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4 A LITERATURA SOBRE A FORMAÇÃO DE TREINADORES(AS) À LUZ DA

4.1 As teorias de Anna Sfard (1998) e Jennifer Moon (1999; 2004)

Anna Sfard, em seu muito citado texto “Duas metáforas sobre a aprendizagem e o perigo de escolher apenas uma”13, de 1998, disserta sobre o conhecimento e se utiliza de metáforas para discutir de que forma ocorre o processo de aprendizagem. Para a autora, a utilização de metáforas pode ser um artifício tanto positivo quanto negativo. Positivo, pois ajuda a ilustrar a ideia que se deseja transmitir tornando o entendimento de pensamentos abstratos compreensível. Negativo, pois mantem a imaginação do(a) interlocutor(a) no mesmo lugar de suas experiências e concepções anteriores. Apesar do risco, baseia sua tese na existência de duas possibilidades de aprendizagem: por aquisição e por participação (SFARD, 1998).

Sfard (1998) destaca que as teorias baseadas na metáfora de aquisição entendem que “unidades básicas de conhecimento podem ser acumuladas,

13Do original, “On two metaphors for learning and the dangers of choosing just one” (SFARD, 1998, tradução da autora).

gradualmente definidas e combinadas de forma a enriquecer as estruturas cognitivas” (adaptado de SFARD, 1998, p. 5, tradução da autora). A partir dessa proposição, o processo de aprendizagem seria uma atividade de acumulação de conceitos, os quais, por sua vez, são considerados como bens materiais. Assim, segundo a autora, a utilização de termos como “aquisição de conhecimento” e “desenvolvimento de conceitos” retratam uma posição de que a mente humana é um recipiente a ser preenchido com certos conhecimentos dos quais o(a) aprendiz(a) se torna dono(a) a partir dos processos de aprendizagem.

Sfard (1998) enumera diferentes possibilidades de essa ideia ser expressa, como por exemplo com o emprego de palavras como conhecimento, conceito, concepção, ideia, noção, equívoco, significado, senso, esquema, fato, representação, material e conteúdos, assim como outros termos para o processo de tornar esse saber próprio, como recepção, aquisição, construção, internalização, apropriação, transmissão, obtenção, desenvolvimento, acumulação e compreensão. Ainda, afirma que nessa perspectiva o(a) professor(a) pode auxiliar o(a) aluno(a) a atingir esse objetivo a partir de processos de entrega/fornecimento, transmissão, facilitação e mediação (SFARD, 1998). Por fim sobre a aquisição, a autora considera que os(as) pesquisadores(as) que se utilizam dessa metáfora oferecem diferentes possibilidades para desenvolver conceitos, que vão desde processos de simples recepção do conhecimento até a ideia de que o conhecimento se constrói do social para o individual (citando inclusive a teoria histórico-cultural).

Para defender a metáfora de participação, a autora destaca outras perspectivas sobre a aprendizagem que não se utilizam dos termos “conceito” ou “conhecimento” ou, em outra análise, que empregam o verbo “conhecer”, indicando uma ação, uma atuação ativa. Sfard (1998) argumenta essa nova perspectiva se aporta na ideia da aprendizagem como uma participação periférica legitima (LAVE; WENGER, 1991) ou como um processo desencadeado pela reflexão (ROGOFF, 1990). Dessa forma, a aprendizagem não possui fim, pois não se encerra quando o “conhecido é adquirido”, como na perspectiva anterior.

Sfard (1998) ressalta a utilização de termos como “prática”, “discurso” e “comunicação” nos estudos que se aportam na metáfora de participação, sugerindo que o(a) aprendiz(a) “pode ser visto como uma pessoa interessada em participar de certos tipos de atividades ao invés de acumular posses pessoais” (SFARD, 1998, p.

6, tradução da autora). A aprendizagem seria considerada como um processo de se tornar membro de uma comunidade, que se aporta na linguagem e na execução de ações particulares como principais formas de participação e negociação. A autora salienta que a metáfora de participação foca a natureza dialética da aprendizagem, em que o todo e as partes afetam e informam-se reciprocamente.

