III. O ACTUAL D IREITO DAS CONTRA ORDENAÇÕES : A SUA ( AINDA ALGO FRÁGIL ) AUTONOMIA
2. As relações do Direito contra-ordenacional com o Direito Constitucional como alavanca
Direito Contra-ordenacional
Tem-se hoje mais ou menos por pacífico que o Direito das contra- ordenações é um Direito sancionatório sempre iluminado pela estrela polar do Direito Constitucional.
Qualquer Direito de natureza sancionatória importa, com maior ou menor extensão, uma restrição de direitos fundamentais e, assim sendo, também no
77 Neste sentido vejam-se os ilustrativos ensinamentos de J
ORGE DE FIGUEIREDO DIAS quando refere que o ilícito de
mera ordenação social vem sendo um dos «enfants-chéries da literatura jurídico-penal portuguesa: de HENRIQUES DA
SILVA a CAVALEIRO FERREIRA, de BELEZA DOS SANTOS a EDUARDO CORREIA, ninguém escapou – nem eu próprio! – ao
fascínio desta matéria, assim recorrente na história da nossa especulação doutrinária. Circunstância esta que não revela não se tratar de os estudiosos se sacrificarem a uma “moda”, mas de tentarem vencer as múltiplas resistências oferecidas por um nódulo problemático forte; tão forte que nele se jogam questões como a da função do Direito Penal e dos seus limites e das relações entre o Direito Penal e o Direito Administrativo (eu acrescentaria ainda: e o Direito Constitucional).» - in «O movimento», p. 20.
Direito das contra-ordenações se convocará a ideia de concordância prática (art. 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa).
Parece ainda pacífico afirmar-se que não é à Constituição que caberá definir as categorias dogmáticas de crime e contra-ordenação. “Tais categorias
pré-existem. O que a Constituição faz – tarefa nobre – é conformá-la às
específicas finalidades normativas que cabem à Lei Fundamental. Nada mais.
Mas também nada menos”78
.
O que já não se mostrou desde sempre pacífico foram a própria existência e competências para tipificar contra-ordenações no quadro legal
português, suscitando-se dúvidas de constitucionalidade79.
Efectivamente, logo aquando da publicação do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho se questionou a sua constitucionalidade, sobretudo porque, embora concebido como Lei-quadro do regime das contra-ordenações, pretendia transformar todas as contravenções em contra-ordenações (art. 1.º, n.º 3 da mesma).
A Comissão Constitucional, no seu Parecer n.º 4/8180, veio a entender
que, a tal propósito, não seria de falar em qualquer inconstitucionalidade, vindo o Conselho da Revolução a pronunciar-se nesse mesmo sentido na Resolução n.º 71/81 publicada no Diário da República, I Série, 83, de 09 de Abril de 1981.
Em 1982 surge um novo Regime Geral das contra-ordenações, novamente ensombrado por dúvidas constitucionais.
Desde logo, instalou-se a dúvida sobre a constitucionalidade orgânica de tal diploma.
O actual art. 165.º, n.º1 alíneas c) e d) da Constituição da República
Portuguesa estabelece que “É da exclusiva competência da Assembleia da
República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: (…) c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos
78 J
OSÉ DE FARIA COSTA, «Crimes e contra-ordenações – afirmação do numerus clausus na repartição das infracções
penais e diferenciação qualitativa entre as duas figuras dogmáticas», Questões Laborais, ano VIII, n.º 17, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 5. (citado: «Crimes e contra-ordenações»).
79
Para mais desenvolvimentos cfr. TERESA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, pp.123 e ss.
pressupostos, bem como processo criminal; d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo”.
Decorre, pois, da Constituição que o legislador apenas pode criar crimes, contra-ordenações e infracções disciplinares (princípio do numerus clausus). Suscita-se assim a questão de ser ou não inconstitucional, após 1982, criar novas contravenções, sendo que o Tribunal Constitucional as admitiu em
matéria estradal (cfr. Acórdãos n.ºs 308/94 e 61/99 do Tribunal
Constitucional81).
Contudo, à data da publicação do Decreto-Lei de 1982 a redacção constitucional era outra. À data, referia o art. 167.º da CRP que era da competência exclusiva da Assembleia da República legislar em matéria criminal, sendo que a alusão às contra-ordenações (nota importante) apenas passou a ser feita precisamente com a revisão constitucional de 1982. A questão da inconstitucionalidade orgânica do diploma de 1982 não tardou em surgir já que o mesmo provinha do Governo (com autorização legislativa) e se duvidava se a matéria das contra-ordenações era ou não criminal. A questão, com a redacção resultante da referida revisão constitucional, ficou ultrapassada em virtude de o RGCO de 1982 ter sido feito ao abrigo de autorização legislativa.
Questão diferente era a de saber se a reserva legislativa abrangia apenas o RGCO ou ainda a consagração individual de contra-ordenações em termos sectoriais.
