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O segundo assunto da teoria histórico-cultural destacado tem estreita relação com o primeiro e aproxima-se ainda mais de nosso objeto de estudo nessa tese. Ao passo que o entendimento de que a aprendizagem acontece de forma social está estabelecido, Vygotsky dedica-se a apresentar de que forma essa relação social de fato influencia os processos de aprendizagem.

Um dos mais divulgados temas da teoria histórico-cultural é a zona de desenvolvimento proximal (ZDP). A ZDP é uma fase relacional e interpessoal (MORCOM, 2014) que compreende as funções mentais que ainda não estão maduras, mas em processo de tornar-se; é uma fase intermediária, em que o(a) aprendiz(a) pode participar de atividades sociais e culturais que estão além de suas capacidades em determinado momento (POTRAC; NELSON; GREENOUGH, 2016), a fim de co-construir novos conhecimentos.

A ZDP é um espaço não claramente demarcado e totalmente relacionado às atividades colaborativas (POTRAC; NELSON; GREENOUGH, 2016), em que ocorrem os processos sociais e dinâmicos de aprendizagem chamados por Vygotsky de “co-construções” (CASSIDY; JONES; POTRAC, 2009). Situa-se após o nível de desenvolvimento real ou efetivo, que compreende o conjunto de informações que já foram co-construídas e que permitem a solução de problemas independentemente do auxílio de outras pessoas, ou seja, que são parte de ciclos de desenvolvimento já

completados. A ZDP constitui-se, portanto, das informações que estão em fase de co- construção a partir dos processos de aprendizagem (PALANGANA, 2001).

O processo social existente nessas relações é chamado de mediação (SMIDT, 2009; VYGOTSKY, 2009; OLIVEIRA, 2016). Mediações são processos facilitadores, em que pessoas mais experientes participam da co-construção por parte dos(as) aprendizes(as) dos conhecimentos produzidos historicamente, frutos da experiência coletiva (DUARTE, 1996). Segundo Oliveira (1993), como alguém que possui conhecimento, a pessoa não tem acesso direto aos objetos, mas um acesso mediado, que é realizado através dos recortes operados pelos sistemas de símbolos e por atividades externas, que se transformarão em internas.

Assim, as mediações podem ter diferentes naturezas. Podem ser diretamente realizadas por outras pessoas, adultos(as) ou pares, de situações informais, e professores(as) formalmente reconhecidos(as), em situações institucionais de aprendizagem (VYGOTSKY, 1998), bem como podem ter relação com o meio em que se estabelecem os processos de aprendizagem. Nesse caso, podem variar entre mediações concretas (livros, vídeos, documentos, por exemplo) e abstratas (como as normas sociais), balizadas pela linguagem (JONES; THOMAS, 2015). A partir da mediação, o(a) aprendiz(a) pode desenvolver valores, significados, regras e assim conhecer seu contexto social, em processos que envolvem colaboração, compartilhamento e negociação entre aprendizes(as) e com pessoas mais capazes (SMIDT, 2009).

Uma metáfora bastante utilizada para explicar tal noção de assistência é a da ZDP como um andaime. Esta metáfora começou a ser utilizada há 40 anos para auxiliar no entendimento da teoria histórico-cultural (JONES; THOMAS, 2015). Nela, a ZDP é ilustrada como sendo uma distância vertical, em que o(a) aprendiz(a) é assistido por uma pessoa mais experiente que o(a) auxilia em etapas graduais, como degraus, na superação de um desafio até o alcance do topo (CASSIDY; JONES; POTRAC, 2009; MORCOM, 2014). Assim, a mediação é uma estrutura de assistência temporária e essencial (JONES; THOMAS, 2015), que pressupõe a desmontagem assim que o(a) aprendiz(a) puder completar aquele nível de desenvolvimento. Os “degraus” desse andaime, a serem superados, possuem, portanto, três momentos inter-relacionados: a assistência de outras pessoas, a transição entre a assistência externa e a assistência de si mesmo(a) e, por fim, a assistência de si mesmo(a) por si

só (VYGOTSKY, 1998). Assim, a mediação se dá, objetivamente, com a criação de estruturas que facilitam os processos de co-construção de conceitos desafiadores, além de apoio e incentivo às habilidades e iniciativas dos(as) aprendizes(as).

