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Desde que as tecnologias de produção, reprodução e difusão de produtos culturais passaram a se desenvolver e fazer parte do cotidiano de uma grande massa da população mundial, elas receberam permanente atenção do olhar questionador a partir do campo científico.

Passando de fatores técnicos altamente especializados a equipamentos tecnológicos produtores de imagens manipuláveis ao alcance da mão (como os já populares smartphones), os meios de geração, circulação e consumo midiático foram-se aperfeiçoando, facilitando sua utilização e se firmando como

itens indispensáveis para o dia-a-dia do homem pós-moderno. Hoje, ao mesmo tempo em que existe fácil acesso mercadológico e de operacionalização desses meios, salienta Wolton (2010, p. 22-24), há também limites impostos, como preço a ser pago por esse triunfo, como um certo individualismo (redução da comunicação ao compartilhamento puro, sem interação) e o comunitarismo (encarceramento dos indivíduos em espaços virtuais que ignoram a alteridade e o argumento contraditório)4.

Para além das discussões sobre suas possibilidades e fronteiras, passamos a discutir o papel dos meios de comunicação como tecnologias do imaginário no mundo pós-moderno. Partindo dos pressupostos apresentados nas páginas anteriores que nos fazem entender o imaginário como um motor e um reservatório de sentimentos, concepções de mundo, imagens, mitos e símbolos compartilhados entre os membros de um grupo ou uma sociedade, é necessário grifar que tais tecnologias existiram em outras roupagens ao longo da história e, atualmente, se configuram nos meios de comunicação. É o que Durand já salientava e enumerava em seus prospectos sobre o imaginário:

Outrora, os grandes sistemas religiosos desempenharam o papel de conservatórios dos regimes simbólicos e das correntes míticas. Hoje, para uma elite cultivada, as belas-artes, e para as massas, a imprensa, os folhetins ilustrados e o cinema veiculam o inalienável repertório de toda a fantástica. Por isso, é necessário desejar que uma pedagogia venha esclarecer, senão ajudar, esta irreprimível sede de imagens e sonhos (DURAND, 2002, p. 431).

Durand faz, mais do que a caracterização do imaginário, um alerta para uma sociedade em que se percebe crescentemente permeada por imagens e símbolos: importa compreender como se dá essa profusão imagética em proporções industriais e esclarecer de que forma ocorre a relação que os seres humanos estabelecem com elas. Ainda mais urgentemente porque, do tempo do qual datam seus escritos, as tecnologias atuais do imaginário se popularizaram e espalharam em escala planetária. Pode-se dizer, inclusive, que, ao contrário da diferenciação feita por Durand entre elites cultivadas e massas, hoje o

4 Há, no entanto, grande espaço para divergência sobre o alcance, benefício se limitações à

socialidade diante desses meios. Aqui, sinaliza-se pela compreensão segundo a qual os meios de comunicação são capazes de gerar agregação e sem, no entanto, abdicar da visão crítica que aponta seus limites.

repertório do imaginário em circulação é amplo, não mais possuindo a mesma relevância de outrora a diferença entre as "classes culturais".

Neste sentido, o conceito de tecnologias do imaginário cunhado por Silva (2003) é crucial para compreender a produção e difusão dos imaginários hoje. Porque, para além da predominância das imagens na cultura do cinema, da televisão, do Youtube, dos memes de internet, e tantos outros, os indivíduos estabelecem com elas uma relação de afetos e sentidos de estar no mundo.

É hora de explicitar por que tipos de mecanismo os imaginários se propagam. Ao falar em tecnologia, abordam-se produtos utilizáveis com os mais diversos fins no seio da cultura humana. No caso das tecnologias do imaginário, esse uso está interligado a nossa capacidade de simbolização e produção de narrativas. São os meios pelos quais o imaginário pode ser expressado, sejam eles artefatos físicos e modos de expressão.

A complementaridade dos termos “tecnologia” e “imaginário” é indispensável para pensar o mundo de ubiquidade midiática: "O imaginário é uma força; a tecnologia, um catalisador" (SILVA, 2003, p. 48). Entende-se desse modo que o imaginário e os canais pelos quais ele navega precisam ser compreendidos conjuntamente nas sociedades hiper-espetacularizadas, mas ressaltando sempre que as tecnologias são o meio propagador do primeiro. O imaginário, enquanto força de reserva/motor simbólico nas sociedades precisa, por sua vez, de tecnologias pelas quais possa ser visto, concretizado diante dos nossos olhos e para além de nossos sonhos.

