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2 A estética da força no Sensacionismo de Fernando Pessoa

2.2. O Sensacionismo e a análise das sensações

A base do Sensacionismo seria essa dinâmica das forças, proposta por Campos: a sensação como força que afeta e modifica aquele que sente. O Sensacionismo pessoano propõe que sintamos “tudo de todas as maneiras”. Como fazer isso? Precisamos criar condições para que possamos sentir tudo da forma que o poeta nos propõe. Esta não é uma simples proposta: o poeta nos ensina a sentir, lembrando que, para sentirmos de todas as maneiras, é preciso que comecemos pelas pequenas sensações, aquelas que não se mostram em primeira instância, aquelas que nos parecem desimportantes e passam despercebidas. O poeta precisa fazer de si um observador, um experimentador que possa destrinchá-las e esmiuçá-las, para que assim sejam guardadas para que possamos desdobrá-las de todas as maneiras possíveis. Fernando Pessoa nos mostra, por meio de um exemplo alquímico, como o “homem de gênio” deve agir nesse processo de decantação das sensações:

O génio é uma alquimia. O processo alquímico é quádruplo: 1) putrefacção; 2) albação; 3) rubificação; 4) sublimação. Deixam- se, primeiro, apodrecer as sensações; depois de mortas embranquecem-se com a memória; em seguida rubificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam pela expressão. (PESSOA, 1966, p.123)

Se fizermos este processo científico das sensações conseguiremos revelar até as sensações mais escondidas e multiplicá-las, podendo dessa forma não só revelar tudo aquilo que as sensações podem nos oferecer como também criar, forjar, fabular sensações e portanto novas imagens. Com esse processo as sensações podem ir além de seu estado original e fundir-se com outras sensações. Podemos imaginar que esse estado original da sensação pode aparecer para o poeta como a linha que costura uma blusa, o que aparentemente pode não significar nada, mas ao passar por esse processo a linha pode se tornar o condutor de tudo que ocorrera para que esta linha chegasse a blusa. Podendo, desta forma, atingir a sinestesia, esta relação entre as sensações que a primeira vista não se relacionam, porém, através da

linguagem poética que alcança todos os sentidos do corpo que a dança sinestésica.

Pensando nesse processo de buscar o máximo que uma sensação pode proporcionar, Fernando Pessoa nos fala como transformar essa sensação em emoção artística.

Passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada. Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência, isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal – o que dá a emoção artística – essa sensação passa a ser concebida como intelectualizada, o que da poder de ela ser expressa. (PESSOA, 1966, p.192)

Para que esse processo se dê, a observação não é suficiente: é preciso que todos os nossos órgãos sensoriais façam, juntos, parte desse processo. A audição, o tato, o olfato e o paladar, aliados à visão, devem operar juntos; caso contrário, jamais chegaremos a sentir de todas as maneiras, a sinestesia é vital no processo da linguagem pessoana. Quando o processo sensacionista é iniciado, as sensações tornam-se cada vez maiores e o espaço exterior funde- se ao interior, assim como acontece no processo das forças de integração e desintegração, conforme a teoria não-aristotélica de Campos.

A partir dessa visão de esmiuçamento da sensação, vemos que as sensações são complexas, elas precisam desse tratamento que o poeta vai dar a elas para atingirem o seu máximo; mesmo a mínima sensação é complexa, ela faz parte de um aglomerado de sensações a serem desdobradas e multiplicadas. Dentro disso, Fernando Pessoa nos fala que o Sensacionismo é a arte das quatro dimensões, pois somente com nossas três dimensões não seria possível libertar as sensações para elas se tornarem sinestésicas:

O sensacionismo é a arte das quatro dimensões. As coisas têm aparentemente — mesmo, na sua aparência visualizada, as coisas do sonho — 3 dimensões; essas dimensões são conhecidas quando se trata de matéria espacial. Só podemos

conceber coisas com três ou menos dimensões.

Mas se as coisas existem como existem apenas porque nós assim as sentimos, segue que a «sensibilidade» (o poder de serem sentidas) é uma quarta dimensão d’elas. (PESSOA, 1993, p.146)

Acima, ele nos mostra que concebemos os objetos como tendo três dimensões, e são as dimensões da matéria. Porém, como a matéria é uma sensação nossa - pois para Pessoa a única realidade para nós é a sensação - a sensação constitui uma quarta e necessária dimensão em vista de sua teoria. É apenas partir dela que percebemos os objetos a nossa volta. Com isso, as sensações criam o seu próprio espaço que, dessa forma, já não separa mais as sensações do interior com o exterior – é desse modo que podemos sentir tudo de todas as maneiras. Uma chuva não será mais só um estado de fora do indivíduo, graças a essa quarta dimensão, ela se torna parte dele, observemos este trecho presente no Livro do Desassossego:

Chove tanto, tanto. A minha alma é humida de ouvil-o. Tanto... A minha carne é liquida e aquosa em torno à m[inha] sensação d’ella.

Um frio desassocegado põe mãos gelidas em torno ao meu pobre coração.

(PESSOA, 2013, p.102)

A arte, portanto, será este momento em que as coisas a nossa volta se encontram com a nossa vivência delas; é nesse exato instante que a arte surge. Dessa forma podemos ter uma alma úmida e até mesmo ver uma árvore quadrada, se a sentirmos quadrada. Como se vê, os sentidos se cruzam e são extrapolados: na sensação artística vai-se além do vivido e dos órgãos do sentido. Uma nova realidade é criada, a partir da sensação.

Para esse processo pessoano de construção poética, é preciso que o poeta analise as sensações. Uma vez que ele passou por todo processo de esmiuçar as sensações, será possível extinguir sua atenção das emoções claras da vida, aquelas que são tidas como grandes emoções e são de fácil identificação, e se volte para as sensações mínimas, como a da chuva citada acima. Aquele que não analisa as sensações mínimas só olha para a chuva,

mas aquele que aprende a refinar as sensações consegue sentir a chuva- sensação em seu corpo, tornando-a mais intensa e clara. E será daí que tirará o poder de expressar novas sensações e forçar o leitor a senti-las também.

Em um trecho do seu Livro do Desassossego, Bernardo Soares vai nos falar dessa sensação das coisas mínimas:

poder encontrar na visão dum poente ou na contemplação dum detalhe decorativo aquella exasperação de sentil-os que geralmente só pode dar, não o que se vê ou o que se ouve, mas o que se cheira ou se gosta – essa proximidade do objecto da sensação que só as sensações carnaes – o tacto, o gosto, o alfacto – esculpem de encontro à consciência; poder tornar a visão interior, o ouvido do sonho... (PESSOA, 2013, p.159)

As sensações das coisas mínimas são capazes de se transporem umas sob as outras; o que se ouve poderá ser sentido na carne. Dessa forma, os sentidos são cruzados, tirando a sensação do seu espaço comum, permitindo que ela se desdobre em novas sensações sempre sinestésicas.