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ia no sentido de a qualificação individual e
concreta de uma determinada conduta como contra-ordenacional ou criminal
poder ser objecto de fiscalização de constitucionalidade, já que “Decerto, não é
– como alguém com infundado sarcasmo criticou a BRICOLA -, não é à
Constituição que se pode pedir que decida em todos os casos e em cada caso,
81
Disponíveis em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol., p. 885 e Diário da República, II série, 31 de Março de 1999 respectivamente, referidos por LOPES DO REGO, «Alguns Problemas Constitucionais do Direito das Contra- ordenações», Questões Laborais, ano VIII, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 13 (citado: «Alguns Problemas Constitucionais»).
de forma imediata, se uma certa conduta deve constituir um crime ou antes uma contra-ordenação. Mas não tenho dúvida que é a ela que importa recorrer quando se suscite a questão de saber se foi ou não respeitado o princípio material que há-de estar na base da decisão de qualificação legislativa e comandá-la. Tanto mais (…) quanto uma tal qualificação releva de um ponto de vista jurídico-constitucional positivo e pode, em certos casos, ser objecto de
fiscalização de constitucionalidade”82
. No mesmo sentido parece ir MIGUEL
PEDROSA MACHADO ao entender ser possível a arguição da
inconstitucionalidade material dos diplomas que criem contra-ordenações como tipos substitutivos de infracções penais mas já não da Lei-Quadro em si83.
De todo o modo, em face da redacção constitucional de 1982, JOSÉ DE
FARIA COSTA refere que, ao contrário do que sucede com as normas
incriminadoras, só é matéria de reserva relativa da Assembleia da República a definição do RGCO e não já a individual e concreta definição das contra- ordenações, pelo que a criação de novas contra-ordenações pode ser feita por
acto legislativo do Governo84.
Também os constitucionalistas GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA
pugnam pela interpretação da al. d) do n.º 1 do art. 165.º da CRP no sentido de que só é obrigatória a autorização da Assembleia da República no caso de
se legislar sobre o respectivo regime geral85.
Podemos assim hoje assentar que será da exclusiva competência da Assembleia da República (salvo autorização ao Governo) legislar sobre o regime geral das contra-ordenações e seu processo, mas já será da competência concorrente da Assembleia da República e do Governo definir, dentro dos limites do regime geral, as individuais contra-ordenações. Isto mesmo se plasmou no Acórdão n.º 308/94 do Tribunal Constitucional a que se
82 J
ORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «O movimento», p. 27.
83
MIGUEL PEDROSA MACHADO, «Elementos para o estudo», pp. 190 e ss..
84
Cfr. JOSÉ DE FARIA COSTA, Noções Fundamentais, pp. 46-48.
85
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol II, Coimbra
aludiu supra. Assim, na súmula levada a cabo pelo ilustríssimo processualista LOPES DO REGO «A tipificação de contra-ordenações ou contravenções que não colidam com matérias atinentes aos “direitos, liberdades e garantias” e se conforme inteiramente com o respectivo regime geral, definido pela lei quadro em vigor, não está sujeita à reserva de lei», e isto é tanto mais relevante quanto «A questão que mais frequentemente se vem suscitando no âmbito do
direito contra-ordenacional é, aliás, a que decorre da alegada
inconstitucionalidade orgânica de normas constantes de diplomas legais que – desprovidos de credencial parlamentar bastante – afrontem o regime geral de tal ilícito, ao estabelecerem “coimas” cujo limite máximo ultrapassa o
consentido pela respectiva “lei quadro”»86
.
Mas, tal como deixámos referido supra, não deixaram também de surgir dúvidas de constitucionalidade material ao diploma de 1979.
É que aí se estatuía a competência das autoridades administrativas para aplicação das sanções prevendo ainda, mesmo que a título excepcional, casos de responsabilidade contra-ordenacional objectiva. Suscitava-se pois a questão de saber se, estando-se perante Direito sancionatório não deveria haver aqui aplicação judicial das sanções, recusando-se ainda a possibilidade de responsabilidade objectiva e o preceito que admitia a detenção de um suspeito pelo prazo de vinte e quatro horas para identificação.
Hoje, quer do ponto de vista orgânico quer material, as relações entre o Direito contra-ordenacional e o Direito Constitucional são, como desejável, mais serenas.
Está hoje delimitada a reserva de lei neste ponto. Por outro lado, na revisão constitucional de 1997, o legislador constitucional estatuiu no art. 32.º,
n.º 10 que “nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer
processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”, assim contribuindo para uma visão mais autónoma do Direito das
contra-ordenações. Assim, “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de
sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou
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qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender- se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. (…) O direito de se defender é por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma
exigência fundamental do Estado de Direito material”87
.
Afigura-se-nos, aliás, que o Direito Constitucional (sobretudo nos impulsos constitucionais de 1982 e também em 1997) foi uma alavanca para uma maior autonomização do Direito das contra-ordenações já que alude ao Direito das contra-ordenações como algo distinto do Direito Criminal prevendo um regime mais flexível deste ramo comparativamente com o do Direito Penal.
Refere MÁRIO FERREIRA MONTE a tal propósito “O regime constitucional do
Direito das contra-ordenações não é tão implicativo, tão restritivo e tão garantístico como o é em relação ao Direito Penal, e por isso vem a ser mais
flexível, mas, par cause, também mais nebuloso”88
.
Com efeito, o Direito Constitucional não é hoje um óbice a uma maior autonomização do Direito das Contra-ordenações. Ao contrário, ele vem sedimentando a ideia de que se trata de um ramo jurídico autónomo (referindo- se a tal figura em vários artigos constitucionais, v.g., arts. 32.º, n.º 10, 37.º, n.º 3, 165.º, n.º 1 al. d), 227.º, n.º 1 al. q), 282.º, n.º 3 da CRP).
Já quanto às relações do Direito contra-ordenacional com o Direito Administrativo e com o Direito Penal as coisas não serão tão simples, como veremos em seguida (não deixando ainda de ser útil a sua comparação com outros ramos, como o do Direito Civil).
87
JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 363.
88M
3. As relações do Direito contra-ordenacional com outros ramos do