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3 – O corpo das sensações

3.1. Fernando Pessoa e o corpo sem órgãos

Como pudemos observar ao longo do capítulo anterior, a força/sensação é sentida no corpo, cria um corpo. E, dada sua proposta da multiplicidade do sujeito, Pessoa nos coloca frente a um corpo de sensações que não poderia ocorrer como uma unidade: este corpo é fragmentado.

Mas, que corpo é esse? Como ele se forma? Como uma sensação aparentemente abstrata nos é posta como concreta? Ela é sentida no corpo, no físico, não se sustenta mais enquanto abstração. Será necessária a operação paradoxal de uma concretização abstrata da emoção. Ou seja, após passar por todo o processo sensacionista, que alcança aquela que seria a sensação abstrata, sensação própria da arte para Pessoa, ela se encarna em corpo concreto. Corpo de texto, no qual as imagens poéticas são concreções dessas forças. Lembrando que toda a sensação é complexa, composta por mais do que um só elemento e a arte vai personalizar essa sensação, criando um corpo de forças, que é concreto, é real e passível de afetar outros corpos.

É importante reforçarmos, portanto: para Pessoa poesia é corpo, a poesia envolve necessariamente uma relação corporal que implica o concurso efetivo do corpo com o mundo. Não é possível excluir na arte o corpo do: autor, leitor e obra, tudo está inter-relacionado, poesia é pensamento com o corpo, pois é nele que o poema se conclui, na sensação sentida no corpo.

O medievalista Paul Zumthor, em seu Performance, recepção, leitura, vai nos dar um panorama do percurso da presença do corpo na poesia oral e, em alguns momentos, irá sugerir o quanto o corpo também está presente na literatura escrita. Quando nos apresenta essa palavra “corpo”, Zumthor faz a seguinte explicação para nos mostrar de onde parte seu raciocínio:

No entanto, é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele vibra em mim, uma presença que chega à

opressão. O corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. (ZUMTHOR, 2014, p.27)

A partir dessa reflexão, podemos pensar na “estética da força” de Álvaro de Campos vista anteriormente e como ela age no corpo concreto criando os corpos de sensação. Essa relação da leitura com o corpo já tem inicio assim que entrarmos em contato com a obra, precisamos do corpo para pegar o livro e trabalhamos com ele o tempo todo, como, por exemplo: ao nos inclinarmos para iniciar sua leitura.

Zumthor desenvolve seu livro focando-se na ideia de performance, conceito fundamental para o tipo de poesia que ele se dedicou a estudar, a poesia medieval, de tradição oral. Para nós, o que interessa aqui é destacar a performance como esse momento de recepção, quando nós leitores entramos em contato com o texto poético e, a partir disso, sentimos esse corpo ser criado.

Mas devemos nos perguntar: como esse corpo que é criado pela performance está presente na poesia de Fernando Pessoa? Zumthor abre caminho para pensarmos a questão sensorial nos estudos literários, uma vez que a vivência corporal sempre foi negligenciada em vista do texto escrito. Neste sentido, ele propõe a necessidade de se:

Introduzir nos estudos literários a consideração das percepções sensoriais, portanto, de um corpo vivo, coloca tanto um problema de método como de uma elocução crítica. (ZUMTHOR, 2014, p.31)

É isso que Fernando Pessoa busca em sua teoria e, em sua construção poética, abrir essa nova gama de percepção não só na literatura mas também nos estudos literários: trazer essa ideia de um corpo vivo que age através de forças e pensar uma crítica capaz de fazer essas observações.

Observemos este trecho de um poema de Fernando Pessoa: Cansa sentir quando se pensa

No ar da noite a madrugada Há uma solidão imensa

A oposição entre pensar e sentir permeia toda a obra pessoana. Pensar com as sensações e sentir com o pensamento são dois modos buscados pela estética pessoana, no sentido de ultrapassar essas dicotomias. No entanto, essa busca adquire diferentes caminhos e impasses. Nesse trecho acima, sentir e pensar se opõem mas coexistem, e o “ar da noite” é tanto sentido quanto pensado, sem resolução. Percebemos a formação de um corpo de sensação: a solidão, substantivo abstrato, sentimento que poderia ser genérico, ganha o corpo do frio do ar. Torna-se concreta e específica. Assim, torna-se um corpo físico, feito de forças, logo, corpo de sensação. Ele nos faz sentir a solidão no corpo. Pode-se dizer que vemos neste momento a criação daquilo que Deleuze e Guattari chamarão de um “corpo sem órgãos”, um corpo de sensação.

