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4.1 POR QUE IMAGINÁRIO COMUNISTA?

4.1.1 Em torno de um conceito ideológico

Foi apontado na discussão teórica a mudança de perspectiva sobre as ideologias com o advento das sociedades pós-modernas, passando pelo que Maffesoli (1985, 2012) denomina por enraizamento dinâmico. Ou seja, ao mesmo tempo em que as narrativas ideológicas, como explicações totalizantes sobre o mundo, se tornam um valor pétreo no coração dos afetos que impulsionam as mobilizações da sociedade no mundo contemporâneo, as ideologias perdem em seu uso cotidiano aquela característica que a definiu no auge do período moderno: a pretensão à racionalização total do social, uma explicação argumentativa com base em pressupostos logicamente demonstráveis e que seriam capazes de explicar o funcionamento do mundo, levando-o a uma inelutável evolução pelo "melhor caminho".

Por esse motivo, segue-se por uma breve apresentação dos fundamentos filosóficos da ideologia comunista por três pensadores que a observaram em diferentes momentos da sociedade para, em seguida, continuar nossa busca pela identificação dos pontos de infiltração do afetual numa doutrina de raiz

racionalizadora, a partir de preceitos científicos, com pretensões à lógica pura. Serão consultados o fundador da doutrina comunista moderna, Karl Marx, passando pelos filósofos Antonio Gramsci (primeira metade do século XX) e Norberto Bobbio (segunda metade do século XX) para realizar essa rápida radiografia ideológica.

Autores do Manifesto do Partido Comunista, os alemães Karl Marx e Friederich Engels são responsáveis pela publicação das ideias sobre o comunismo fundado a partir da classe proletária, cujo poder deveria suplantar a classe burguesa. Esta última, triunfante após as revoluções industriais e liberais que transformaram os países europeus, teria se tornado progressivamente um oponente na histórica (e no pensamento marxista, inelutável) luta de classes.

Uma nova organização da sociedade deveria ser gestada nessa luta, que deveria ser gestada pela suplantação dos meios de produção concentrados nas mãos dos industriais e na consciência de classe que esclarecessem os trabalhadores industriais sobre as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos. O fundamento dessa disputa, diz Marx, em todo o mundo deverá ser o questionamento da propriedade privada.

A internacionalização da luta operária, seria assim, apoiada por todos os partidários dessa ideologia: "em toda a parte os comunistas apoiam o movimento revolucionário contra as ordens sociais estabelecidas" (MARX; ENGELS, 2001, p. 83). Do mesmo modo, a clareza sobre as suas intenções seria fundamental para a obtenção dos objetivos mecionados, negando-se a dissimular os propósitos do combate à propriedade privada e à organização social ao modelo burguês, que deveriam ser colocados em prática violentamente, mas com a união e "entendimento dos partidos democráticos de todos os países" (MARX; ENGELS, 2001, p. 83). Seguindo essa receita, os comunistas e trabalhadores nada teriam a perder, "exceto seus grilhões".

Na obra que reúne os principais tópicos do pensamento gramsciano (LIGUORI; VOZA, 2017), não é possível encontrar o verbete dedicado exclusivamente ao comunismo. Para o pensador italiano que dá base à obra, as palavras mais utilizadas com o sentido que aqui procuramos são "socialismo" e "socialitas". O primeiro termo é referenciado como a "cidade futura" em que prevalece a liberdade aos homens e o mínimo de coerção.

Seu princípio seria da organização da liberdade para todos, a partir de um Estado tipicamente proletário. Para chegar a esse estágio de uma pretensa evolução da vida em sociedade, seria requerida a participação de todos os cidadãos num engajamento junto a uma alta classe intelectual já consciente da luta de classes sociais e que seria responsável pela educação das massas para o esclarecimento sobre a nova sociedade em gestação. Quando passa a utilizar o termo "comunismo" é da perspectiva do universalismo do social, um modelo de sociedade que seria "capaz de dar forma a toda a humanidade".

Gramsci também critica a praxis do socialismo em seu tempo e os "socialistas" merecem um verbete próprio no dicionário aqui referido. Ele enxerga um engessamento do pensamento marxista no Partido Socialista italiano e classifica os "socialistas" de seu tempo como sucessores ou variantes dos burgueses. Embora elogie seu empenho na maturação das ideias revolucionárias, Gramsci acusa os socialistas de seu tempo de confundirem as ideias e os fins da doutrina socialista, observando a pouca efetividade do partido na prosperidade de uma revolução capaz de realizar a "nova civilização".

