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Fernando Pessoa é um criador de rupturas, buscando, em cada verso, olhares novos para concepções estagnadas. Pessoa nos legou um enorme esforço renovador que sempre aponta para novas veredas. E, como vimos ao longo desta dissertação, o trabalho com as sensações foi a grande estratégia utilizada pelo poeta para criar novos lugares e paisagens (interiores e exteriores). Por isso, é imprescindível é lembrar a base profunda do pensamento do poeta: “a única realidade da vida é a sensação” (PESSOA, 1966, p.137).

É com essa realidade que Fernando Pessoa captura seu leitor, como tentamos mostrar em nossa leitura do poema “Na Floresta do Alheamento”: tanto o estudioso quanto o leitor comum se veem presos nessas estruturas de sensações que o poeta construía e às quais nos submetia, ou “subjugava” o leitor, conforme sua proposta de uma estética da força do heterônimo Álvaro de Campos. Por isso, procuramos mostrar ao longo deste trabalho que Fernando Pessoa não é só o poeta plural, mas como disse Leyla Perrone-Moisés, em seu

Inútil Poesia é o “Pessoa de todos (os) nós” (2000, p.145). Como observa

Leyla Perrone-Moisés, sempre alguém tem algo de Pessoa para dizer, uma frase que se encaixa perfeitamente para elucidar alguma fala, alguma opinião. Porém, isso gera um pequeno problema, diz ela:

O problema é que, cara vez que Pessoa é citado, é em nome de uma verdade; ora, suas verdades são tantas e tão contraditórias que, no conjunto, negam a existência de qualquer verdade. Exceto a verdade fingida da arte, da literatura, do mito. (PERRONE-MOYSÉS, 2010, p.146)

Por que tantas pessoas teriam essa ligação com Fernando Pessoa? Mesmo sem terem o conhecimento da vastidão de sua obra, todos o tomam como um dos principais poetas já existentes, sempre trazendo alguma citação arrancada de algum poema seu. Pensando nisso, após o percurso desta

dissertação, nossa principal conclusão é: a obra de Fernando Pessoa é feita de forças. E são essas forças que exercem um impacto tão grande naqueles que se propõe a entrar em sua leitura, sobretudo porque as forças são anônimas e ilimitadas, são impessoais. Além de forçarem o leitor a sentirem aquilo que o poeta sentiu – parafraseando Álvaro de Campos e sua estética não-aristotélica –, elas não remetem mais a um sujeito particular e fechado em suas crises e angústias privadas. Elevar ou baixar a sensação a seu nível mais elementar, aquele das forças, como vimos, é tornar a sensação abstrata, é fazer da sensação comum uma sensação digna de poesia. Daí todo o projeto sensacionista que foi um dos focos de nossa pesquisa.

Talvez por isso ninguém saia ileso de uma leitura pessoana. José Gil, em seu livro O Devir-Eu de Fernando Pessoa, nos diz que: “Entrar em Pessoa é um perigo: eventualmente não mais de lá se sai.” (2010, p.9) Dificilmente o leitor atento não é de algum modo raptado pelas forças do poema, que, justamente por serem forças, atuam de modos inesperados e incontroláveis pelo sujeito consciente e acordado. Há sempre algo de sonho em Pessoa, como procuramos abordar, e a proposta ao leitor de um sonho compartilhado.

Ao longo de nosso trabalho insistimos no fato de que a obra de Fernando Pessoa tem como fim o corpo, afinal, todo o trabalho da sensação se dá no corpo. E, vale salientar mais uma vez, esse corpo não é só o corpo do poeta e do poema, mas é também o corpo do leitor. Podemos ver nesse trecho do Livro do Desassossego que Pessoa tinha consciência desse trabalho voltado ao leitor: “Quero que a leitura d’este livro vos deixe a impressão de terdes atravessado em pesadello voluptuoso” (PESSOA, 2013, p.97). Realmente, a leitura de Pessoa nada tem de tranquilizante. É preciso colocar o leitor em estado de “desassossego” e de “alheamento” de si, conforme as duas palavras que nos parecem chaves de aproximação a essa poética pessoana das sensações.

José Gil faz uma bela análise, mostrando como a obra de Pessoa se dá no leitor, através de uma leitura do texto de Campos que tanto nos serviu de base aqui, “Apontamentos para uma estética não-aristotélica”, chamando a atenção para o fato de que a poesia de Fernando Pessoa é aquela que nos subjuga, que força as sensações que o poeta sentiu no corpo do leitor:

A obra de Fernando Pessoa não só imporá a sua força sem empregar os meios habituais da captação – a sedução pelo agradável, a argumentação, a explicação – mas subjulgará à maneira do tirano representativo ou da religião dogmática: insuflando nos outros um elemento propriamente irracional, <<inexplicável>> e misterioso, agindo directamente sobre os subconscientes. (GIL, 2010, p.11)

A poesia de Pessoa captura seu leitor, como se o colocasse no canto de uma sala oval, sem portas, em que a busca para uma saída mais parece uma pintura surrealista. Vimos que Pessoa tinha uma grande preocupação com sua época, com seus contemporâneos, achava que enquanto não poetas viviam em um hedonismo exacerbado, os poetas de seu tempo não escreviam uma boa literatura, e tudo isto se devia ao fato de ambos desviarem das sensações e não saberem como trabalhá-las, nem na vida e nem esteticamente.