Por esses motivos, Vygotsky (1997) destaca que a aprendizagem orientada para os níveis de desenvolvimento já atingidos é ineficaz e não se dirige a um novo estágio do processo de desenvolvimento. Assim, afirma que os(as) educadores(as) deveriam considerar suas práticas para um “bom aprendizado”, aquele que se adianta ao desenvolvimento (VYGOSTKY, 1997). Dessa forma, Vygotsky criticou as práticas educacionais que são baseadas apenas na instrução didática11 e incentivam a repetição sem que haja compreensão do entendimento dos(as) alunos(as). Potrac e Cassidy (2006) destacam o uso de estratégias pedagógicas como demonstrações e discussões, que possam iniciar os processos de aprendizagem a partir dos conhecimentos já estabelecidos, mas em direção a co-construção de novos.

Na mediação, um dos fatores primordiais é a imitação das pessoas mais experientes. Em negação à crença de que a imitação é um processo puramente mecânico e ausente de capacidade intelectual, Vygotsky (1997) observou que é possível haver imitação de atos ou habilidades cujo conteúdo vai além da capacidade real. Para essa teoria, a imitação tem um caráter essencialmente humanizador, pois é uma típica forma de co-construção.

Nesse momento, os processos cooperativos e colaborativos de aprendizagem que tenham ênfase no entendimento do(a) aluno(a) (POTRAC; NELSON; GREENOUGH, 2016) a partir das mediações proporcionarão o alcance de um novo estágio de desenvolvimento. Por isso, o autor considera que

as diferenças quanto a capacidade de desenvolvimento potencial de aprendizes(as) devem-se, em grande parte, às diferenças qualitativas no ambiente social em que vivem. A diversidade nas condições sociais promove aprendizagens também diversas e estas, por sua vez, ativam diferentes processos de desenvolvimento. (adaptado de PALANGANA, 2001, p. 129).

Esta última citação é bastante adequada para iniciarmos a discussão sobre a ZDP na aprendizagem de treinadores(as). Ao concordarmos que a qualidade das interações sociais no ambiente auxiliará na ocorrência de processos de aprendizagem

11 Entendemos “instrução didática” como os métodos tradicionais de ensino, em que apenas o(a) mediador(a) faz uso da palavra. Esse tema será discutido mais profundamente no capítulo 3.

mais efetivos, nos propomos a refletir sobre as estratégias pedagógicas, as quais treinadores(as) estão sujeitos(as) em suas formações, tanto institucionais quanto informais.

A relevância das relações sociais na metáfora do andaime da ZDP possibilita, como visto anteriormente, que os conhecimentos já produzidos possam ser compartilhados, assim tornando-se parte da experiência de outras pessoas. O mesmo acontece nas oportunidades de aprendizagem de treinadores(as) que permitem a troca de experiências e o diálogo sobre teorias e que, assim, podem proporcionar a co-construção de novas práticas que se relacionem efetivamente às demandas do ensino de Esporte e práticas corporais (NASH; SPROULE, 2012; JONES; MORGAN; HARRIS, 2012). Além disso, as estratégias pedagógicas que se disponibilizarem a discutir aspectos da realidade do ensino de Esporte e práticas corporais estarão mais relacionadas ao problemático e dinâmico papel dos(as) treinadores(as) (JONES, 2000) no exercício de seu trabalho do que aquelas que se atentarem exclusivamente a contextos teóricos e analíticos (MORGAN et al., 2013b). Para que as oportunidades de aprendizagem aconteçam dessa forma, é necessário portanto que se conheça o nível de desenvolvimento real de cada treinador(a)-aprendiz(a). Isso destaca a importância de propostas que possibilitem o conhecimento dos(as) aprendizes(as) por parte dos(as) formadores(as) e não que as propostas sejam padronizadas independentemente dos(as) participantes. Essa discussão suscita os debates a respeito de pré-requisitos ou propostas baseadas em apresentações, para que haja o alinhamento das atividades com os perfis dos(as) aprendizes(as). Destacamos novamente Paquette e colaboradores (2014) para exemplificar o uso de portfólios como primeira atividade de um programa de formação de treinadores(as), que incluía um resumo atual, uma descrição de seu papel como treinador(a) de ensino de Esporte e práticas corporais e filosofia de trabalho, uma periodização de treinamento de um(a) atleta e uma reflexão sobre suas potencialidades e fragilidades relacionadas com o trabalho desenvolvido. Esses documentos foram, segundo Paquette e colaboradores (2014, p. 79, tradução própria), “revisados e avaliados pelos(as) responsáveis pelo programa (...) para confirmar a prontidão dos(as) treinadores(as) e a sustentabilidade deles(as) no programa, bem como para ter uma melhor compreensão dos pontos de partida individuais”.

