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O primeiro assunto da teoria histórico-cultural que destacamos é a importância da interação entre a base biológica humana e o meio. Esta relação tem profunda ligação com as discussões sobre os processos de aprendizagem na formação de treinadores(as).

Os processos de aprendizagem implicam em uma relação entre a pessoa que busca conhecer e o objeto a ser conhecido, de tal forma que entre ambos se estabelecem relações recíprocas de mudanças. Esse posicionamento teórico refere- se às teorias interacionistas, que são aquelas que não privilegiam nenhum dos polos, conhecedor(a) ou objeto a ser conhecido, mas sim a interação que se estabelece entre ambos. Ao pensar os processos de aprendizagem, Vygotsky (1997; 1998; 2000; 2009; 2010) posiciona-se de acordo com essa teoria. Assim, baseado em suas concepções dialéticas, Vygotsky preocupou-se em explicitar as relações entre o biológico e o cultural na vida das pessoas (PALANGANA, 2001; OLIVEIRA, 2016, VYGOTSKY, 2010).

Partindo da concepção de um organismo ativo, Vygotsky (2010) defende

o princípio de contínua interação entre as mutáveis condições sociais e a base biológica do comportamento humano. Ou seja: a maturação do organismo desenvolve estruturas orgânicas elementares, chamadas de funções mentais inferiores (percepções elementares, memória, atenção e inteligência, funções que são

histórico-social. De acordo com Duarte (1996), a teoria histórico-culural, bem como as construtivistas, se opõe ao inatismo e ao empirismo e considera a importância das relações sociais nos processos de aprendizagem, mas a utilização do termo “social” não retrata a “interação historicamente situada, mediatizada por produtos sociais, desde os objetos até os conhecimentos historicamente produzidos, acumulados e transmitidos” entendida por Vygotsky (DUARTE, 1996, p. 30). Para mais informações, indicamos a leitura das obras de Newton Duarte (1993, 1996).

psicobiológicas por natureza e relacionadas às formas concretas de pensamento), as quais irão formar novas e mais complexas funções mentais superiores (atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos) dependendo da natureza das experiências sociais que as pessoas vivenciarem (OLIVEIRA, 2016; POTRAC; NELSON; GREENOUGH, 2016). Assim, os fatores biológicos preponderam os sociais apenas no início da vida e, aos poucos, o desenvolvimento do pensamento passa a ser orientado pelas interações que essa estabelece com outras que possuem experiências diferentes das suas (VYGOTSKY, 2000; CAPUCCI; SILVA, 2017).

A constituição das funções complexas do pensamento é veiculada principalmente pelas trocas sociais e, nessa interação, o fator primordial é a linguagem. A comunicação entre as pessoas é considerada um instrumento simbólico, cuja função é servir como um condutor da influência humana sobre as ações e os objetos (PALANGANA, 2001). Vygotsky afirma que a fala realizada durante a ação é tão importante quanto o olhar e o toque na execução de tarefas práticas, pois desempenha o papel de internalização da ação. Da mesma forma, o passo seguinte no processo de aprendizagem, a internalização da linguagem, propicia a base para a futura aprendizagem, reflexão e resolução de problemas (VYGOTSKY, 2000). Para Vygotsky (2000, p. 24), “qualquer função psicológica superior foi externa – foi social; antes de se tornar função, ela foi uma relação social entre duas pessoas”.

Segundo Palangana (2001, p. 102):

Na concepção de Vygotsky, o desenvolvimento da linguagem coloca-se como paradigma para explicar a formação de todas as demais operações mentais que envolvem o uso de signos. [...] Esta é a forma mediatizada – pela qual a criança se apropria do conhecimento historicamente produzido e socialmente disponível.

Assim, a linguagem é um produto da atividade prática conjunta das pessoas e, graças a ela, a consciência individual de cada um(a) não se restringe à experiência pessoal e às próprias observações, pois o conhecimento de todos(as) pode tornar-se propriedade de um(a). Com isso, pode ser dito que as pessoas se apropriam das aquisições sociais e culturais que as precederam, ou seja, que foram desenvolvidas ao longo da história e transmitidas por outras pessoas no decorrer do tempo. De tal modo, se constituem por meio de uma dinâmica de diferentes papeis assumidos nas relações sociais, em um processo de internalização e externalização que se mescla (VYGOTSKY, 2000).