Pessoa, então, toma esse trabalho para si, transformando sua vida em um laboratório de sensações, visando todas as maneiras de captar as sensações mínimas, para dessa forma, transformá-las em material poético que subjulgará esse leitor. Não é possível entrar em sua obra e não sentir o seu corpo se fragmentando em milhares de pedaços, como um espelho que se parte. Porém, o leitor de Fernando Pessoa sabe que esse espelho é só uma parte de um processo, que antes de ser espelho era areia, e assim por diante. O seu leitor já não pode mais se ver como uma unidade.

Podemos aqui resgatar o escritor italiano Antonio Tabucchi, que em seu

Afirma Pereira (2013) nos mostra essa ideia de Pessoa da multiplicação do

sujeito, e de como ela se encontra em todos nós. Sabemos que Tabucchi era um leitor e um estudioso de Pessoa, por isso nos é um bom exemplo de como essa poesia das forças de Fernando Pessoa atua em seus leitores. Nesta passagem, o médico que cuida da personagem, Pereira, vai lhe expor uma teoria de dois filósofos a respeito de um “eu hegemônico”:

(...) acreditar ser “um” de per si, separado da incomensurável pluralidade dos próprios eus, representa uma ilusão, aliás, ingênua, de uma única alma de tradição cristã, o doutor Ribot e o doutor Jenet veem a personalidade como uma confederação de várias almas, porque nós temos várias almas dentro de nós,

não é mesmo? Uma confederação que se coloca sob o controle de um eu hegemônico (...) que denomina a norma, o nosso ser, ou normalidade, é apenas um resultado e não uma premissa, e depende do controle de um eu hegemônico que se impôs na confederação de nossas almas; no caso de surgir outro eu, mais forte e mais poderoso, esse eu destituiu o eu hegemônico e toma o seu lugar, passando a dirigir a coorte das almas, ou melhor, a confederação, e a primazia permanece enquanto esse eu não for por sua vez, destituído por outro eu hegemônico, através de um atraque direto ou de uma paciente erosão. (TABUCCHI, 2013, p.91)

Não é difícil traçar um paralelo dessa teoria do “eu hegemônico” e a questão da heteronímia em Pessoa. Se temos uma “confederação de almas” somos uma pluralidade, um pulsar constante dentro de nossos corpos, povoados de desejos e sensações. Quem nunca se sentiu como Pessoa, quando ele nos diz “Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio” (PESSOA, 1966, p.91), com a confederação de almas é a mesma coisa. Não nos sentimos da mesma forma, e acabamos mudando de tempos em tempos. Como se nosso “eu hegemônico” desse espaço para alguma outra alma nossa, que foi tendo suas vontades e sensações alimentadas com o tempo, e agora precisa tomar seu lugar.

Ao longo dessa dissertação adentramos o processo de análise das sensações e constatamos sua precedência em relação ao trabalho da heteronímia. “Sentir tudo de todas as maneiras” é, afinal, devir-outro a todo momento, é transformar-se a cada vez, no instante de cada sensação, é viver a metamorfose permanente do corpo e, por consequência, do sujeito que tenta englobá-lo. Essa é a visão de José Gil, para quem o processo da multiplicação heteronímica parte da sensação, é dela que eclodimos em muitos outros:

Para sentir tudo de todas as maneiras, é preciso devir-outro, engendrar o máximo de multiplicidades e pontos de vista sobre mim próprio: exprimo-me o mais completamente possível e da maneira mais intensa exteriorizando-me. E a expressão mais intensa e mais diversa só pode ser obtida através da linguagem poética: a expressão literária de uma sensação representa a

própria essência (‘essência requintada’) dessa sensação. Ora, o que é um heterônimo? Um dispositivo de produção de sensações literárias e de multiplicação dessas sensações. (GIL, s/d, p.227)

A linguagem poética foi antes de tudo, para Pessoa, uma estratégia de vida, um projeto de multiplicação da própria vida, a partir da multiplicação das sensações. Os heterônimos nada seriam além de uma ferramenta criada para esse fim, como diz acertadamente Gil: “um dispositivo de produção de sensações literárias e multiplicação dessas sensações”.

