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2 A estética da força no Sensacionismo de Fernando Pessoa

2.5. Devir-outro, o malogro do “eu”

A única maneira de teres sensações novas é construires-te uma alma nova. Baldado esforço o teu se querer sentir outras cousas sem sentires de outra maneira, e sentires de outra maneira sem mudares de alma. (PESSOA, 2013, p.141)

Retomemos o início do poema “Na Floresta do Alheamento”: “Sei que despertei e ainda durmo” (p.75). Podemos observar que: assim que entramos no poema nos deparamos com um sujeito em um estado duplo. Ele se encontra entre o sono e o despertar, e tem consciência de ambos os estados, demonstrado pela escolha lexical do verbo ser: “Sei”.

É esse estado de consciência, já analisado anteriormente, que vai permitir ao poeta voltar-se para a questão da multiplicidade, da impossibilidade de sentir tudo sendo apenas “eu”, ou um eu uno, indivisível, fixo, idêntico a si mesmo. Esse “eu” pertencente a uma tradição poética é somente um malogro, algo que nunca foi possível. Esta consciência da inexistência do sujeito uno, romântico, irá permear toda a obra do autor. A unidade já não se faz presente

na arte de Pessoa, e veremos isso mais profundamente no poema que trazemos aqui:

Minha attenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho. (PESSOA, 2013, p.75)

Esse sujeito, que já inicia o poema em desdobramento, agora perde-se entre profundezas, entre o infinito do mar e do céu que se misturam, não permitindo àquele que se percebe em desdobramento, fixar-se em nenhuma determinação. Um estado de consciência que não cria raízes, não se encontra uma origem. Só temos a presença da sensação, o espaço se dará sempre como incerto.

Fernando Pessoa escreveu diversas vezes que: “ a sensação é a única realidade para nós” que devemos “sentir tudo de todas as maneiras”. Para conseguirmos sentir tudo de todas as maneiras é preciso multiplicar-se, deixar a perspectiva única de um sujeito estável e uno. Quando nos deparamos com esta lógica do raciocínio pessoano, somos levados a encarar nossa concepção de sujeito por outro viés. Não é possível adentrar a poesia de Fernando Pessoa sem aceitar que há nela um questionamento das chamadas Literaturas do “eu”, que proliferavam desde a visão romântica do mundo,2 seja na poesia, seja no romance burguês dos séculos XVIII e XIX. Como podemos observar no trecho do poema abaixo, em que, em meio a penumbra, surge um outro:

E quem é esta mulher que commigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de m’o perguntar?...Eu nem sei querel-o saber...

(PESSOA, 2013, p.75)

Aqui vemos um novo sujeito que surge. Mas surge como? Ele não representa uma unidade e, sim, uma forma de despersonalização. O sujeito surge envolto pelo tema do alheio, que da título ao poema (um dos poucos com título no Livro do Desassossego), nos dando a sensação de incerteza quanto                                                                                                                          

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   Benedito Nunes (1978), em seu artigo “A visão romântica” fala que há uma “visão romântica” que prevalecia nas artes no séc. XIX, e que ela se deve muito às filosofias do romantismo, que apregoavam a centralidade de um Eu Uno e essencial.

a sua presença, o alheio nos espreita por toda a construção poética. O poema segue, nos colocando mais questionamentos sobre a persona que surge:

A alcôva vaga é um vidro escuro atravez do qual, consciente délle, vejo essa paysagem,... e essa paysagem conheço-a ha muito, e há muito que com essa mulher que desconheço érro, outra realidade, através da irrealidade d’ella.