Já Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, faz um traçado do desenvolvimento da concepção comunista de mundo. Para ele, tal ideal tem suas raízes primeiras no pensamento de Platão que, no texto A República, exprime um “modelo de cidade ideal” (BOBBIO et al., 1991, p. 204) na qual haveria o fim da propriedade, do interesse privado e da família “a fim de que os afetos não diminuam a devoção para o bem público”. O politólogo italiano apresenta, no caminho até a concepção marxista e seus críticos, outras raízes importantes para a consolidação do pensamento comunista.

Entre eles, está o “comunismo evangélico” baseado em preceitos bíblicos do Novo Testamento que apresentavam ideais e “posições que, com o mundanizar-se da Igreja e com o seu progressivo identificar-se com as instituições sociais e políticas dominantes, são assumidos pela espiritualidade popular e pelos movimentos heréticos” (BOBBIO et al., 1991, p. 205). Estes seriam baseados nos evangelhos dos apóstolos cristãos Mateus, Marcos e Lucas onde encontram-se textos em que a riqueza é considerada má e o reino celestial seria dedicado aos pobres.

Outras utopias passam a se constituir com a chegada da Idade Moderna: é o caso dos escritos de Thomas Morus, Tommaso de Campanela e Jean

Jacques Rousseau (séculos XVI, XVII e XVIII) que, no raiar da sociedade burguesa, formulam ideias de organização social e política de natureza comunista, na visão adotada por Bobbio et al. (1991). Tais ideias influenciam também escritos que inspiram as revoluções Inglesa e Francesa, ao criticar os sistemas políticos que, “em pleno processo de mutação da sociedade ocidental, não são capazes de corrigir as desigualdades do sistema econômico” (BOBBIO et al., 1991, p. 206). Aparecem nesse período as escolas socialistas e comunistas que antecedem os escritos de Karl Marx no século XVIII, entre as quais estão o planejamento de comunas autossuficientes de Charles Fourier e Robert Owen. Este último, chegou a levar suas ideias à prática, mas segundo Bobbio et al. (1991), tais comunidades faliram em poucos anos.

Por fim, referenciam as ideias de Karl Marx e Friederich Engels que, segundo o ele, possuem “como fundamento essencial a organização industrial do mundo moderno”. No verbete da teoria marxista, além de mostrar a importância dada pelo pensamento de Marx às revoluções burguesas e sua capacidade transformadora do mundo feudal em ruínas, estabelece um esquema dicotômico entre classes. A sociedade de inspiração burguesa e liberal que há poucos séculos começara a se estabelecer precisaria, por evolução calcada no materialismo histórico, ser superada para que o mundo chegasse enfim à possibilidade de dar “a cada um segundo as próprias capacidades e receberá segundo as suas necessidades. Para atingir esse objetivo, é necessário que as forças produtivas atinjam o máximo desenvolvimento e suas fontes de riqueza social produzam com toda sua plenitude” (BOBBIO et al., 1991, p. 210).

Importante acrescentar que neste mesmo dicionário é possível encontrar também o verbete dedicado ao Anticomunismo que, segundo esses pesquisadores, passa a existir com maior respaldo após a Revolução Bolchevique na Rússia. Para eles, tal noção pode ser definida como um "fenômeno complexo, ideológico e político ao mesmo tempo explicável, além disso, à luz do momento histórico, das condições de cada um dos países e das diversas origens ideais e políticas em que se inspira" (BOBBIO et al., 1991, p. 34).

Eles o dividem em dois planos: interno e internacional, sendo o primeiro de origem reacionária e fascista que tende a "tachar de comunismo qualquer

oposição de base popular" (BOBBIO et al., 1991, p. 35) ou como "critério discriminante" para a formação de alianças partidárias em democracias consolidadas, que acontece normalmente em países onde há forte presença comunista na sociedade. Já o anticomunismo de vertente internacional, seria subdividido em apostas na "contenção do influxo dos Estados socialistas" e na "interferência nos negócios internos dos países (...) a fim de prevenir e/ou reprimir os movimentos de inspiração comunista" (BOBBIO et al., 1991, p. 35).

Vê-se, na formação dialógica destes dois conceitos cruciais para a formação do imaginário político no mundo que sucede a Segunda Guerra Mundial, que há uma nutrição fortemente interrelacionada entre a formulação teórica desta ideologia embrionada desde os primórdios da tradição ocidental e os eventos históricos ocorridos no cenário mundial e também nacional.

Tendo em vista a relação intrínseca entre o imaginário e o real, seguindo também os passos compreensivos abertos por Bobbio para a interpretação local da formação do sentimento anticomunista em cada país por diferentes vieses imbricados na tradição e nos eventos locais. Nas páginas seguintes, serão abordadas as origens socioculturais brasileiras dessa bacia de semantismo e de afetos que, no Brasil, formou-se em torno de uma ideologia política.