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Junto à preponderância do imaginário, a transfiguração do político também passa pelo deslocamento da relação entre as ideologias e o pensamento comum da maioria das pessoas. No uso corriqueiro, o termo faz referência a uma determinada visão sobre o mundo e sobre a sociedade, podendo significar por vezes uma forma de ocultar uma verdade incômoda (SILVA, 2017a, p. 125). Em outros casos, é utilizado como sinônimo de ilusão partidarizada ou falsa consciência (BOBBIO, 1991, p. 585), chegando muitas vezes a virar uma espécie de “acusação” em debates acalorados. “Você está sendo ideológico!”, bradam alguns. Pode ser também relacionada como o oposto a decisões governamentais pragmáticas (BOBBIO, 1991, p. 588).

Nas reflexões de Karl Marx, ideologia significaria um outro tipo de ilusão: aquela a que os donos do poder recorrem para manter seus privilégios perante

a classe trabalhadora. Outra possibilidade de utilização do termo é na definição sobre “como uma sociedade deve ser” ou como um indivíduo “deve se comportar” de maneira moralmente aprovável para um grupo de pessoas que comungam de uma mesma fé ou uma mesma forma de viver a vida.

Com tantos semantismos possíveis, o certo é que a origem do termo data da pretensa construção filosófica de Destutt de Tracy, que visava empreender um estudo geral sobre as ideias humanas e os símbolos por elas utilizados, ainda no século XVIII. Mas partindo desta pluralidade de significados possíveis na atualidade, as próximas reflexões buscarão desenhar o quadro em que os homens e as ideologias se relacionam no mundo em que a política transfigurada e os afetos estão em grande sintonia.

Esta breve explanação sobre os diferentes significados relacionados ao termo ideologia é reveladora dos sentidos mobilizadores que esta palavra carrega nas sociedades ao longo dos séculos – o que demonstra sua importância como um “conservatório do querer-viver social” (MAFFESOLI, 1985, p. 90). Reúne significados, mobiliza paixões. Para a finalidade deste estudo, que dedica-se a compreender um fenômeno político nas sociedades pós-modernas (ou em processo de inserção constante nessa forma nova de estar no mundo), a aproximação entre ideologia e as dimensões míticas e imaginárias (MAFFESOLI, 1985, p. 91) abre portas para melhor compreender a relação entre os sujeitos e a política.

Aqui, vê-se novamente uma cisão entre a modernidade e o pós-moderno. Ao longo do primeiro período as identidades pessoais eram vistas como opções quase estanques e as agremiações políticas quase sempre correspondiam a pontos de vista inegociáveis ao longo da vida. Associar-se a um partido ou a uma corrente de pensamento que apontasse a melhor forma de viver em sociedade foi, por muito tempo, uma decisão individual com base em argumentos racionais e a partir de uma dedicação de ordem filosófica.

Mas na relação do homem pós-moderno, o relacionamento com as ideologias possui mais maleabilidade na gestão das ideias. Aderir a uma determinada corrente partidária deixa de ser um contrato quase vitalício. É o que Maffesoli define como “identificações sucessivas”, conjugadas às emoções partilhadas em cada momento, como visto no item anterior. Adere-se a uma ideologia por paixão convicta, mas não de forma peremptória.

Neste cenário é que se pode falar em um deslocamento da relação entre sujeitos e as ideologias nas sociedades contemporâneas. Se estas já foram por muito tempo vistas como amarras a ideias e a modelos de pensamentos prontos e de difícil mudança, Maffesoli apresenta uma visão mais branda dessa relação, destacando a relevância que elas possuem para a mobilização das emoções, que no Brasil se aquecem a cada período eleitoral (ou períodos de alta intensidade de mudanças políticas que, no contexto atual, acompanham também o calendário judicial e policialesco). Para ele, o termo é ambivalente e possui uma potência produtora de sentidos, mesmo que baseada inicialmente em critérios racionais.