Vygotsky (2010) ainda ressalta que o meio se modifica para cada pessoa ao longo da vida, pois as pessoas se modificam durante seu processo de desenvolvimento. O papel e o significado dos elementos do meio, que permaneceram inalterados ao longo do tempo, desempenham diferentes funções ao passo que as pessoas vão construindo suas identidades e opiniões. Para Vygotsky (1998), o meio é social e nunca visto como imutável ou estático, mas sim como aspectos e elementos diversos em constante contradição e luta entre si; é um processo dinâmico e que se estabelece dialeticamente com o que é interno às pessoas. Por isso mesmo, o meio pode ser vivenciado de diferentes maneiras, de acordo com concepções, sentimentos e interpretações que se fazem internamente em contato com outras pessoas e outros ambientes. Vygotsky (2010) também sinaliza para a importância de se considerar o nível de compreensão das pessoas quanto à determinada vivência, a possibilidade de tomada de consciência a respeito do que foi vivenciado e da apreensão daquilo que ocorre no meio circundante de si.

Por fim, destacamos que, para a teoria histórico-cultural, não há aprendizagem individual ou desconectada de outras pessoas por completo. Apesar de em algumas situações os novos conhecimentos serem co-construídos a partir da experiência pessoal ou da busca individual, estes conhecimentos são parte de uma história e uma cultural previamente co-construídas por outras pessoas. Se há processos de aprendizagem a partir de leituras de livros teóricos, por exemplo, esses são constituídos de linguagem escrita, existente e aprendida a partir de uma cultura e escrita por outra pessoa; se estes existem a partir da experiência, esta é balizada pela atuação de outras pessoas no meio e por seus discursos. Assim, os processos de aprendizagem nunca são individuais, apenas podendo ser mais ou menos explícita a relação social existente.

Pensar a relação entre a base biológica humana e o meio é fundamental, pois nos permite considerar que qualquer visão de mundo é derivada das vivências (TOASSA, 2009) de cada pessoa. Assim, não existe determinismo – as pessoas expressam-se, creem e exercem suas atividades baseadas nas situações que presenciam/presenciaram e na influência dos discursos que a cercam. Essa questão trazida pela teoria histórico-cultural reforça nossa posição ontológica de que as potencialidades de cada pessoa são construções sociais oriundas das relações entre elas e o meio em que vivem.

Ao refletirmos sobre a educação em geral e sobre a formação de treinadores(as), essa influência também se torna essencial. Entendemos que o ensino de Esporte e práticas corporais é também relacionado com as experiências e oportunidades formativas dos(as) treinadores(as) ao longo de suas vidas e, especialmente, pela influência de outras pessoas exercida diretamente ou a partir do meio cultural. As oportunidades de aprendizagem vivenciadas por treinadores(as), tanto aquelas que são oferecidas por instituições como as que são buscadas pelos(as) próprios(as) aprendizes(as), são processos que não devem ser pensados centrados nos(as) instrutores(as) e nem nos(as) aprendizes(as) (WEIMER, 2002) e sim nas relações que se estabelecem.

Estudos têm mostrado que treinadores(as) validam essa teoria ao mostrarem-se favoráveis a estratégias pedagógicas que envolvam processos coletivos. Nash e Sproule (2012) destacam que 67% dos(as) 621 treinadores(as) por eles consultados(as) afirmaram preferir atividades em grupos, especialmente aprender diretamente com outros(as) participantes de programas de formação institucional e em seus próprios contextos de atuação; esse fato foi constatado tanto para treinadores(as) experientes, com mais de dez anos de prática, como para novatos(as). De forma semelhante, Stoszkowski e Collins (2016) constataram, após consultar 320 treinadores(as) de diferentes nacionalidades, que suas fontes de aprendizagem preferidas foram aquelas em que as interações sociais estão explicitadas e em destaque e sugeriram que os programas institucionais de formação de treinadores(as) se utilizassem de estruturas que permitam o reconhecimento e a administração das influências sociais nos processos de aprendizagem. Os resultados desse estudo mostram que 41% dos(as) participantes apontaram as discussões com pares como a principal estratégia pedagógica de preferência; a segunda categoria apontada no estudo, que se referia a livros, foi destacada por 11% dos participantes.