Baseando-se em Antonin Artaud, que inventou o conceito de corpo sem órgãos em na emissão de rádio Para acabar com o juízo de Deus, Deleuze e Guattari ampliam sua discussão, deslocando-a para a filosofia. (DELEUZE E GUATTARI, 2012, p.11) E, em seguida, Deleuze, em seu livro Francis Bacon,

lógica da sensação, definirá este como um corpo de sensações, o que

interessa-nos particularmente aqui, para pensarmos em Pessoa. Como vemos, para Deleuze esse é um corpo feito exclusivamente de forças:

Uma onda de amplitude variável percorre o corpo sem órgãos: traça neles zonas e níveis segundo as variações de sua amplitude. Uma sensação aparece no encontro de um determinado nível da onda com forças exteriores. Um órgão será, portanto, determinado por esse encontro, mas um órgão provisório, que só dura o quanto durarem a passagem da onda e a ação da força, e que se deslocará para se situar em outro lugar. (DELEUZE, 2007, p.53)

Ele nos diz que: uma “onda de amplitude variável” vai percorrer o corpo sem órgãos e são nessas zonas e níveis variáveis que ela atuará, juntamente com a ação de forças exteriores que vai determinar o corpo sem órgãos. É por isso que ele só permanece por um instante, não é possível para o corpo sem órgãos durar mais do que o tempo de uma sensação. A onda de sensação

continua a percorrer criando órgãos provisórios, que portanto obedecem a uma outra organização que não aquela de um corpo biológico, orgânico. Daí os filósofos insistirem que o corpo de órgãos se opõe mais ao organismo do que aos órgãos (DELEUZE E GUATTARI, 2012, p.24). Ou seja, o organismo seria o sistema de organização fisiológica dos órgãos, o lugar fixo, marcado por funções específicas, ao qual cada um deles pertence.

O corpo sem órgãos surge desse encontro, ele pode ser qualquer sensação em qualquer instante. Pensar em um corpo sem órgãos é pensar em intensidades e, é na relação do leitor com o poema, neste momento de leitura – que é o momento de performance, pensando nos termos de Zumthor – que temos o corpo sem órgãos em processo e concretude. É no embate desse momento, sempre único e irrepetível, que ele se cria.

Assim, considerar o corpo sem órgãos implica em voltar nossa atenção para uma dimensão intensiva, ou seja, um corpo feito de forças. Essas intensidades atuam em diferentes níveis e variam sua força, mas não no sentido de mais ou menos “forte” e sim no sentido de mudança de natureza. Não se tratam de sensações mais e menos intensas, portanto. Falar em intensidade já é falar em força, e isso no sentido que vimos o próprio Álvaro de Campos tratar. Essas intensidades percorrem o corpo sem órgãos, que se faz no presente e este presente é um instante que não pode ser capturado, apenas sentido; Deleuze em seu livro acerca da pintura de Francis Bacon esclarece mais este pensamento:

O corpo sem órgãos se opõe menos aos órgãos do que à organização dos órgãos que se chama organismo. É um corpo intenso, intensivo. Ele é percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo, portanto, não tem órgãos, mas limiares aos níveis. De modo que a sensação não é qualitativa nem qualificada: ela possui apenas uma realidade intensiva que nela não determina mais dados representativos, mas variações alotrópicas. (DELEUZE, 2007, p.51)

Junto a esse pensamento, quando Deleuze diz que o corpo sem órgãos se opõe menos aos órgãos do que ao organismo, podemos observar o filósofo

tentando nos mostrar que: a sensação vai ser sentida em qualquer parte do corpo e não será sentida naquele que é nosso corpo empírico, no nível biológico. Daí ela não obedecer ao funcionamento do organismo, que pressupõe uma unidade e funções fixas dos órgãos dos sentidos. A sensação, ao contrário, é sempre sinestésica, e convoca mais de um sentido. Ela afeta os órgãos, mas de modo fragmentário, por isso sua não fixação, ela é passageira.

Mesmo ao pensarmos no corpo orgânico, este que é tratado pela medicina, ele não é “estável”, podendo variar alguns de aspectos: seu tamanho, o lugar em que se encontra e sua forma. Então, os órgãos também não estão inteiramente fixos e isso é algo natural, somente a ideia de organismo é que tende a tornar os órgãos fixos.

Quando excluímos a visão de organismo, dentro da literatura, criamos veredas para que as sensações se espalhem, criando esses níveis e limiares de sensação, todo o corpo sem órgãos é fruto de uma realidade intensiva, aquela que é sentida no corpo.

