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Foi Gilbert Durand, ao se dedicar sobre as estruturas antropológicas que subsidiam a capacidade de simbolização humana, quem inaugurou o uso do termo bacia semântica para descrever o funcionamento do imaginário ao longo dos períodos históricos. Em torno de mitos, símbolos, arquétipos e narrativas que se repetem em períodos históricos e culturas diferentes, o pensamento durandiano dedicou-se a mostrar os caminhos pelos quais o imaginário, como “re-presentação incontornável, a faculdade de simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente” (DURAND, 1998, p. 117), é característico do pensamento humano.

A ideia de bacia semântica seria, em seu pensamento, a maneira mais próxima de explicar a dinamicidade que o imaginário possui ao se constituir entre as pulsões subjetivas e as intimações objetivas - isto é, nas mentes e nas culturas. Ao revisitar esse pensamento, Tonin e Azubel resumem o trajeto percorrido pelo imaginário no ínterim oscilante entre subjetivo e objetivo. As autoras salientam que os imaginários “nascem durante um percurso temporal e um fluxo confuso, para depois se racionalizarem numa teatralização social” (TONIN, AZUBEL, 2016, p. 71). Observa-se, desde logo, a ideia de nascimento, fortalecimento e esvaziamento semântico dos símbolos e valores que integram essa dimensão do conhecimento.

Buscando na imagem e funcionamento das bacias hidrográficas o seu constante fluxo de (re)nascimento, formação dos rios e por fim seu desaguar, o termo pensado por Durand traz consigo as noções de percurso e de ciclo. O primeiro porque há, desde o surgimento de um imaginário, um caminho a ser

atravessado de consolidação, afirmação e declínio no mundo simbólico. Já a dimensão cíclica mostra que, do mesmo modo com que ele surge e ganha força, também vai se rarefazendo até transformar-se em deltas - sendo substituídos por novos imaginários que seguem o mesmo fluxo que ele então completou. Fátima Gutiérrez, ao escrever sobre o pensamento de Durand, explica tal concepção:

Uma bacia semântica é uma estrutura (com todo o sentido de dinamicidade que o estruturalismo figurativo dá a este termo) sociocultural, identificada por regimes específicos da imagem e mitos dominantes (que lhe dão nome e tipificam) que corresponde a um contorno comum, delimitado por uma época, um estilo, uma estética, uma sensibilidade, em suma, uma visão e, portanto, uma expressão do mundo, compartilhados.3

(GUTIERREZ, 2016, p. 57).

Durand (1998, p. 100-116) indica que haveria seis fases nesse fluxo semântico. O imaginário surgiria dos escoamentos, em que diversas correntes em conjunto fazem firmar um novo (ou o retorno de um antigo) imaginário em certos contextos. As águas do escoamento então passariam por uma divisão, ocorrida em uma segunda etapa, agrupando-se em escolas e querelas. A terceira fase seria a das confluências, isto é, quando há reconhecimento social da corrente que se forma.

Na quarta fase, considerada como o nome do rio, vê-se o momento da solidificação do mito criado, geralmente em torno de um personagem real ou fictício que encarna todos os valores ali compartilhados. Passa-se à quinta fase da bacia, que é a da organização dos rios, momento em que observa-se a consolidação teórica e filosófica daquele modo de pensamento, de valores e mitos que foram-se agregando nas fases anteriores - chegando a apresentar exageros de parte de suas características anteriores. Por fim, a sexta fase da bacia semântica durandiana aponta para o esgotamento dos deltas e meandros, momento no qual a corrente enfraquece e se divide, até anunciar "os deuses do porvir" que povoarão o imaginário em novo ciclo.

3 No original: “Una cuenca semántica es una estructura (con todo el sentido de dinamicidad que

el estructuralismo figurativo le da a este término) sociocultural, identificada por regímenes específicos de la imagen y mitos dominantes (que le dan nombre y la tipifican) que corresponde a un contorno común, delimitado por una época, un estilo, una estética, una sensibilidad, en definitiva, una visión y, por lo tanto, una expresión del mundo, compartidos”.

Em seu esforço em descrever os fluxos do imaginário que pudesse ser observado nas sociedades mais diversas, Durand oferece uma compreensão cíclica da pregnância dos mitos, dos símbolos e das narrativas. A importância do estudo dessa dinâmica, captando suas possibilidades de vazão e meandros de sua formação, ganha ênfase nas conclusões de sua obra principal, quando reflete sobre o lugar capital que as imagens simbólicas devem ocupar nos estudos das humanidades, formadoras de nosso estar no mundo.

Porque foi frequentemente dito, sob diferentes formas, que vivemos e que trocamos a vida, dando assim um sentido à morte, não pelas certezas objetivas, não por coisas, casas e riquezas, mas por opiniões, por esse vínculo imaginário e secreto que liga e religa o mundo e as coisas ao coração da consciência; não só se vive e se morre por ideias, como também a morte dos homens é absolvida por imagens. Por isso o imaginário, longe de ser paixão vã, é ação eufêmica e transforma o mundo segundo o Homem de Desejo (DURAND, 2002, p. 433- 434).