Sfard (1998) evidencia que a dicotomia entre as metáforas citadas não pode ser confundida com a distinção entre perspectivas individuais e sociais de aprendizagem. Afirma:

De acordo com a distinção proposta nesse artigo, teorias que falam sobre a recepção do conhecimento e aquelas que veem a aprendizagem como uma internalização de conceitos socialmente estabelecidos pertencem à mesma categoria (metáfora de aquisição), enquanto no eixo individual/social, essas devem ser postas em polos opostos. Enquanto a dimensão social é salientada na metáfora de participação, ela não está necessariamente ausente das teorias da metáfora de aquisição. É importante entender que duas distinções são feitas de acordo com diferentes critérios: enquanto a divisão aquisição/participação é ontológica em natureza e apresenta duas diferentes respostas para a questão “O que é essa coisa chamada aprendizagem?”, a dicotomia individual/social não implica controvérsia com relação a definição de aprendizagem, mas apresenta diferentes visões do mecanismo de aprendizagem. (SFARD, 1998, p. 7, tradução da autora). O estudo da teoria de Sfard (1998) à luz do entendimento da teoria histórico-cultural mostra algumas incongruências com o que foi proposto por Vygotsky, em nossa interpretação. Enquadrar a teoria histórico-cultural como parte da metáfora de aquisição e, portanto, como uma forma de “acumular bens materiais” é contraditório com a ontologia da perspectiva vygotskyana e mostra uma concepção resumida das ideias de Vygotsky e seus colaboradores. Para esses, o conhecimento é construído socialmente e de modo algum acumulado sem que haja transformação (vide o conceito de sentido, apresentado no capítulo anterior).

Ao considerar os espaços culturais em que a aprendizagem ocorre e que todas as pessoas que constituem esses espaços são influenciadas e influenciadoras dessa cultura, Vygotsky não dialoga com a ideia de que o(a) aprendiz(a) é um "recipiente a ser preenchido", mas é ativo(a) em todo o processo de aprendizagem. Essa interrelação entre as pessoas as impregna de conhecimentos, perspectivas e visões de mundo que influenciam em seus processos de aprendizagem e na forma em como interpretam toda e qualquer informação que lhes é apresentada. Assim, o(a) aprendiz(a) nunca apenas “recebe” um conhecimento, da mesma forma que o(a)

professor(a) ou outro mediador(a) não simplesmente “transmite”, mas há influência da cultura e das concepções e experiências prévias do(a) aprendiz(a) a todo momento.

Assim, não se pode considerar que na perspectiva histórico-cultural um(a) aprendiz(a) aprenda apenas por mediação de uma única pessoa - mas por várias mediações, diretas e indiretas, de forma física ou a partir de materiais escritos, desenhados, observados - tendo quem aprende a possibilidade de escolha, de negociação e de influência das relações de poder, de forma correlata a metáfora de participação de Sfard (1998).

O mesmo contraponto pode ser feito ao considerarmos as teorias ditas como parte da metáfora de participação. As propostas de aprendizagem como uma participação periférica legitima (LAVE; WENGER, 1991) e de aprendizagem a partir da reflexão (ROGOFF, 1990), que estão mais desconectadas de uma perspectiva formal de ensino do que as outras citadas na metáfora de aquisição, também apresentam componentes essenciais da teoria histórico-cultural: pessoas com diferentes experiências, que atuam como “andaimes” do processo de aprendizagem; a importância da linguagem e da comunicação; o papel ativo daquele(a) que aprende; a importância do componente social.

Por fim, também discordamos da proposição de Sfard (1998) de que a divisão individual/social não é ontológica. Ao se considerar que nenhuma forma de aprendizagem se dá individualmente, estamos adotando uma ontologia relativista (SPARKES, 1992), como explicitado no Método desse estudo. Interpretamos que a aprendizagem, assim como todas as expressões na realidade, não são frutos apenas biológicos e nem apenas externos, mas aspectos relacionais.

Assim, a perspectiva apresentada por Sfard (1998) sobre o processo de aprendizagem difere-se da proposta por Vygotsky; entretanto, as teorias dialogam ao considerar a importância do social e da participação ativa do(a) aprendiz(a). Esses aspectos nos conduzem a valorizar os tipos de estratégias pedagógicas adotadas em processos de aprendizagem.

A segunda perspectiva analisada é a proposta pela pesquisadora Jennifer Moon (2004). Para a autora, a aprendizagem pode ocorrer em dois modelos, baseados nas metáforas de “construção de um muro de tijolos” e “rede de aprendizagem”.

Na metáfora da “construção de um muro de tijolos”, o conhecimento é entendido como algo a ser assimilado pelo(a) aprendiz(a); o conhecimento é “retido da mesma forma que recebido” (MOON, 2004, p. 16, tradução da autora). Metaforicamente, é visto como um “tijolo” provido pelo(a) professor(a), que quando acumulado forma um “muro de conhecimentos”. Nessa perspectiva, o(a) professor(a) já sabe previamente o padrão que o “muro” irá constituir, pois proporcionou os conhecimentos já formatados. Por isso, poderá conferir se as representações do conhecimento assimiladas pelos(as) aprendiz(a) estão corretas a partir de avaliações, ensaios e discursos.

Essa metáfora é negada pela autora (MOON, 2004), que considera não só que a aprendizagem é social, mas também que em muitas situações o significado do conhecimento aprendido não é fruto de uma instrução, mas da aprendizagem cotidiana espontânea.