Dentro daquilo que Fernando Pessoa nos propõe – sentir tudo de todas as maneiras – e, de que as coisas devem ser sentidas por todo o corpo, que a dor deve tomar conta do corpo e não só do local machucado, podemos traçar um pensamento junto ao pensamento que Deleuze faz a respeito da pintura de Bacon:

Libertando da representação das linhas e as cores, ela liberta ao mesmo tempo o olho do seu pertencimento ao organismo, ela o liberta de seu caráter de órgão fixo e qualificativo: o olho se torna virtualmente o órgão indeterminado polivalente que vê o corpo sem órgãos, ou seja, a Figura como sua presença. (DELEUZE, 2007, p.58)

Podemos pensar aqui que Fernando Pessoa faz a mesma coisa em seus poemas, ele rompe com as formas fixas, cria imagens absurdas, transporta o seu leitor e, faz o que quer com ele. Libertando o olho de sua função de somente ler o código e, o coloca no lugar de uma porta, que passa a sensação da leitura para o resto do corpo. O olho perde sua função fixa para se tornar indeterminado dentro da proliferação de sensações que a leitura do poema irá causar.

No poema aqui privilegiado por nós, “Na Floresta do Alheamento”, Pessoa nos passa as sensações da floresta para o corpo:

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Péso-me, não sei porquê...

(PESSOA, 2013, p.75)

Logo nos primeiros versos do poema, temos a presença do corpo. É com ele que atravessaremos a floresta, toda a sensação que permeia o poema vai ser trabalhada no corpo, que no momento já se encontra cansado de viver. É um corpo que tem voz, que não comunica somente aquilo que sente, o que está no interior, mas todas as sensações a sua volta: ainda ser cedo, e a febre que é sentida de longe. Também nos é posta uma inconsciência, pois o corpo está pesado, mas não se tem consciência do motivo. Vemos um corpo que sente por si, não precisando de motivos.

Sinto em mim seculos de conhecer aquellas arvores e aquellas flôres e aquellas vias em desvios e aquelle sêr meu que alli vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou n’esta alcova veste de penumbras de vêr...

(PESSOA, 2013, p.76)

O tempo é sentido no corpo, transforma-se em força que percorre e afeta o corpo, assim como a memória, pois ela reconhece a floresta através da sensação do tempo sentida no corpo. Os órgãos também ganham uma autonomia através da consciência, os olhos se descolam do sujeito que vagueia pela floresta, como se soubessem estar aí, antes mesmo do sujeito estar, e, já percebendo isto, coloca penumbras em sua própria visão. Seriam, talvez, penumbras para mudar a visão de quem entra na floresta? Uma visão poética, talvez?

Passeavamos ás vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um echo de som de fonte. Davamo’-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realisar em carne a illusão do amôr... (PESSOA, 2013, p.76)

Neste momento temos a presença de um outro sujeito que nos é dada através do corpo, dos braços dados sem consciência de vida, sendo somente o corpo da sensação. A carne que pertence ao corpo tem sua estrutura dissolvida e torna-se um “perfume vago”, com isso, o próximo passo é dissolver a própria vida, que se torna um eco de fonte. É possível relacionarmos o eco com a vida, no pensamento pessoano, pois se tudo é uma sensação, a vida deve ser como o eco, sempre ressoando as sensações do interior com as do exterior.

Seguindo o poema, temos as mãos que se encontram, gesto típico de pessoas apaixonadas, andar de mãos dadas; mas, no que isso ocorre, temos a intervenção do olhar, que parece questionar esse mesmo gesto de dar as mãos. Em seguida, o poema coloca a própria sensualidade como um sujeito, ela mesma como um ser que surge quando os corpos se encontram. É uma materialização de um substantivo abstrato. E o corpo aqui é colocado como realizador de ilusões na “carne”, neste caso a do amor. Então temos o amor como uma ilusão, pois o que se concretiza na carne é o ser sensual, aquele que pertence ao corpo.

O movimento parado das arvores; o socego inquieto das fontes; o halito indefinível do rhythmo intimo das seivas; o entardecer lento das cousas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo á alma, do alto silencio do ceu; (...) (PESSOA, 2013, p.77-78)

Aqui, as antíteses são exploradas ao máximo para termos essa sensação de inquietude que permeia a floresta, mas ao mesmo tempo ela é povoada por tédios. Os movimentos parados, o sossego inquieto, o hálito indefinível que pertence ao ritmo são as sensações que habitam a floresta, podemos perceber que ela está viva. Não só está viva, como tem seu próprio tempo, colocado como um entardecer lento, este entardecer cria um corpo e uma mão surge, e ela servira como a união do entardecer lendo e o entristecer longínquo.

Orlas de mares desconhecidos tocavam, no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderiamos vêr, e era-nos a felicidade escutar, até vêl-o em nós, esse mar onde sem duvida singravam caravellas com outros fins em percorrel-o que não os fins uteis e comandados da Terra.