(PESSOA, 2013, p.75-76)

Esse “eu” alheio, que anteriormente diz não conhecer o outro que surge, se mostra consciente de sua situação. Ele sabe-se vendo por um vidro escuro, mas é através da consciência dessa sensação que essa paisagem torna-se reconhecível, mesmo que de forma vaga. A mulher que havia aparecido como uma estranha se torna parte desse alheamento, sendo reconhecida através de outra irrealidade, que é compartilhada com esse sujeito que narra. Esse reconhecimento de realidades e irrealidades vai dando forma á construção dos universos pessoanos, esses desdobramentos infinitos que obrigam essa fusão de interior com exterior, criando essa explosão interna, que age de forma criadora.

Antes de continuarmos nossas observações é preciso atermo-nos a uma questão de extrema importância presente no poema: o alheio. O alheamento se faz presente desde o início e, para entramos na prosa poética pessoana, é preciso compreender que ele nos acompanhara por todo o percurso da floresta, que é alheia.

Podemos começar pensando este alheio como um não-pertencimento, o sujeito que se encontra na floresta se encontra também alheio a ela, se mantém distante, como alguém que observa somente as sensações e não os espaços. A floresta pertencerá sempre a outrem, será sempre outra, por isso não é possível que ela seja qualquer coisa fixa, ela se encontrará sempre alheia, assim como os sujeitos que a percorrem:

Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ancia passiva é a vida falsa que me estreita... (PESSOA, 2013, p.76)

Aqui, antes de entrar no alheio, observamos a consciência que vem do sonho: é no sonho que ele revela a perda desse sujeito, que se percebe outro. A multiplicidade se inicia com um “duplo de ser eu e essa mulher” que manifesta esse sujeito-outro, que logo em seguida é tomado por um grande cansaço, sua ânsia é uma passividade envolta por uma vida falsa, alheia.

Em um artigo intitulado “Uma cifra três vezes alheia”, Ana Paula de Bortoli e Lígia Maria Winter irão dissertar sobre o “alheamento poético” presente no Livro do Desassossego e no poema “Na Floresta do Alheamento”. Elas nos colocam frente à questão do alheio que permeia todo o

Livro, pois, ao se autointitular como um livro, uma forma fixa e acabada, o Livro do Desassossego se fará sempre alheio, nunca tendo a possibilidade

de um fim, uma vez que permanece em fragmentos soltos e inacabados só sendo possível tornar-se livro, obra, na mão de editores dispostos a dar-lhe algum tipo de ordem. Portanto, ele por si só será sempre outro, sempre alheio a sua própria condição de livro. Abaixo elas nos falam sobre o poema “Na Floresta do Alheamento”:

Primeiramente, trata-se de um texto que carrega o alheamento já no título. Todavia, o próprio fato de existir um título demonstra um teor não-fragmentário que destoa das demais partes do Livro. Sendo assim, trata-se, ao mesmo tempo de um texto representativo e não representativo do alheamento e do modo de seleção dos organizadores do livro, que acaba sendo representativo, mesmo que às avessas, por sua “incoerência coerente”: um texto não fragmentário é também um alheio entre os fragmentos, selecioná-lo é também trair a ideia de coerência interna que destoa de um livro que se quer

fragmentário. (BORTOLI E WINTER, 2010, p.4)

Podemos observar, com isso, que o poema “Na Floresta do Alheamento” é alheio ao próprio livro que o abarca, ele acaba sendo fragmento dos fragmentos que compõe o Livro, fazendo com que aqueles que trabalhem em suas edições também tenham que lidar com o alheamento quanto a escolha do lugar que o poema terá na construção da edição da obra. Uma obra alheia a si mesma. As autoras também se voltam para a primeira parte do poema, que lemos acima, apontando que o sujeito se encontra em um estado de sonho,

inconsciente, mas esta inconsciência é lúcida, o verso já citado (“Sei que despertei e que ainda durmo”) nos aponta assim a possibilidade de “uma voz narrativa capaz de transforma-se em outras, alheia a si” (BORTOLI e WINTER, 2010, p.5).