Outros exemplos também são conhecidos para essa finalidade. Bertram e colaboradores (2014) se utilizaram de grupo focal e entrevistas semi-estruturadas com todos(as) os(as) participantes de uma comunidade de prática formada por alunos(as) de graduação, a fim de conhecer profundamente as experiências anteriores e expectativas com relação aos encontros. Em uma abordagem diferente, Stoszkowski e Collins (2017) utilizaram-se de pré-requisitos como um mínimo de 40h de prática como treinadores(as) regulares e outras horas de atuação em ensino de Esporte e práticas corporais em suas comunidades para estabelecer um nível mínimo de desenvolvimento real previsível pela experiência requerida. Embora consideremos a dificuldade de realmente conhecer os conhecimentos prévios dos(as) aprendizes(as), entendemos que, na impossibilidade de maior profundidade com cada treinador(a), essas propostas (PAQUETTE et al., 2014; BERTRAM et al., 2014; STOSZKOWSKI; COLLINS, 2017) poderão proporcionar uma noção básica das estratégias pedagógicas que os(as) mediadores(as) responsáveis podem propor em suas ações.

Outra relação com a formação de treinadores(as) está no papel do(a) desenvolvedor(a) de treinadores(as) (do inglês, coach developer). Este é um termo abrangente recentemente destacado pelo International Council for Coaching Excelence (ICCE, 2013) e que, segundo McQuade e Nash (2015), representa uma variedade de papéis, incluindo líder, facilitador(a), mentor(a), assessor(a) e responsável pela estruturação e avaliações de programas de formação de treinadores(as). As autoras citadas (2015) consideram que o(a) desenvolvedor(a) de treinadores(as) não é necessariamente uma pessoa especialista no assunto tratado, mas deve ser hábil administrador(a) e motivador(a) dos programas de formação de treinadores(as), bem como ser parte da organização e das estratégias de formação. Outro ponto reiterado sobre os(as) desenvolvedores(as) de treinadores(as) é que seus comportamentos, conhecimentos e práticas tem potencial de influenciar treinadores(as)-aprendizes(as), como bons ou maus exemplos; este fator também é bastante comentado por Jones (2006), Jones, Harris e Miles (2009) e Jones e colaboradores (2012). À luz da teoria histórico-cultural, poderíamos considerar que o(a) desenvolvedor(a) de treinadores(as) pode ser um(a) mediador(a), ao passo que auxilia na co-construção de conhecimentos.

Por fim, destacamos que, assim como afirmado por Vygotsky, a literatura acadêmica sobre a formação de treinadores(as) também considera que mediações diferentes das instruções didáticas são mais efetivas. Para Vygotsky (1997, p. 157):

O desenvolvimento não se reproduz, apenas, por uma soma harmoniosa de experiências, mas acima de tudo através de vivências em matrizes sociais diferentes, cujos interesses e valores são, frequentemente, contraditórios. A criança aprende opondo-se a alguém, identificando-se, imitando, estabelecendo analogias, internalizando símbolos e significados, tudo isso em um ambiente social e historicamente localizado. Assim, é preciso considerar que as interações sociais educativas pressupõem a manifestação e o confronto de diferentes ideias, gestadas em momentos distintos.

Com relação aos processos de aprendizagem de treinadores(as), Mesquita e colaboradores (2015) destacam que estratégias pedagógicas como fazer perguntas, monitoramento de atividades individuais e a requisição de pesquisas foram apontadas por treinadores(as)-aprendizes(as) como encorajadoras, desafiadoras e os(as) incentivaram a se envolver mais ativamente nas tarefas. Outros estudos vêm demonstrando possíveis estratégias pedagógicas que permitem interações sociais educativas mais ativas e eficazes na co-construção de novos conhecimentos e serão destacadas futuramente nesse estudo.

Assim, destacamos que a ZDP é um conceito que aproxima a teoria psicológica de Vygotsky de discussões sociológicas pois, nas relações sociais que se estabelecem para os processos de aprendizagem, estão intrínsecos fatores como as relações de poder entre os(as) envolvidos(as), as disputas pelo capital, entre outras discussões dessa natureza (CORSBY, 2016). Ressaltamos que esse não é o foco dessa tese, embora seja a teoria que nos embasa, mas consideramos que esse seja um assunto a ser aprofundado em outros estudos, pois pode colaborar em demasia nas discussões a respeito de estratégias pedagógicas efetivas na formação de treinadores(as).