A segunda metáfora, de natureza construtivista (MOON, 2004), entende o conhecimento como construído a partir de uma flexível e vasta “rede de aprendizagem” composta por ideias e sentimentos, chamada de estrutura cognitiva. Quando novos conhecimentos ou reflexões sobre antigos conhecimentos são considerados, acontece uma modificação na estrutura cognitiva, que se torna o ponto de partida para novos processos de aprendizagem. Segundo a teoria, os conhecimentos dessa rede têm variados graus de ligações entre si, de acordo com as experiências individuais. Moon (2004) considera essas características da estrutura cognitiva determinantes para que cada pessoa escolha em que irá atentar-se, o que aprenderá, como modificará seus sentimentos e conhecimentos prévios e transformará conceitos. Nessa perspectiva, o processo de aprendizagem é visto como transformador de concepções e não simplesmente como acúmulo de conhecimento (WERTHNER; TRUDEL, 2006).

Para Moon (2004), as oportunidades de aprendizagem podem acontecer de três formas. As situações mediadas são aquelas em que o(a) aprendiz(a) não escolhe com qual conhecimento, como e quando essa oportunidade de aprendizagem ocorrerá. Isso é determinado por um(a) mediador(a) externo(a) e os(as) aprendizes(as) são agentes passivos(as) do processo de aprendizagem (TRUDEL; CULVER; WERTHNER, 2013). As situações de aprendizagem não mediadas são aquelas em que os(as) aprendizes(as) escolhem quais conhecimentos e as condições

em que irão se desenvolver. Esse processo pode ocorrer pela interação não mediada com outros(as) aprendizes(as) ou mesmo pela elaboração de estratégias como buscas em livros e na Internet e observações (TRUDEL et al., 2013). Por fim, as situações de aprendizagem internas são aquelas em que não há um novo material de aprendizagem proveniente da experiência externa de uma situação mediada ou não mediada; o conhecimento é gerado a partir da reflexão, inclusive da resultante de experiências.

Ao analisarmos a teoria de Moon segundo a teoria histórico-cultural, podemos considerar os mesmos aspectos que discutimos sobre a teoria de Sfard (1998): a impossibilidade de um processo de aprendizagem passivo, como apontado na metáfora do “muro de tijolos”, e a presença permanente do fator social.

Como já afirmado anteriormente, a teoria histórico-cultural considera que é impossível que haja “transmissão de conhecimentos” e especialmente processos de aprendizagem sem a participação do(a) aprendiz(a). Em nossa interpretação, Vygotsky tem a intenção de afirmar em sua teoria, embora não o faça com essas palavras, que se em determinada situação o(a) aprendiz(a) verbaliza pouco suas interpretações, opiniões, questionamentos ou concordâncias, isso acontece por conta da cultura estabelecida entre os(as) envolvidos(as) e as estratégias pedagógicas adotadas. Apesar disso, o processo de aprendizagem acontece de forma essencialmente social, sob a mediação de outras pessoas. Assim, não haveria duas possibilidades do processo de aprendizagem, mas sim, diferentes estratégias pedagógicas que podem incentivar mais ou menos a participação ativa dos(as) aprendizes(as).

Outra situação que pode ser curiosa ao se estudar as duas teorias é a relação entre mediação e processo de aprendizagem. Tanto para Vygostky quanto para Moon (2004), ainda que em alguns processos de aprendizagem não haja direcionamento formal ou a presença física de outros(as) participantes, as mediações acontecem a partir de outros tipos de relações sociais. Isso porque, segundo Moon (2004) baseada em Laurillard (1993), o termo “aprendizagem mediada” é utilizado para descrever a facilitação realizada por outra pessoa ou pelo uso de um material de ensino. Moon (2004) sugere que existem muitas formas de mediação, mas que em todas elas sua finalidade é modificar a experiência do(a) aprendiz(a); por isso, sugere uma revisão de seu próprio termo “aprendizagem mediada” para “experiência (de

aprendizagem) mediada”. Sendo assim, a mediação não acontece apenas pela existência de um(a) instrutor(a) ou professor(a) formal, mas pela troca de conhecimentos com quaisquer pessoas, inclusive outros(as) aprendizes(as) e materiais de aprendizagem. Para a autora:

O papel do(a) professor(a) na mediação da experiência do(a) aprendiz(a) pode ter muitas diferentes formas, todas com diferentes papéis no processo de simplificação e orientação. Mediação pode ser uma situação presencial como no ensino, em palestras ou orientações. Pode ser um programa de aprendizagem a distância, que direciona o(a) aprendiz(a) a um conjunto de diferentes atividades de aprendizagem. Pode ser uma forma de material impresso – livros-texto, livros ou televisão. Mediação pode também acontecer com a disponibilização de critérios de avaliação, com pouco direcionamento antes que os(as) aprendizes(as) comecem a aprender. Os critérios de avaliação então tem a função de guiar a aprendizagem requerida. (MOON, p. 74, tradução da autora)