A nossa vida não tinha dentro. Eramos fóra e outros. Desconheciamo’-nos, como se houvessemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem atravez de sonhos... (PESSOA, 2013, p.77)

O eu que era duplo, agora fora de si3 se transmuta em outros. Esse sujeito que se faz no fora, e não no interior, rompe com o legado da unidade interior romântica. Para multiplicar-se é preciso estar atento ao fora, ao alheio e não a uma subjetividade interior, sacramentada pela tradição poética. O sonho aqui traz um caráter angustiante, é ele que torna o sujeito desconhecido para si, trazendo após essa viagem de sonhos os outros que o constituem.

Nós sabiamos alli, por uma intuição que por certo não tinhamos, que esse dolorido mundo onde seriamos dois, se existia, era para além da linha externa onde as montanhas são halitos de formas, e para além d’essa não havia nada. E era por causa da contradicção de saber isto que a nossa hora alli era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso sentil-a era estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outomnal...(PESSOA, 2013, p.78)

A floresta, a alcova, não é um lugar livre de dores e de sofrimento que se foge para buscar abrigo. Estar nessa floresta causa dor e sofrimento; as certezas são formadas por incertezas “por uma intuição que por certo não tínhamos”, a única certeza que temos aqui é a da sensação, nada existe além dela. Esse mundo se forma além, alheio, após as montanhas que se fazem presentes por serem “halitos de formas” e para além disso, nada existe. Quase- formas, não são formas fechadas, podemos pensá-las como sensações,                                                                                                                          

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 Michel Collot,(2004) em seu artigo “O sujeito lírico fora de si” nos coloca frente a questão do

sujeito moderno que se encontra “desalojado” de sua interioridade. Este sujeito “fora de si” é obrigado a ir em direção ao exterior, não é mais um sujeito soberano de si mesmo. Não considerando mais sua interioridade, sua identidade.

sugestões de formas que agem em movimentos que nunca se fixam, não tendo nem mesmo a duração de um instante. Dessa forma, podemos perceber que: assim como o sujeito é sempre outro, as formas também não estão fixas.

Em um trecho do Livro, intitulado “Esthetica do Artifício”, Bernardo Soares discorre sobre a estética do alheamento:

Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas colleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito esthetico e falso que fiz de mim-proprio. Sim, é assim. Vivo-me estheticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estatua de materia alheia a meu ser. Ás vezes não me reconheço, tão exterior me puz a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciencia de mim próprio. Quem sou por detraz d’esta irrealidade? Não sei. Devo ser alguem.(...) Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Porisso me esculpi em calma e alheamento e me puz em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas (PESSOA, 2013, p.67)

O alheio nos é apresentado como uma estética, não é possível ser outros no corpo empírico, mas é possível fazer a criação estética do outramento. O alheamento é essa passagem para o outro, quando o poeta, alheio a si, debruça-se sobre a obra a esculpe em matéria alheia, matéria poética. O Livro do Desassossego vem preencher essa necessidade do outro e do alheio. O autor desses trechos todos, Bernardo Soares, não atinge a condição de heterônimo, sendo sempre um semi-heterônimo, sujeito esse que não se conclui, alheio aos outros, sempre em devir, sempre em uma aparente espera de concretização. Essa aparência também leva à reflexão da construção de Bernardo Soares por Fernando Pessoa, este já havia dado a ele a semi-heteronímia: será que esta era a única forma de dar ao Livro do

Desassossego um autor?

Como só é possível viver esteticamente em outro através da escrita, vemos no final da reflexão a necessidade do isolamento, estado necessário para uma criação estética calma e alheia. Sua própria matéria sendo alheia já não permite que aquilo que temos por construção de sujeito tenha algum papel na construção estética, ela só pode ser feita de sensações.