Considerando a aprendizagem de adultos(as), embora as funções mentais inferiores já estejam estabelecidas, as funções mentais superiores estão em constante desenvolvimento. A influência do meio, que ocorre de diferentes formas, seja pelo exemplo de outros(as) treinadores(as), pelos materiais de aprendizagem entendidos como livros e vídeos, pelo discurso de aulas diretivas e palestras, pelo diálogo, pela reflexão ou por qualquer outra oportunidade de aprendizagem, é balizada pela linguagem, externa ou interna. Assim, a participação social para o estabelecimento

dos processos de aprendizagem complementam-se pela necessidade de estratégias pedagógicas que permitam que os(as) treinadores(as) reflitam, verbalizem e fortaleçam relações sociais. Sobre esse assunto, ressaltamos Smidt (2009), que destaca que a noção de “social” extrapola a presença de outros(as) no processo de aprendizagem, mas que deva ser aportado em estratégias que engajem os(as) aprendizes(as) e não apenas baseadas em experiências “individuais”.

As estratégias de avaliação também devem estar alinhadas com essa prerrogativa social. É importante que os programas de formação institucional considerem possibilidades sociais de avaliação e que proporcionem participação ativa dos(as) treinadores(as), inclusive alinhadas ao contexto de atuação desses(as). Entendendo que as vivências prévias de treinadores(as) influenciam a forma como os novos conhecimentos serão construídos, os processos avaliativos podem ser mais efetivos se estiverem relacionados com a conexão de novos conhecimentos com os aspectos já consolidados de atuação. Como exemplo, destacamos Paquette e colaboradores (2014), que se utilizam de um “diálogo de aprendizagem”9 para fomentar as reflexões sobre os pontos fortes e outros necessários de maior atenção na atuação de treinadores(as) e que se constitui uma forma de avaliação. Nessa estratégia, os mediadores encarregados do processo tem como responsabilidade realizar questões e oferecer feedback relevante para promover uma reflexão crítica por parte dos(as) aprendizes(as). O estudo também apresenta como estratégia de avaliação uma “observação avaliativa”10, que consiste em duas pessoas mediadoras observarem uma sessão ou aula de ensino de Esporte ou práticas corporais oferecida por um(a) treinador(a). Em seguida, as três pessoas envolvidas empenham-se em uma conversa para promover reflexão e diálogo sobre o que foi observado.

Nessas duas estratégias avaliativas, podemos perceber que o foco permanece na relação entre os(as) envolvidos(as), cujas participações ativas permitem processos sociais que constroem coletivamente novos conhecimentos. Estas estão em concordância com a análise de Smidt (2009) sobre a teoria histórico- cultural: segundo a autora, deve haver um encorajamento por parte dos(as) educadores(as) para a criação de ambientes, nos quais sejam valorizados a atenção compartilhada, a colaboração e o apoio. Isso ocorrerá a partir do uso de ferramentas

9 Do original, “learning conversation” (PAQUETTE et al., 2014). 10 Do original, “evaluator observation” (PAQUETTE et al., 2014).

culturais compartilhadas, nas quais o questionamento, a experimentação e a busca de respostas estejam incorporados (SMIDT, 2009).

Além disso, entendendo que as interpretações sobre o meio se alteram ao longo da vida das pessoas, a experiência como atleta, considerada como uma das mais importantes influências da prática do ensino de Esporte e práticas corporais (LEMYRE; TRUDEL; DURAND-BUSH, 2007), necessita devida atenção. As práticas e conhecimentos vividos durante o período como atleta podem ter sido ressignificados pelos(as) treinadores(as) sem que tivesse havido algum tipo de reflexão. Os novos conhecimentos construídos ao longo da prática como treinador(a) e em diferentes oportunidades de aprendizagem podem servir como base para reflexões de experiências vividas como atleta.