livre para se permitir todas as sensações possíveis e inesperadas, ele vira uma metamorfose capaz de se transformar por meio do impacto da sensação, fundindo-se com o exterior, no espaço-tempo da sensação. Esse lugar, como vimos, que é o do corpo sem órgãos, pode ser visto como um plasma: o resultado de uma fusão que não se congela em uma forma fixa, está sempre em sua condição plasmática, em uma perpétua formação informe. Inaugurando novas formas provisórias a cada vez, a cada nova sensação. Passear pela floresta é assim passear por essas sequências de novas sensações que modificam o sujeito a cada encontro, a cada palavra, cada leitura.

A nossa vida era toda a vida... O nosso amôr era o perfume do amôr... Viviamos horas impossiveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabiamos, com toda a carne de nossa carne, que não eramos uma realidade... (PESSOA, 2013, p.80)

Vemos aqui uma floresta povoada por intensidades, e são essas intensidades que permitem que o corpo sem órgãos se forme. O amor toma conta do olfato, se transforma em perfume, podendo assim multiplicar a sua sensação, o perfume do amor vira um corpo sem órgãos e, toda a carne se torna consciente de si mesma é uma carne intelectualizada.

Como já abordamos, Deleuze e Guattari nos falam dessas intensidades, o corpo sem órgãos compõe-se apenas de intensidades, e, sendo assim, ele não pode ser um suporte apenas, não teria como possuir um lugar fixo e pré- determinado. As intensidades são forças (retomemos), e portanto circulam e se transformam a todo momento, não possuem parada – ainda que precisem “encarnar-se” na pele, no corpo empírico/biológico que coexiste com o corpo sem órgãos enquanto sua extensão necessária. Mas o corpo sem órgãos, enquanto esse corpo de sensação, só vive de metamorfoses:

Um Corpo sem Orgãos é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. O Corpo sem Orgãos não é uma cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. (DELEUZE E GUATTARI, 1996, p.3)

Como vimos, no caso do poema de Fernando Pessoa “Na floresta do alheamento”, não é somente o corpo humano que conquista o seu corpo sem órgãos, a paisagem também se torna corpo, neste plasma:

Alli aquella paysagem tinha os olhos rasos de agua, olhos parados, cheios do tedio innumero de ser...

(PESSOA, 2013, p.81)

A paisagem adquire órgãos dos sentidos, ela ganha uma visão, ela adquire olhos, e estes não tem mais a sua função orgânica, eles são rasos de água e cheio de tédios, virando assim um corpo de sensação da paisagem.

José Gil, quando aborde a “Ode Marítima” coloca o corpo sem órgãos justamente como o espaço de metamorfose, esse lugar plasmático em que a sensação se encontra em um plano de constantes mudanças, fazendo com que tanto autor quanto leitor tenham a possibilidade de transmutarem-se em

todas as sensações possíveis, de habitarem todas as intensidades que quiserem:

Este corpo define um espaço de metamorfose: <<eu>> posso tornar-me o que sinto, eu posso transformar-me em cada uma das minhas sensações, pirama, marinheiro, mulher, prostituta, pederasta, sadomasoquista. Posso transformar-me em tudo isso, porque não sou eu que sinto: pelo contrário, cada

sensação tornou-se intensidade, quer dizer, energia de metamorfose. (GIL, s/d, p.70)

O Livro do Desassossego está repleto de passagens que nos apontam um pensamento com o corpo, essa construção do corpo no sonho, um lugar em que ele se encontra sempre em devir, sempre como matéria de possibilidades e mesmo impossibilidades. Neste trecho intitulado “Carta” temos uma referência a esse corpo, sempre colocado como matéria moldável, que nos permite a construção do espaço poético concretizado em texto-sensação.

Assim soubesses tu comprehender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o thuribulo da cathedral dos devaneios. Talhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janellas abertas para paysagens novas na tua alma. De tal modo architectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possivel ver-te sem pensar n’outra cousa, que lembrasses tudo menos tu propria, que ver-te fora ouvir musica e atravessas, somnambulo, grandes paysagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas ao fundo de outras épocas, onde invisiveis povos diversos vivem sentimentos que não temos. (PESSOA, 2013, p.132-133)

Aqui, o programa para uma poética dos sonhos, dos devaneios e das novas imagens. O corpo do desassossego, corpo sem órgãos, é um corpo de sonho, de fabulação. Mas nem por isso é menos real. Aliás, retomemos: a sensação é a nossa única realidade, para Pessoa. Talvez para ela seja esse o corpo mais real, esse que nasce no sonho e a ele se dirige – corpo que convive

com o corpo da vigília, como que sendo um alimento para ele, possibilitando a concretização física do corpo sem órgãos através do sonho.