A capacidade das ideologias de dar explicações e de possuir respostas a quase todas perguntas é vista ao mesmo tempo como uma fragilidade da perspectiva da relação com o cotidiano, mas também como a sua maior força agregadora. Isto porque, respondendo a quase todas as questões sobre o mundo, as ideologias carregam consigo a possibilidade constante de tornarem- se irrazoáveis, imponderáveis, conectando-se por isso com a força mobilizadora das paixões.

As ideologias são fatores geradores de empatia entre membros de um conjunto de indivíduos pós-modernos, que podem ter muitas diferenças entre si, mas possuir também um elo ideológico que os congregue. Pelas identificações sucessivas, eles podem optar não pela adesão total a sua filosofia e moral, mas adotar convicções parciais que correspondam a suas expectativas políticas: “para motivar, convencer ou iludir é sempre necessário recorrer a uma ideologia” (MAFFESOLI, 1988, p. 95) – isto é, a uma explicação sobre o mundo. Esta, para atingir sua finalidade explicativa, muitas vezes recobre fatos ou temas que revelariam a falibilidade das ideias de base ou seus pontos de partida. Entretanto, é através desta estratégia que ela se faz elemento de agregação e socialidade.

Assim é que se vê os sentidos das ideologias sendo responsáveis por grandes mobilizações, desde que não se desprenda da cola do social que são a base dos imaginários preponderantes em uma determinada sociedade. Nessa perspectiva, ideologia e imaginário possuem suas diferenças e pontos de contatos. Sempre atento à necessidade de dar maior precisão às investigações sobre as expressões do imaginário, Juremir Machado da Silva faz aproximações

e diferenciações entre as ideologias e o imaginário político, que ajudam o pesquisador a aproximar-se dos imaginários expressados em fenômenos políticos.

Acontece que o imaginário é um excedente de significado que não necessariamente busca a reprodução de um estado de coisas nem tenta obrigatoriamente o encobrimento de uma verdade incômoda. O imaginário pode ser o contrário, o ponto de ruptura com uma realidade dissimulada ou evidente, o excesso de sentido acumulado como um depósito contra uma deformação intencional ou “providencial" do “real". (…) Não há como confundir imaginário e ideologia. (…) O imaginário não é feito de ilusões, mas de sentidos agregados que podem, inclusive, arrancar os indivíduos de sua zona de conforto (SILVA, 2017a, p. 125-126).

Em suma, o ponto de maior diferenciação entre imaginário e ideologia é a ancoragem que a segunda possui no viés racional (ainda que muitas vezes recubra-se de ilusões) enquanto a primeira se caracteriza por ser um elemento mobilizador, agregador, motor, sendo também “a aura de uma ideologia, pois, além do racional que a compõe, envolve uma sensibilidade, um sentimento, o afetual” (MAFFESOLI, 2001, p. 76) – influenciando os modos de vida individuais e coletivos.

O ponto de vista ora adotado acompanha as reflexões sobre a política na era do espetáculo, que admite o papel central das emoções e do imaginário nas pulsões individuais e trans-individuais, inclusive sobre as adesões ideológicas. Tratadas muitas vezes como preferências pessoais ou de grupos, as ideologias são também banhadas pelas ondas da emoção, do lúdico, do sonho e do irracional que compõem os diferentes círculos da vida contemporânea.

É necessário ressaltar que elas somente terão efetividade em provocar emoções (mobilizando ideias de positividade ou negatividade) se corresponderem às pulsões subjetivas e objetivas de cada momento histórico. Se estiverem em sintonia com o imaginário da época em que circulam. As ideologias, nesse sentido, serão capazes de gerar mobilização se estiverem em ponto de efervescência na noosfera (MORIN, 2010) naquele momento, banhando-se na vida cotidiana dos homens e mulheres a quem são apresentadas. Estando, por fim, em sintonia com o imaginário de uma época.

Sua pregnância está também vinculada aos pressupostos adotados por este trabalho sobre a impossibilidade (ou grande dificuldade) da fabricação de imaginários em experimentos de laboratório totalmente desvinculados das verdadeiras preocupações do cotidiano comum. E, se em casos concretos essa tentativa for feita, elas podem não gerar o efeito mobilizador esperado.

3.4 COMUNICAÇÃO E POLÍTICA: DISPUTA PELA OPINIÃO PÚBLICA OU