A partir desse novo entendimento dos tipos de aprendizagem, a diferença entre as situações mediadas e não mediadas seria a existência ou não de uma organização curricular obrigatória e a busca individual por formação. A presença de outras pessoas no processo de aprendizagem não é questionada. Inclusive, com essa indicação de que a mediação pode ser realizada a partir de diferentes estratégias, Moon (2004) ressalta que o(a) próprio(a) aprendiz(a) medeia sua aprendizagem, trazendo conhecimentos de experiências anteriores ao interpretar novos fatos. Nesse aspecto, a teoria de Moon (2004) aproxima-se consideravelmente da perspectiva histórico-cultural.

Outro assunto aproxima as perspectivas teóricas de Moon (1999; 2004) e Vygotsky. Moon (2004) considera que quando uma situação de aprendizagem é julgada subjetivamente como significativa para um(a) aprendiz(a), torna o processo mais engajado e profundo em seu entendimento. Assim, essa experiência significativa pode alterar o modo como pensa, sente e age em situações futuras, além de influenciar em escolhas e decisões que influenciarão em buscas por conhecimentos em situações futuras (CALLARY; WERTHNER; TRUDEL, 2012). Ao passo que as oportunidades de aprendizagem acontecem em diferentes contextos e afetam as experiências anteriores, tornam-se mais suscetíveis de serem aprofundadas e de influenciarem as próximas oportunidades de aprendizagem. Essa ideia liga-se consideravelmente à vivência de Vygotsky, como já explicado anteriormente.

Assim, ao pensarmos as teorias de Sfard (1998) e Moon (2004) aplicadas a aprendizagem de treinadores(as) nesse estudo, destacamos a aproximação com alguns dos princípios da teoria histórico-cultural, em especial: a importância do meio social e da mediação no processo de aprendizagem; a participação ativa dos(as) aprendizes(as) nos processos de aprendizagem; a importância subjetiva das oportunidades de aprendizagem, que podem potencializar os processos. Um esquema comparativo entre as três proposições teóricas e seus aspectos convergentes pode ser observado no quadro a seguir:

Quadro 6 – Comparação entre as teorias de Sfard (1998), Moon (1999; 2004) e Vygotsky.

SFARD (1998) MOON (2004) VYGOTSKY:

Objetivo da aprendizagem AQUISIÇÃO: Processo de enriquecimento individual. PARTICIPAÇÃO: Processo de construção comunitária. CONSTRUÇÃO: Transmissão de conhecimentos. REDE: Alteração da estrutura cognitiva de acordo com novas ideias e sentimentos. Compartilhar conhecimentos. Aprendizagem AQUISIÇÃO: Acumulação de conceitos. PARTICIPAÇÃO Tornar-se participante. CONSTRUÇÃO: Aquisição de conceitos. REDE: Aumentar a rede de ideias e sentimentos. Co-construção de conhecimentos, a partir de outros socialmente construídos e historicamente situados. Aluno(a) AQUISIÇÃO: Consumidor(a) do conhecimento. PARTICIPAÇÃO Inicia como um(a) participante periférico(a).

CONSTRUÇÃO: Receptor(a) do conhecimento. REDE:

Responsável por todo o processo. Central no processo de aprendizagem, cuja história e experiências prévias influenciam no processo. Professor(a) AQUISIÇÃO: Facilitador(a) ou provedor(a) do conhecimento. PARTICIPAÇÃO Participante mais experiente ou organizador(a). CONSTRUÇÃO: Provedor(a) dos conhecimentos. REDE:

Pode ou não haver professor(a), que fará mediações.

“Andaime” do processo de aprendizagem, que oferecerá ajuda para o entendimento de conhecimentos ainda não construídos. Conceito de conhecimento AQUISIÇÃO: Propriedade ou posse. PARTICIPAÇÃO Aspecto da prática, discurso ou atividade. CONSTRUÇÃO: Saber pré-concebido e fixo. REDE: Ideias e sentimentos construídos coletivamente e compreendidos na estrutura cognitiva. Saber construído coletivamente e historicamente situado, relacionado ao papel de determinado grupo social nas relações sociais vigentes.

Processo de aprendizagem

AQUISIÇÃO: Envolve ter, possuir. PARTICIPAÇÃO Envolve pertencer, participar e comunicar. CONSTRUÇÃO: Envolve transmitir e acumular. REDE:

Envolve refletir sobre novos conhecimentos.