A metafísica também é trazida para reflexão, como um lugar em que as sensações não podem ocorrer, elas só podem acontecer no corpo.

Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior. Sinto isso não metaphysicamente, mas com os sentidos usuaes com que colho a realidade. (PESSOA, 2013, p.95)

Vemos por toda a obra referências ao corpo, Pessoa sabia de sua importância. Ele nos mostra através de Bernardo Soares essa forma mórfica do corpo, que aceita ser trabalhado, ser “talhado” para obtermos a sensação desejada, a sensação do instante. É por esse corpo de sensação que não pertence mais ao lugar orgânico que lhe é dado, aqui o corpo se torna música “que ver-te fora ouvir musica” e as formas que pertenceriam a esse sujeito não são mais possíveis de se reconhecer.

O corpo pode aparecer, assim, muitas vezes como algo que não possuímos, que se constrói no instante, sem uma continuidade, assim como as sensações:

Eu não possuo o meu corpo como posso eu possuir com ele? Eu não possuo a minha alma — como posso possuir com ela? Não compreendo o meu espírito como através dele compreender?

As nossas sensações passam — como possuí-las pois — ou o que elas mostram muito menos. Possui alguém um rio que corre, pertence a alguém o vento que passa?

Não possuímos nem um corpo nem uma verdade — nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões e a minha vida é vã por fora e por dentro.

Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa dizer — eu sou eu?

Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.

Quando outro possui esse corpo, possui nele o mesmo que eu? Não. Possui outra sensação.

Possuímos nós alguma coisa? Se nós não sabemos o que somos, como sabemos nós o que possuímos?

(PESSOA, 1982, p.271)

Assim como não é possível possuir uma sensação, não é possível possuir o corpo e a alma. A cada nova sensação o corpo se transforma, se torna outro, pertence a outro, nunca sendo fixo. Só é possível sentir o instante em que a sensação acontece. Daí já vermos o quanto essa dinâmica da sensação estaria na base da tão discutida heteronomia pessoana.

Assim, nesse laboratório pessoano de sensações que é o Livro do

desassossego, o corpo e sua metamorfose fazem-se sempre presentes. O

corpo tem um papel fundamental em diversas passagens e ele é esse que nos coloca em contato com a sensação, através dele que moldamos nossa forma de nos relacionar com o mundo.

Daí a crise identitária do homem, tão dramatizada na obra de Pessoa: como saberemos que somos se não ao menos podemos ver de fato nosso próprio rosto? Bernardo Soares constrói em torno disso uma imagem curiosa, de como precisamos sujeitar o nosso corpo em uma posição inferior para cometermos a atrocidade de ver nossa própria face. Ao negar o rosto, Fernando Pessoa nos obriga a trabalhar somente com a sensação, a natureza não nos permite ver nossa face, o poeta também não:

O homem não deve poder ver sua própria cara. Isso é o que ha de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder vêr, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.

Só na agua dos rios e dos lagos elle podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era symbolica. Tinha de se curvar, de se baixar para commeter a ignomínia de se vêr. O creador do espelho envenenou a alma humana.

(PESSOA, 2013, p.148)

Fernando Pessoa desfaz esse corpo estático que pensamos possuir e o parte em milhares de pedaços, fazendo com que as sensações povoem cada um de seus contornos, e faz com que a sensação de multiplique de uma forma que ela se torna capaz de ir além dos limites do corpo, temos corpos-

paisagens, corpos-objetos, sempre tendo em mente que tudo aquilo que existe no mundo e em nós são sensações.

Vemos que Fernando Pessoa, ao refletir sobre a poesia, considerou desde o início a importância e presença do corpo. Mas, como vimos, não se trata de um corpo meramente biológico ou meramente ligado aos sentidos. Para ler Pessoa e penetrar em seu universo, é preciso ir além dos sentidos, ir além do vivido para vivenciar a “sensação” – esta que dá no limite em que sonho, imaginação e realidade se confundem. O Sensacionismo aparece assim como a busca por esses estados inéditos do corpo, permitindo a criação de um corpo novo a cada vez, o corpo sem órgãos, corpo do devir, e sendo assim, sempre um devir-outro. Novos corpos povoados de desassossego.