(PESSOA, 2013, p.78)

Podemos perceber aqui como o corpo sem órgãos se faz presente. A orla de um mar desconhecido adquire a função das mãos, tocando as praias, virando, desse modo, um corpo de sensação, que desencadeia outras sensações no sujeito que está na floresta. Este se mistura ao horizonte, que por sua vez é transformado de horizonte visível, posto em paisagem, em horizonte sonoro, que só existe nos ouvidos. A única sensação que o sujeito tem da praia é o som, uma imagem que é simultaneamente visível e invisível, pois o poema diz não ser possível vê-la, mas, neste mesmo instante em que isto é pronunciado, o leitor já é tomado pela imagem visual da praia. E, em seguida, essa imagem é ampliada para seus ouvidos, uma vez que, diz o poema, é ao escutá-la que conseguiríamos de fato ver a praia em si. Os sentidos são assim cruzados e fundidos o tempo todo.

A ideia de espaço-tempo também é dissolvida, a floresta, por se encontrar entre o “sono e o despertar” não poderia fazer parte da Terra, nos seus “fins úteis”, organizados. Portanto os mares que os sujeitos ouvem existir pertencem a outro espaço-tempo, permitindo que a floresta alheia ocorra.

Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus labios, que eu sei que estão pallidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.

(PESSOA, 2013, p.79)

Vimos que o corpo sem órgãos não é feito de vazios e sim de forças, intensidades. Podemos ver essa intensidade representada nestes versos. O sujeito tem consciência que seus lábios estão pálidos, mesmo sem poder vê- los, apenas no toque de um no outro, e os lábios ganham uma matéria intensiva própria, um corpo. A boca não é mais somente parte de um organismo, em que cumpre uma função determinada e única, mas é feita de forças, tem consciência de sua existência fora dessa organização biológica

funcional. A boca se torna dois lábios, quase como dois órgãos, independentes entre si. Ao se sentirem provavelmente frios, desvitalizados, cada um dos lábios sabe não querer ter vida. Esta imagem inusitada possui um grau de intensidade que dura um instante e já causa a sensação de sua singularidade.

Interessante é que os lábios possuem certa recorrência na poética de Fernando Pessoa. Uma operação semelhante ocorre neste trecho do poema “A múmia”: “O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,/ Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis” (PESSOA, 2006, p.119). Aqui o poeta igualmente modifica a função biológica dada à boca, de mostrar o sorriso aos olhos, os olhos perdem sua função no organismo, não são mais um órgão permanente em sua pré-determinação; e assim, através da sensação ele consegue enxergar o “sorriso triste” na mão e não nos lábios.

José Gil, em seu Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações nos mostra como o poema “A múmia” está repleto de semelhanças construtivas com o poema “Na Floresta do Alheamento”, ambos estão repletos de antíteses e desfazimentos, nada se conclui, planos que se constroem somente por intensidades.

A múmia descreve esta fase de desestruturação. O poema é

construído de acordo com uma lógica oposta à das atitudes, gestos e pensamentos comuns: não fui eu que esqueci como mover-me, mas antes: <<a noção de mover-me / Esqueceu-se do meu nome>>; não sou eu que desço da alcova, mas sim esta que <<Desce não sei por onde / Até não me encontrar>>. Tudo está invertido, o espaço, o tempo, a maneira de sentir, e até mesmo a sintaxe que o poeta torce até aos limites das possibilidades da língua. (GIL, s/d, p.65)

Vemos que os mesmos processos ocorrem na floresta; como nos versos a seguir: “ o cansaço que temos é a sombra de um cansaço”, tudo se inverte, a floresta se mostra deformada, dotada de um espaço-tempo que só pertence ao momento em que estamos nela. Essa construção nos permite sentir com mais intensidade, o tempo exige o presente, a sensação do instante, não a continuidade para a sensação, no próximo verso ela já se transmuta em outra sensação.

Não sei que oleos de penumbra ungem a nossa idéa do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem- nos de muito longe, como a nossa idéa de haver a nossa vida... (PESSOA, 2013, p.79)

Agora, o poeta nos coloca o corpo como uma ideia, composto apenas por regiões de intensidades. Vemos a imagem deste corpo sendo banhado por penumbras, e as sensações que deveriam ser sentidas por esse corpo viram somente uma sombra. Assim, quando o corpo assume por um instante o lugar das ideias, o lugar de fora do corpo, suas próprias sensações se tornam um mero reflexo do que deveria ser a sensação concreta.

E ei-la que, ao irmos a sonhar fallar n’ella, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada de nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza.

(PESSOA, 2013, p.80)

Vemos o fluxo de intensidades que percorre a floresta, ela é um corpo pulsante de sensações, que deveriam pertencer ao corpo. Ela está fundida ao sujeito que a percorre, o sujeito, só de se pensar em sonhar com a floresta já tem ela diante de seus olhos. Como que tomada por um encantamento, a floresta está no sujeito, e o sujeito se torna ela. É uma floresta personificada, uma floresta que é corpo, vemos que tanto a tristeza quando a perturbação criam seus próprios corpos de forças. A floresta é só sensação.