Silva, assim como Durand já apontava, faz um breve memorial das diferentes tecnologias do imaginário já existentes em períodos históricos diferentes (2003, p. 67-69). Para o pesquisador brasileiro, o teatro representa a era primitiva das tecnologias do imaginário, pois "como o moinho, não arranca nada da natureza nem adultera o meio". O livro abre as portas do período pré- industrial dessa tecnologia, que se caracteriza por ser produtora de dispositivos de controle. Já o rádio, o cinema e a TV fazem parte da fase do "maquinário poluente" da produção simbólica; mais recentemente, a internet e a publicidade constituem o período pós-industrial: com baixa interpelação da natureza na sua produção, serve de instrumento de sedução e também reunindo tecnologia de ponta aos aspectos arcaicos da convivência (MAFFESOLI, 2012; SILVA, 2003).

Essa separação é meramente didática e cronológica. O importante é que, seja qual for o mecanismo de expressão, haja "a conjunção de meios, técnicas, procedimentos, veículos e formas de expressão numa técnica, a publicitária, baseada na leveza, na aceleração, no divertido e no lúdico" (SILVA, 2003, p. 70). Cada um deles possui um modo próprio de funcionamento, são meios pelos quais a força simbólica da mente se exprime com fins de propagação. A partir da concepção aqui discutida, sobretudo na sua estrita relação com o vivido e a impossibilidade de invenção total para que ele seja pregnante no social, é mister discutir a performance das tecnologias do imaginário, dando forma e sendo formada pelas (re)elaborações mentais que se consolidam a partir do real, do vivido e do imaginado na teia do que chamamos, seguindo Durand, de pulsões objetivas. Assim o explica Silva:

As tecnologias do imaginário cristalizam no reservatório semântico a superfície da novidade, dando profundidade ao que se apresentou, um dia, como efêmero. Transformam o ar do tempo em corrente de uma época, dando consistência ao etéreo. Nesse sentido, as tecnologias do imaginário enraizam nos sentidos uma parte do vivido (SILVA, 2003, p. 43).

Outra chave compreensiva para esse tipo peculiar de tecnologia está na sua possibilidade produtiva. Silva não descarta o conceito bastante debatido de indústria cultural, legado da Escola de Frankfurt que se consolidou ao longo do século XX a partir de pensadores como Theodor Adorno e Max Horkheimer que teorizaram sobre o processo de massificação dos produtos da cultura humana durante o século XX e que, segundo Wolf (2008, p. 76), "condiciona por completo a forma e a função do processo de fruição e a qualidade do consumo", bem como tem por característica descrever os consumidores de mídia como agentes passivos ao processo de modificação dos bens culturais.

O legado frankfurtiano, nessa perspectiva, não é abandonado, mas considera-se a necessidade de ampliar o seu alcance, englobá-lo em um contexto em que as "tecnologias de controle" já não possuem a eficácia de outrora e são substituídas pelas persuasivas, de sedução, que fazem com que o imaginário, exatamente por seu caráter ambíguo, se capilarize no tecido social.

Para a tradição de pensamento sobre a sociedade da comunicação total, que bebe nas reflexões de Lyotard sobre a produção e circulação do conhecimento, nas sociedades contemporâneas, as narrativas positivistas,

racionalizantes e triunfalistas sofreram desgaste e um processo de saturação durante o século XX, abrindo espaço para o ambíguo, para o dinâmico, o lúdico e à adesão suave.

É num contexto completamente novo que as tecnologias do imaginário, de sedução e adesão (em oposição à restrita manipulação) se configura como o lugar em que se fabricam as mitologias pós-modernas. "Ora, se o imaginário é uma usina de mitos, as tecnologias que o engendram são fábricas de mitologias (discursos/fábulas que informam o 'trajeto antropológico' de cada um)," diz Silva (2003, p. 64).

E o que essas fábricas produzem, em especial? São os mitos pós- modernos, visões de mundo, estilos de vida, uma verdadeira "povoação do universo mental como sendo um território de sensações" (SILVA, 2003, p. 24). Se falamos até aqui na existência do imaginário e sua ligação com o real; se o compreendemos como a camada que recobre o vivido, atribuindo-lhe sentidos socialmente compartilhados, são essas tecnologias que conseguem fazer vir à tona o espírito do tempo em que se vive, distribuindo pistas para que o investigador de imaginários consiga captar as narrativas do vivido que contam o social e os significados que lhe são atribuídos.

Não se trata de fábricas de manipulação de um pré-concebido império cultural sobre os desejos e as consciências dos receptores supostamente inertes e indefesos. Revisita-se a ideia segundo a qual as mídias possuem um poder impositivo sobre as mentes, muito discutida e questionada ao longo do século XX, para compreender as tecnologias do imaginário (que se expressam, inclusive e não unicamente, pela mídia) como mecanismos de sedução.

Com o declínio das narrativas triunfantes sobre o destino da humanidade (LYOTARD, 1989; MAFFESOLI, 1985) e a mudança da relação entre os homens e as ideologias que se discutirá mais adiante, o mundo pós-moderno abandonou progressivamente as antigas tecnologias de controle, baseadas em discursos únicos e na busca pela dominação. Em um mundo em que o espetáculo faz parte do cotidiano, frisa Silva (2003, p. 71), as tecnologias do imaginário e suas expressões máximas, que são a internet e a publicidade, apostam na adesão, na audiência e no consumo.