Desde sua publicação em 1960 na França, o livro vem sendo fonte de pesquisas e debates determinantes para o aprofundamento da compreensão sobre o imaginário. O pensamento durandiano foi frutífero em apresentar novos caminhos a outros pesquisadores do cotidiano contemporâneo e dos meios de comunicação, posto que possuem inegável centralidade no dia-a-dia do homem pós-moderno - desde as grandes metrópoles e cada vez mais em cidades menos centrais, chegando até mesmo às populações habitantes dos meios rurais, em tecnologias como a TV e a internet.

Após essa abertura compreensiva, as reflexões sobre a formação e movimentação do imaginário foram se tornando alvo de debates e pesquisas dos mais diversos matizes. Também Maffesoli dedicou-se ao tema, atribuindo-lhe as noções de fluidez e dinâmica que fora descrita por seu mestre. Ao apontar e descrever as formas elementares da pós-modernidade, Maffesoli defende que o imaginário e o afetual são fatores de integração nos tempos correntes.

Também dando a ideia de ciclo à presença de um imaginário em certo período, o autor opta pela descrição desse caminho através de mais uma analogia a fenômenos naturais: "Uma pérola cresce cobrindo um grão de areia. Da mesma forma, o imaginário de uma época, a partir de uma ideia inicial, cresce com coerência, lentidão e repetição” (MAFFESOLI, 2012, p. 71-72).

Nenhuma das três noções elencadas pela frase acima aparece casualmente. O autor ressalta o surgimento e consolidação de um imaginário como fluxo, que não acontece inesperadamente ou desaparece sem deixar marcas. O imaginário de uma época repete mitos, narrativas, imagens e valores vigentes em seu próprio tempo. Precisa também de certo período de maturação e engajamento, que caracterizam a lentidão da formação de sua supremacia nos símbolos mobilizadores do social. Por fim, os dois primeiros geram a coerência desse poder imaginal, como a pérola que nasce de um grão de areia, sobreposto por camadas por muitos anos.

Dedicando-se a um estudo aproximativo entre as tecnologias (re)produtoras do imaginário no século XXI, Silva (2017a) amplia e modifica as fases apresentadas quase 60 anos antes por Durand. Em torno de uma noção para o imaginário como um excedente de significado, ele revisita a obra durandiana e faz-lhe novas proposições.

Em primeiro lugar, Silva destaca a diferença dos pressupostos compreensivos sobre o imaginário entre ele e Durand. Enquanto para o francês a ideia de bacia semântica vê já "a decadência em pleno apogeu" (SILVA, 2017a, p. 82), o pesquisador brasileiro busca na noção de imaginário como "recobrimento do banal" apontar nove etapas, "não como resultado de querelas e grupos de legitimação por lideranças, mas como fluxos e relações universais" (SILVA, 2017a, p. 82).

A primeira delas é o vazamento, em que um acontecimento, imprevisível, dá origem a um sentido que causa alteração no discurso dominante. Passa-se à infiltração, em que o vazamento contamina outros espaços - crescendo e formando uma concentração semântica, "um pequeno lago que poderá se transformar numa configuração cheia de sentido" (SILVA, 2017a, p. 83). Chega- se, então, à acumulação, que se forma a partir de infiltrações e chega a formar suas próprias narrativas e hagiografias: "começa como uma heresia e termina como um novo mito", diz o autor (SILVA, 2017a, p. 83).

Após o apogeu chega o fim de um certo ciclo. Assim, a quarta fase é a da evocação, que se caracteriza pela repetição e realimentação através de imagens e sentidos novos e variados - um procedimento da memória afetiva, seja estimulada ou voluntária. O transbordamento acontece quando as evocações superam o próprio acontecimento, abrindo as "turbinas de uma represa" (SILVA,

2017a, p. 84), deixando as marcas que lhe formaram submersas (para sempre ou temporariamente). A sexta fase, a deformação, empreende uma nova modelação ao material afetivo inicial, cedendo à pressão do excesso de significado. A transfiguração é a fase da nova forma, quando "o excesso de sentido torna-se o novo sentido", dependendo sempre do que o autor define como saturação significativa (SILVA, 2017a, p. 84).

Como a passagem do estado líquido para o sólido acontece a etapa da metáfora - que é o batismo do elemento transfigurado, que se dá a ver "por evaporações sucessivas" (SILVA, 2017a, p. 85). Por fim, chega-se à fase do derretimento e evaporação. O fim do ciclo de imaginários que "não são definitivos", ocorrendo quando há mudança nas temperaturas emocionais e afetivas, alterando o clima da sua circulação. É chegado, ao fim, o momento de uma nova atmosfera, que já se anunciava quando as etapas iniciadas pelos vazamentos de outros sentidos a se formarem e serem transfigurados.

Observando as nove etapas, Silva tenta encontrar no escoamento do imaginário enquanto recobrimento do banal a face mais visível que se possa apreender do imaginário que flui, que se acumula e logo estabelece relações nas sociedades contemporâneas. Sua fluidez impede que ele seja visto como um objeto estanque. Tais reflexões atualizam a ideia inicial de bacia semântica durandiana, servindo-nos de base para compreender os meandros da sua formação a partir das vibrações sociais e das tecnologias por que escoam. De modo que, os próximos passos se nortearão em busca do escoamento do imaginário nas sociedades midiatizadas.