O poema segue, mostrando esse “livramento” do eu petrificado, ao passo em que ele vai mostrando como o esquecimento proporciona a liberdade de “sermos nós”:

E assim, o murmúrio das aves, o sussuro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham á nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos alli acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da côr dos amores e do sabor dos odios. Julgavamo’-nos immortaes... (PESSOA, 2013, p.78-79)

Aqui, nos parece, que tudo aquilo que já pertencera a um sujeito é misturado à floresta, “como dois fumos que se fundem” as aves murmuram e os arvoredos sussurram. Nesse instante, a personificação da natureza parece desafogar aquele que narra e, é tirado o peso do abandono, como se o esquecimento fosse um esplendor, um presente divino.

Ao permitir essa multiplicidade do sujeito, contente por não ser nada temos um sujeito maleável, que está aberto para que qualquer sensação seja construída nele. A possibilidade de querer buscar respostas na unidade de um sujeito, que tem uma origem não cabe mais na realidade do poema. Essa multiplicidade só é possível em sonho, no alheio e na poesia, com isso, temos um eu-lírico que só atinge suas sensações em sonho, no devaneio “dormimos alli acordados dias”.

Alli vivemos horas cheias de um outro sentirmol-a, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeita por isso, tão diagonaes á certeza rectangula da vida... Horas imperiaes depostas, horas vestidas de purpura gasta, horas cahidas n’esse mundo de um outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias (PESSOA, 2013, p.79)

Ao viver “horas cheias de um outro sentirmol-a”, o poeta nos coloca a face de sua percepção de sujeito, ele não é um reflexo fragmentário de uma unidade, mas de um outro que vai tecendo forças dentro da sensação, vivendo os instantes. E que é “perfeito” por ser uma interioridade vazia e imperfeita (veja-se aqui mais um de seus oximoros). As horas aqui, novamente, não vêm

para marcar o tempo ou o espaço, mas o tempo se constrói como uma manifestação da pluralidade de sensações do sujeito: “horas cahidas n’esse mundo de um outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias”.

Nenhum de nós tem nome ou existencia plausivel. Se pudessemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, ririamos sem duvida de nos julgarmos vivos. O frescôr aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nús.

(PESSOA, 2013, p.79)

“Que importa quem fala, alguém disse, quem importa quem fala”, podemos nos remeter a Samuel Beckett em O inominável,4 quando esta pluralidade que fala no poema se coloca: sem nome e sem uma existência admissível além desse alheio, pois, para admitir-se seria preciso nomear-se, este “sujeito” já não aceita mais nomes. Mas, ao contrário daqueles que se voltam para o questionamento desse sujeito que fala, Pessoa desdobra toda a multiplicidade dessa percepção do sujeito em sensação, em corpo e em força; material este de que é feita sua obra, em que esse corpos de sensação são tão físicos que sentem-se, um ao outro, através da pele que se abre como porta de entrada das sensações.

E o poema segue, alheio a si e à construção de uma poética que leve a uma unidade, levando o leitor do poema a se entregar ao fluxo das multiplicidades:

Desenganemo-nos, meu amôr, da vida e dos seus modos. Fujemos a sermos nós... Não tiremos do dedo o annel magico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silencio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...

(PESSOA, 2013, p.79-80)

                                                                                                                          4

 Em uma conferência intitulada “O que é um autor?” publicada em 1979, nos Estados Unidos, Michel Foucault irá questionar o papel da autoria, nos colocando diante dos debates modernos e contemporâneos que modificaram o pensamento vigente em relação àquele que escreve. Nesta conferência ele cita esse trecho do romance O inominável como exemplar acerca do sujeito na escrita moderna (FOUCAULT, 2006, p. 267-268).

Ao nos propor “fujemos a sermos nós” somos transportados para os mesmos questionamentos dos poemas, também somos encarados como múltiplos. E, como em uma brincadeira, o poeta nos transporta para possíveis mundos de fantasia, com o anel mágico, as fadas e os elfos, quem sabe assim apontando que esse sujeito único é tão fantasioso como o mundo criado para nós na infância.