Estes são obtidos, respectivamente, através da submissão voluntária, da subjugação consentida e da dominação suave e regulada. Ao descrever o

funcionamento desse novo tipo de sociedade, que aposta no consumo pela adesão, Gilles Lipovetsky, outro pensador que se dedica a compreender a publicidade contemporânea, faz um diagnóstico dessa postura de pactuação do cidadão-consumidor diante da publicidade que aposta no encantamento para gerar adesão pela leveza, pelo lúdico e pelo espetáculo:

estamos vivendo a apoteose da sedução. A publicidade libertou- se da racionalidade argumentativa, pela qual se obrigava a declinar a composição dos produtos, segundo uma lógica utilitária, e mergulhou no imaginário puro, livre da verossimilhança, aberto à criatividade sem entraves, livre do culto da objetividade das coisas. Ora, isso implicou uma revolução perceptiva de mão dupla: o mundo transformou-se para que pudesse atingir essa situação (LIPOVETSKY, 2008, p. 35).

É a esse mundo do poder pela sedução, pela adesão e pelo compartilhamento que as tecnologias do imaginário permitem acessar e que provocam encantamento, gerando mobilização na sociedade. O espetáculo incessante produzido pelas diferentes mídias distribui as pistas compreensivas que dão acesso às expressões do museu de imagens, mitos, símbolos e narrativas, esclarecedoras sobre a presença do imaginário no cotidiano. Por esse motivo, dedicar-se aos estudos desses meios expressivos característicos dos tempos atuais pode fazer o social falar para além do racional e o que se dá a ver superficialmente, permitindo mergulhar nas profundezas da aparência (MAFFESOLI, 2010). Isto é, a partir do que se vê na superfície do vivido, tentar acessar aquilo que está mobilizando sentimentos e que pode não ser dado explicitamente, mas gera engajamento.

3 IMAGINÁRIO, MÍDIA E AS MUDANÇAS NAS NARRATIVAS ELEITORAIS

A retomada do imaginário como espaço relevante na vida contemporânea, como visto nas páginas anteriores, transforma o estar-no- mundo do homem pós-moderno. Formado pela integração de fatores objetivos e subjetivos, refletindo-se em um caráter essencialmente intersubjetivo, o imaginário estabelece a forma do relacionamento de si com os outros e com o mundo ao redor.

Se, por um lado, no período de predomínio quase total do racionalismo iluminista preponderava, pelo menos em tese, a maior relevância de fatores objetivos, lógicos e concretos para o agir do homem, por outro as mudanças no espírito do tempo com a pós-modernidade (MAFFESOLI, 2012) têm apontado rumo à proeminência cada vez maior do afetual e do imaginário nas decisões tomadas pelo voto popular sobre os destinos da pólis.

Essa mudança de ciclo revela-se também na relação entre o homem, a sociedade e a esfera do político. A participação político-partidária dos cidadãos, as identificações pessoais dos eleitores levadas em consideração nas manifestações públicas (nas redes e nas ruas) ou nas urnas, passam por um processo de modificação em relação aos modelos tradicionais até aqui.

Sobre estas novas perspectivas é que este capítulo se debruçará, rumo ao entendimento das novas dinâmicas eleitorais. Parte-se da compreensão de que a presença progressiva dos meios de comunicação no dia-a-dia do homem numa sociedade espetacularizada muda também a relação dos sujeitos com assuntos por muito tempo considerados estritamente racionais e baseado em longo planejamento, como a elaboração do discurso político e a decisão do voto. Nessa nova forma de vivência, os fatores de agregação entre os indivíduos ganham notabilidade. O imaginário torna-se fator decisivo para as novas formas de relação com o político. Insere-se como mediador desta relação, ganhando centralidade.

1. O imaginário não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediadas por imagens.

2. O simulacro não é um conjunto de imagens, mas uma relação entre pessoas mediadas por imagens.

3. A socialidade não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediadas por imagens (SILVA, 2007, p. 32).

Em uma palavra: as relações entre homens e meios de comunicação, recheadas de imagem permeadas pelo poder de sedução das tencologias do imaginário, não bastam para explicar as mudanças observadas. Neste trabalho, recorre-se às expressões sociedade do espetáculo para referir-se a este momento em que a relação entre os homens possui as imagens como importantes mediadoras das relações sociais.

Mas raízes destas transformações podem ser reconhecidas em movimentos ainda anteriores à popularização das redes sociais e da crescente concentração de funções cotidianas nas telas dos smartphones. Ao longo das últimas décadas (LYOTARD, 1989), observou-se uma crescente desconfiança em relação às utopias e às narrativas prometeicas sobre os destinos políticos da humanidade (MAFFESOLI, 2016; DURAND, 1998). A dominância das “grandes