Toda teia pessoana e de seu leitor se encontra atrelada no sentir, é a sensação que impulsiona tudo, essa vontade de “sentir tudo de todas as maneiras” todos os “pontos de vista sobre mim próprio”. Ora é disso que Tabucchi está falando. Pessoa só levou sua pluralidade às últimas consequências. E a transformou em matéria poética. De fato, se Pessoa não tivesse feito isso, e ao invés disso tivesse resolvido exteriorizar todo o seu interior plural o teriam trancado em um hospício. Ele mesmo sabia disso.

Todas essas questões que envolvem os leitores de Pessoa se dão, como diz José Gil e como buscamos explorar, pela forma que ele constrói sua poesia. Vimos anteriormente que sua poética é feita de forças, em que um exterior se funde com um interior, tornando esse interior exterior. Ao fazer isso, Pessoa explode em multiplicidades externas, colocando aqueles que o leem expostos a essa força, que os obriga a serem múltiplos para, no mínimo, compreenderem a sensação que o poeta nos está forçando.

A obra de Pessoa está repleta desses exteriores. Coube-nos aqui tentar trazer, em alguns exemplos de sua poesia, momentos em que o poeta toma elementos de fora e os transforma em internos. Quando lemos seus poemas, todos estes elementos exteriores entram em nós, assim como as múltiplas vozes que estão presentes nele. Com isso, mesmo ao lermos Fernando Pessoa silenciosamente, ou melhor, principalmente quando lemos ele silenciosamente, somos tomados por uma multidão que percorre cada pedaço de nossos corpos. Campos, neste sentido, é o heterônimo em que Pessoa mais condensou essa sua doutrina da multiplicidade de vidas e sensações:

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como varias pessoas,

Quanto mais personalidades eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Quanto mais simultaneamente sentir com todas ellas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente attento, Estiver, viver, sentir, for,

Mais possuirei a existencia total do universo, Mais completo serei pelo espaço inteiro fóra, (CAMPOS, 2014, p.164-165)

Como não ser inundado de multiplicidades perante este poema? Como não se subjulgar a força que ele contém? A leitura deste poema se torna um eco infinito dentro dos corpos que o leem, todo o poema é construído buscando a pluralidade, o universo. O espaço interno tem seu avesso exposto e este avesso se funde com o que antes era interno, tornando esse interior exterior.

Se por um lado, não há como negar que Fernando Pessoa seja um poeta moderno, e dos maiores, por outro, acreditamos ser preciso enxergá-lo para além de sua época, dono de uma modernidade estendida, que chega até nós – uma modernidade do agora. A poesia de Pessoa é a poesia do agora, ele é contemporâneo de todos, pois todos os elementos, tanto de sua poesia, quanto de sua teoria percorrem todo o século XX e entra no XXI, muitas vezes, a frente daqueles que já deveriam ter levado adiante seus pensamentos. Mas também é o poeta do agora pois é o poeta da sensação e, como vimos, o tempo da sensação não poderia ser outro senão o do instante, que se renova a cada passo de nossas vidas – e, certamente, a cada passo de nossa leitura. A cada passo em que, entrando “Na Floresta do Alheamento” de Pessoa, assistimos à metamorfose constante de um corpo e um sujeito à mercê das sensações.

Quantas vezes Pessoa não é lido como um romântico? Um religioso? E até um otimista? Não achamos em momento algum que esta dissertação teve a pretensão de abarcar a vasta literatura e teoria de Pessoa, mas é preciso que se comece a encarar sua obra como um conjunto, como a sucessão de um árduo trabalho das sensações. Como vimos, seu Livro do Desassossego é

um laboratório em si próprio, em que cada fragmento lido nos trás alguma informação de como enxergar sua obra, de como sentir de todas as maneiras.

Esperamos ter trazido à luz essas novas formas de se ler Pessoa, com o auxílio de pensadores como José Gil e Deleuze, que permitem um novo olhar para a obra deste grande poeta. Uma visão que coloca Pessoa ao nosso lado faz dele nosso contemporâneo, alguém que pensa questões extremamente atuais, tanto na literatura quanto na filosofia. Pessoa tentou romper com os dogmas de seu tempo, romper com um eu encarcerado por séculos de valores morais e religiosos, nos devolvendo nosso corpo, esquecido pela literatura e pela filosofia por tanto tempo.

Após esse trabalho não é possível viver da mesma maneira, com sua poesia da subjugação Pessoa modifica todos aqueles que se atrevem a fazer sua leitura consciente, uma leitura do abismo. Um estudo em Pessoa dificilmente terá um fim, sempre se abrirão novas questões, novas formas de sentir e de pensar a construção da poesia. O importante é que surjam sempre novas almas dispostas a encarar o desafio imposto pelo poeta.