Eramos impessoaes, ocos de nós, outra cousa qualquer...Eramos aquella paysagem esfumada em consciencia de si própria... E assim como ella era duas – de realidade que era, e illusão – assim eramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não elle-proprio, se o incerto outro viveria...

(PESSOA, 2013, p.80)

Toda a floresta é povoada pela multiplicidade, os “sujeitos” não se contentam mais com os próprios corpos e se tornam paisagem, no processo de multiplicação perdemos a percepção de sujeito-objeto, esses não são nada mais que “dois fumos que se misturam”.

Alli aquella paysagem tinha os olhos rasos de agua, olhos parados, cheios do tedio innumero de ser... Cheios, sim, do tedio de ser, de ser qualquer cousa, realidade ou illusão – e esse tedio tinha a sua patria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhamos sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos á beira d’aquelles lagos, tanto de nós com elles ficava e morava, symbolizado e absorto...

(PESSOA, 2013, p.81)

E o que deveria ser uma paisagem recebe partes do que deveria estar em um sujeito para ser admissível, a paisagem tinha “olhos rasos”, cansados de ser. Temos quase um manifesto daquilo que uma vez foi nomeado, que teve suas possibilidades castradas. E os sujeitos que caminham nesta paisagem se misturam a ela, através do absorto, do alheio vai se modificando. A cada instante uma nova sensação surge, modificando paisagem e sujeito para sermos apresentados a essa paisagem-sujeito que se constrói no poético.

E que fresco e feliz horror o de não haver alli ninguém! Nem nós, que por alli íamos, alli estávamos... Porque nós não eramos ninguem. Nem mesmo eramos cousa alguma... Não tinhamos vida que a Morte precisasse para matar. Eramos tão tênues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixára inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma briza pelo cimo d’uma palmeira.

(PESSOA, 2013, p.81)

Fica-nos a sensação de que ao adentrar a floresta fazemos um pacto com o alheio, se o leitor tentar entrar no poema com alguma convicção de unidade, ele será estraçalhado a cada tentativa de continuidade na floresta. Não existe direção e não existe uma volta, nem a morte se faz presente nesse espaço percorrido, em que o vento molda esse sujeito sem tempo, em que a hora é uma briza. A inexistência do tempo também atua como uma anulação do espaço fixo, permitindo essa fusão entre sujeito e paisagem.

Não tinhamos época nem propósito. Toda a finalidade das cousas e dos seres ficára-nos á porta d’aquelle paraíso de ausência. Immonilisara-se, para nos sentir sentil-a, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma nubil das flores, a alma vergada dos fructos...

(PESSOA, 2013, p.81)

Novamente a inexistência temporal, sem época nem propósito, não nos permite fixar esse sujeito, que não se vê como sujeito e sim como força, pois sente “a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas”. Sentindo tudo de todas as maneiras.

Após aceitarmos todo o percurso alheio que a floresta nos coloca, o caminho que nos é apresentado para pensarmos este sujeito “eu-outro” proposto por Pessoa, nos leva a levantarmos uma série de questões. Para isso, precisamos buscar novas formas de se ler Pessoa, a partir de pensadores e críticos que enxergam a novidade filosófica presente na obra do poeta, permitindo assim que toda a questão da multiplicidade que permeia sua obra seja percebida como parte de um processo de toda a sua construção poética e teórica.

Pensar o sujeito em o Pessoa é perceber não somente a questão da heteronímia, mas compreender que este “eu” da obra de Pessoa se encontra sempre em conflito, em mutação. Essa construção vai surgir de uma constante relação do poeta com a consciência. É a partir dela que o processo da construção poética, no qual o eu é sempre outro, se torna possível. Ou seja, essa consciência não remete a um sujeito fixo, ela também está em processo continuo, modificando-se a cada novo encontro com o mundo, com as coisas mínimas de seu entorno. A consciência em Pessoa está descolada do sujeito, ela é submissa ao corpo, conforme o corpo da sensação vai sendo construído